domingo, 30 de março de 2014

Uma terrina em porcelana Vieux Paris: bom gosto e distinção

Foto de Maria do Carmo Labreuil
O Manuel comprou já há cerca de uns dois anos, uma belíssima terrina, muito possivelmente fabricada em Paris, nas primeiras décadas do Século XIX. É uma peça da chamada porcelana de Paris, ou Vieux Paris.

O chamado Vieux Paris não é nenhuma fábrica de porcelana, como a Vista Alegre ou Sêvres. Designa a produção de porcelana feita na capital francesa entre o último quartel do Século XVIII e a primeira metade do século XIX.

Segundo Régine de Plinval de Guillebon, autora da obra Porcelaine de Paris, 1770-1850. Friburg: Office du Livre, 1972 a definição de Porcelana de Paris no século XVIII é simples. Porcelana de pasta dura fabricada e decorada em manufacturas sediadas em Paris.
A porcelana de Paris inspira-se nas formas da arte grega, romana e etrusca. Foto Manel
Esta definição torna-se mais complexa no século XIX. Porcelana de pasta dura, em geral decorada em Paris, nem sempre fabricada nesta cidade, mas proveniente de manufacturas com morada oficial em Paris, ou de armazéns de revenda situados em Paris.

Quero isto dizer, que no início do Século XIX, altura em que esta terrina terá presumivelmente executada, existiam na capital francesa quer manufacturas de Porcelana que fabricavam e executam loiça, quer oficinas que compravam porcelana branca e depois a decoravam, quer armazéns que encomendavam a fábricas situadas fora de Paris, peças por encomenda ao gosto do cliente.

O gosto pelas decorações a ouro em fundo branco é típico da Porcelana de Paris. Terrina à venda no antiquário francês http://www.proantic.com
Talvez por haver tantos agentes envolvidos na fabricação, decoração e encomenda uma boa parte da Porcelana de Paris, não está marcada, o que pode gerar sempre algumas confusões de atribuições, pois os seus modelos foram copiados por toda a Europa, de Lisboa a St. Petersburgo. A nossa Vista Alegre, seguiu muito de perto as produções de Paris e por vezes é quase impossível distinguir uma ou outra. Por outro lado, muito embora houvesse legislação no sentido de os mestres marcarem as suas peças, muitos destes decoradores ou fabricantes tentariam fazer passar as suas peças por Porcelana de Sêvres, o paradigma do luxo francês e claro e não punham marca nenhuma.
Outro pormenor da terrina do Manel: o gosto neoclássico. Foto Manel.
E no entanto há algumas características da porcelana dita de Paris, nestes primeiros vinte ou vinte e cinco anos do século XIX, que a permitem identificar como por exemplo um gosto muito pronunciado pela decoração a ouro sobre o branco, sendo que este último se apresenta num tom leitoso. A decoração inspira-se nos tecidos e as formas na antiguidade clássica, como é o caso desta terrina.

Encontrei aliás no referido livro de Régine de Plinval de Guillebon uma placa de padrões, do célebre mestre de porcelana Nast, onde podemos ver padrões muito idênticos aos da terrina do Manel e que são típicos da porcelana Vieux Paris.



Por último, talvez seja interessante situar esta terrina do Manuel, muito neoclássica, no gosto geral da época em que foi produzida, dominado pelo estilo Império (1803-1821), fortemente inspirado em Roma e na Grécia antiga, bem como na arte etrusca e do Egipto. 

Para que as pessoas, tenham uma ideia mais precisa, reproduzo aqui o interior de um quarto estilo império, do Museu das Artes Decorativas em Paris, onde se pode ver precisamente uma peça de porcelana da chamada cidade luz.

Quarto estilo Império. Musée des Arts Decoratifs. Paris. Ao centro vemos um jarro e lavatório em Porcelana de Paris

domingo, 23 de março de 2014

Uma terrina provavelmente da Fábrica da Bandeira

 
Na faiança portuguesa, que raramente está marcada, é sempre fácil dizermos disparates quando tentamos fazer atribuições. Andámos sempre às apalpadelas e a possibilidade de nos enganarmos é muito grande. Talvez por isso é sempre sensato seguir o trabalho que outros fizeram antes de nós, de gente que trabalha há muitos anos com faiança e cujo estudo faz parte do seu trabalho diário.
A terrina do Manuel não está marcada como é habitual na Faiança portuguesa, o que provoca sempre grandes confusões nas atribuições
Foi precisamente este método que segui para tentar atribuir uma terrina pintada com cores garridas, que o Manel comprou há pouco tempo. Imaginava que fosse do Norte, mas claro, tanto eu como o Manel hesitámos entre Bandeira e Fervença. Até porque eu também tenho uma terrina com um formato muito idêntico a esta, e sobre a qual não consigo ter uma opinião definida sobre o seu fabricante, embora ache que seja uma produção da área Porto/ Gaia.
Excerto dos Meninos Gordos. Porto: Civilização, 2005
Desta vez, tive mais sorte, pois Isabel Maria Fernandes, no livro Meninos gordos. Porto: Civilização, 2005 fez o trabalho por mim, quando sistematizou todos os motivos decorativos, que aparecem nos pratos dos meninos gordos. Nas últimas páginas do livro, há um glossário de motivos decorativos, que cobre desde as flores, às árvores, passando pelos os motivos vegetalistas como os penachos e os palmitos, até aos zoomórficos. É um trabalho extremamente bem feito, e só tive que procurar pelas folhas semelhantes a este prato e de facto encontrei-as imediatamente, sendo que as peças decoradas com este tipo de folhas são atribuídas à Fábrica da Bandeira (fundada cerca de 1828 e encerrada pouco depois de 1913).
Prato número 2 do catálogo Meninos gordos. Porto: Civilização, 2005. Atribuído à Fábrica da Bandeira

Prato número 1 do catálogo Meninos gordos. Porto: Civilização, 2005. Atribuído à Fábrica da Bandeira
Se nos abstrairmos dos meninos gordos dos pratos atribuídos a Bandeira e olharmos só para a cercadura, percebemos que há um ar de família entre eles e a terrina do Manel.
A pega da tampa da terrina foi mal restaurada

sábado, 15 de março de 2014

Um pequeno monumento à minúcia: um registo com um Agnus Dei

Hoje apresento-vos uma das minhas últimas aquisições, uma verónica preciosamente trabalhada, contendo no meio um registo trabalhado em canivet, com um cordeiro místico.

Confesso-vos que desde que aqui tinha mostrado um canivet, que pertence à nossa amiga Alexandra Roldão, andava louco para ter também um desses registos trabalhados com um pequeno canivete, normalmente datados do século XVIII.

Há quem ambicione ter um jeep tão grande como o do vizinho ou do cunhado, mas eu prefiro invejar estas peças, que tem tanto de bonito, como de frágil, pois são feitas de materiais perecíveis, papel, renda e tecidos.

Antes do restauro
Quando o comprei estava em muito mau estado. O vidro estava sujo, os fios metálicos a imitar um rendilhado estavam soltos e eu nem me atrevi a tocar-lhe com medo que ele se desfizesse nas minhas mãos. Valeu-me a boa vontade e a paciência do Manel, que desmontou toda a estrutura e conseguiu restaura-lo e devolver-lhe a um pouco da sua antiga beleza.

Este trabalho de restauro do Manel permitiu perceber um pouco melhor das técnicas e dos materiais com que estes registos eram feitos.

O canivet é feito em tecido
Em primeiro lugar, o registo representando o cordeiro místico não é feito em papel como eu pensava, que todos canivets o fossem. É um pedacinho de pano, que foi picado com um pequeno canivete e depois esticado, para que os orifícios alargassem e produzissem o efeito de um rendilhado. No centro, foi aplicada uma pasta, um preparado, onde pintaram o cordeiro místico ou Agnus Dei. O vidro é daqueles feitos à mão, com de pequenas bolhas de ar e com ligeiríssimas ondulações

Quanto à moldura do registo, foi feita em cartão e o formato semicilíndrico foi-lhe dado cosendo as pontas, de modo enrola-lo e para ficar com a devida consistência foi enchido com papéis, talvez velhas cartas, todas manuscritas com uma letra que parece do século XVIII. Depois essa estrutura foi revestida com restinhos de tecidos em seda estampados, fixados com uma daquelas colas caseiras feitas com farinha e a disfarçar as junções colocaram um fio metálico, imitando uma renda, que em tempos foi prateado. Na orla foi colocada uma passamanaria, em renda de bilros, que coitada, está muito desfeita. Atrás existe um mero cartão sem qualquer espécie de ornato, pois era a parte que estava virada para a parede, que as pessoas não viam.

Foram usados velhos papeis manuscritos para dar consistência à moldura

É um trabalho minucioso, um daqueles ditos lavores femininos, normalmente feitos em conventos, ou por senhoras ou meninas criadas nessas casas religiosas e que tinham todo o tempo do mundo para estes trabalhos feitos com restos de tecido, contas, missangas e passamanaria.

Por exemplo, a célebre poetisa, Marquesa de Alorna, foi encerrada no convento de Chelas, juntamente com a sua mãe e irmã, durante 19 anos, apenas, porque pertenciam à família Távora, considerada responsável pelo atentado ao Rei D. José. 


Entre os 8 anos e os 27 anos a jovem Leonor de Almeida passou 19 anos enclausurada, entre rezas, missas e jejuns, com o cheiro sempre persistente das velas de sebo e das flores fanadas nas jarras de altar. Claro, ela era uma mulher excepcional e rebelou-se. Conseguiu por portas travessas reunir uma biblioteca com obras dos pensadores iluministas e dos clássicos, vestia-se de forma luxuosa, desafiava a regra do convento e a sua fama de mulher de espírito rapidamente chegou à corte e começou a ser visitada por homens e mulheres de cultura, que formaram um círculo literário à sua volta. Essas visitas decorriam num espaço com uma grade, que separava as reclusas do mundo lá de fora. Mas isso não impediu a jovem Leonor de Almeida de formar junto à grade uma tertúlia literária, onde pontuavam poetas como Filinto Elísio ou jovens da melhor nobreza como Teresa de Mello Breyner, Condessa do Vimiero.

A Marquesa de Alorna conseguiu finalmente sair do convento, já mulher adulta, com 27 anos, depois da morte do Rei D. José e do imediato afastamento do poder do Marquês de Pombal, que nutria um ódio de morte aos Távora. Mas outras mulheres e também de alta condição social nunca conseguiram sair e dedicaram uma vida inteira, em que o tempo não passava, a manufacturar estes registos, pequenos monumentos à minúcia.


Sobre a vida da Marquesa de Alorna, recomendo:

As luzes de Leonor / Maria Teresa Horta. Lisboa: D. Quixote, 2001

domingo, 9 de março de 2014

Um candeeiro fora de moda

Comprei este pequeno candeeiro há mais de 25 anos na feira-da-ladra com a minha ex-mulher. Terá custado uns 300 escudos, já não me lembro bem, mas foi o primeiro objecto que comprámos para a nossa casa, um apartamento minúsculo num prédio com cerca de 200 anos, com vista para rua das Escolas-Gerais, onde víamos passar o mítico eléctrico 28 a cada quarto de hora. Foram uns tempos engraçados.

Passávamos a vida a perder e a mudar de empregos, mas tínhamos uma vida com uma certa dose de boémia. Também naquele bairro, cheio de gente alternativa, como diríamos hoje em dia, bastava ir à varanda para conhecer gente curiosa ou encontrar amigos da noite a passar na rua. Confesso que este candeeiro é um pequeno símbolo daquele tempo, que guardo com uma certa nostalgia.

Já ninguém usa estes candeeiros com abat-jours plissados e rematados com passamanaria.
Não é nenhuma antiguidade. Deve ser uma peça dos anos 30, 40 ou até mesmo 50 do século XX. É um objecto fora-de-moda. Já ninguém usa estes candeeiros com abat-jours plissados e rematados com passamanaria. Mas o fora-de-moda traz a obsessão do tempo que passa, a nostalgia mais querida, como escreveu Catherine N’diadye, nesse livrinho delicioso, intitulado A coquetterie ou a paixão do pormenor. Lisboa: Edições 70, 1987.

A luz suave de um abat-jour atenua e suaviza as rugas, as olheiras e as marcas do tempo
Não só o meu passado a luz suavemente matizada deste abat-jour plissado evoca, mas também um tempo que eu não vivi e que só conheço através dos livros, como o período do fin-de-siècle em Paris, mais propriamente o ano de 1898, quando César Ritz inaugurou o célebre e luxuoso hotel com o seu nome na capital francesa. Este empresário hoteleiro de origem suíça mandou electrificar o Ritz, o que era uma absoluta novidade naquele tempo. Mas como a luz eléctrica era demasiado forte e crua, César Ritz mandou colocar abat-jours cor de pêssego sobre os candeeiros eléctricos, de modo a disfarçar e embelezar a tez demasiado pálida e cansada das mulheres mundanas, que frequentavam o restaurante ou hotel. A luz suave de um abat-jour atenua e suaviza as rugas, as olheiras e as marcas do tempo.

Este candeeiro é apenas um objecto fora de moda, ainda não dormiu o suficiente para ter um carácter histórico, nem foi ainda apanhado novamente pela moda, que tende sempre voltar atrás e repescar as coisas do passado. É apenas um objecto sentimental e a sentimentalidade nunca consegue viver o tempo louco e rápido da moda.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Velharias do Luís de novo na Televisão

Paliteiro Vista Alegre
Este blogue vai de vento-em-popa e nesta passada quarta-feira, o seu autor esteve novamente na televisão e foi entrevistado pela Fátima Lopes, na TVI, no programa A tarde é sua. Houve também uma reportagem na minha casa e o operador de câmara fez verdadeiros malabarismos para se movimentar com aquela máquina de filmar gigantesca no meu apartamento minúsculo e sem partir nada. No início da reportagem o senhor estava muito apreensivo acerca como iria filmar aquele espaço quase mais pequeno, que a câmara dele, mas depois entusiasmou-se com a quantidade de pequenos detalhes com que a vista se distrai na minha casa e acabou por fazer um belo trabalho.

É bem certo que A Tarde é sua não é um programa cultural, daqueles que passam noite dentro na RTP2, onde o pessoal vai dizer umas poesias e discorrer acerca de cinema alemão dos anos 20, mas fiquei orgulhoso por partilhar e divulgar o gosto pelas velharias e pela história num programa de grande audição. Nesta época de crise, creio que consegui passar a mensagem, que é possível mobilar com gosto uma casa com peças herdadas, compradas em segunda mão ou mesmo até achadas no lixo e ainda por cima divertimo-nos imenso com isso. Andar à cata de velharias é um passatempo onde coleccionamos não só objectos, mas também histórias muito engraçadas. Ainda há pouco tempo uma Senhora na feira-da-Ladra tentou-me vender a mim e ao Manel um vestido de noiva e olhem que seríamos capazes de tirar aquilo por pouco mais de cinco euros, se eventualmente algum de nós tivesse uma noiva…

Pequenos detalhes
Também neste programa ficou clara a ideia que necessitamos ter uma memória, quer dos nossos antepassados directos, quer do nosso passado enquanto povo. Como diria Marguerite Yorcenar a vida humana está muito mais no passado do que no presente. O presente é sempre um momento curto, mesmo, quando a sua plenitude o faz parecer eterno.


Para ver o autor deste blog falar das suas velharias, cliquem neste link http://www.tvi.iol.pt/videos/14100184