Hoje apresento-vos uma das minhas últimas aquisições, uma verónica preciosamente trabalhada, contendo no meio um registo trabalhado em canivet, com um cordeiro místico.
Confesso-vos que desde que aqui tinha mostrado um canivet, que pertence à nossa amiga Alexandra Roldão, andava louco para ter também um desses registos trabalhados com um pequeno canivete, normalmente datados do século XVIII.
Há quem ambicione ter um jeep tão grande como o do vizinho ou do cunhado, mas eu prefiro invejar estas peças, que tem tanto de bonito, como de frágil, pois são feitas de materiais perecíveis, papel, renda e tecidos.
Antes do restauro |
Quando o comprei estava em muito mau estado. O vidro estava sujo, os fios metálicos a imitar um rendilhado estavam soltos e eu nem me atrevi a tocar-lhe com medo que ele se desfizesse nas minhas mãos. Valeu-me a boa vontade e a paciência do Manel, que desmontou toda a estrutura e conseguiu restaura-lo e devolver-lhe a um pouco da sua antiga beleza.
Este trabalho de restauro do Manel permitiu perceber um pouco melhor das técnicas e dos materiais com que estes registos eram feitos.
O canivet é feito em tecido |
Em primeiro lugar, o registo representando o cordeiro místico não é feito em papel como eu pensava, que todos canivets o fossem. É um pedacinho de pano, que foi picado com um pequeno canivete e depois esticado, para que os orifícios alargassem e produzissem o efeito de um rendilhado. No centro, foi aplicada uma pasta, um preparado, onde pintaram o cordeiro místico ou Agnus Dei. O vidro é daqueles feitos à mão, com de pequenas bolhas de ar e com ligeiríssimas ondulações
Quanto à moldura do registo, foi feita em cartão e o formato semicilíndrico foi-lhe dado cosendo as pontas, de modo enrola-lo e para ficar com a devida consistência foi enchido com papéis, talvez velhas cartas, todas manuscritas com uma letra que parece do século XVIII. Depois essa estrutura foi revestida com restinhos de tecidos em seda estampados, fixados com uma daquelas colas caseiras feitas com farinha e a disfarçar as junções colocaram um fio metálico, imitando uma renda, que em tempos foi prateado. Na orla foi colocada uma passamanaria, em renda de bilros, que coitada, está muito desfeita. Atrás existe um mero cartão sem qualquer espécie de ornato, pois era a parte que estava virada para a parede, que as pessoas não viam.
É um trabalho minucioso, um daqueles ditos lavores femininos, normalmente feitos em conventos, ou por senhoras ou meninas criadas nessas casas religiosas e que tinham todo o tempo do mundo para estes trabalhos feitos com restos de tecido, contas, missangas e passamanaria.
Por exemplo, a célebre poetisa, Marquesa de Alorna, foi encerrada no convento de Chelas, juntamente com a sua mãe e irmã, durante 19 anos, apenas, porque pertenciam à família Távora, considerada responsável pelo atentado ao Rei D. José.
Entre os 8 anos e os 27 anos a jovem Leonor de Almeida passou 19 anos enclausurada, entre rezas, missas e jejuns, com o cheiro sempre persistente das velas de sebo e das flores fanadas nas jarras de altar. Claro, ela era uma mulher excepcional e rebelou-se. Conseguiu por portas travessas reunir uma biblioteca com obras dos pensadores iluministas e dos clássicos, vestia-se de forma luxuosa, desafiava a regra do convento e a sua fama de mulher de espírito rapidamente chegou à corte e começou a ser visitada por homens e mulheres de cultura, que formaram um círculo literário à sua volta. Essas visitas decorriam num espaço com uma grade, que separava as reclusas do mundo lá de fora. Mas isso não impediu a jovem Leonor de Almeida de formar junto à grade uma tertúlia literária, onde pontuavam poetas como Filinto Elísio ou jovens da melhor nobreza como Teresa de Mello Breyner, Condessa do Vimiero.
A Marquesa de Alorna conseguiu finalmente sair do convento, já mulher adulta, com 27 anos, depois da morte do Rei D. José e do imediato afastamento do poder do Marquês de Pombal, que nutria um ódio de morte aos Távora. Mas outras mulheres e também de alta condição social nunca conseguiram sair e dedicaram uma vida inteira, em que o tempo não passava, a manufacturar estes registos, pequenos monumentos à minúcia.
Sobre a vida da Marquesa de Alorna, recomendo:
As luzes de Leonor / Maria Teresa Horta. Lisboa: D. Quixote, 2001
Sobre a vida da Marquesa de Alorna, recomendo:
As luzes de Leonor / Maria Teresa Horta. Lisboa: D. Quixote, 2001
Fantástico Luís, obrigado e parabéns. Abraço, jsaraiva
ResponderEliminarCaro J. Saraiva
EliminarMuito obrigado e um abraço
Que maravilha Luís, o seu registo! Parabéns a si por esta nova aquisição e ao Manel pelo restauro. Incríveis as descobertas que fazemos quando trabalhamos de forma apaixondada e foi o que aconteceu com a desmontagem do seu registo. Interessante o que descobriram! Conseguiram ler o que diziam as cartas? Poderiam ser uma boa pista para chegar à origem deste registo.
ResponderEliminarBeijos e boa semana
Maria Paula
EliminarO Manel não desmontou todo o registo. É uma peça muito frágil, prestes a desfazer-se e o Manel viu-se grego para colar os fios metálicos, abrir o registo, tirar o vidro e limpa-lo.
Mas também fiquei curioso, com o que poderiam dizer estas cartas, mas a letra é definitivamente antiga, julgo eu que do século XVIII.
Bjos
Luis,
ResponderEliminarQue mais dizer,senão que é simplesmente espectacular!!
Não me diga que encontrou essa preciosidade na Feira de Estremoz?
Fiquei admirada com o facto do canivet em si ter sido executado em tecido. Nem sabia sequer que um tecido poderia ser furado, e os respectivos orifícios aí feitos pudessem permanecer abertos sem ajuda de algum fio. Eventualmente poderia tratar-se de uma espécie de bordado de crivo, mas não é o caso. Como fariam tal proeza?
Digo-lhe também muito sinceramente que, se o canivet fosse meu, não teria resistido a desenrolar essas cartas que serviram de enchimento! Estou aqui roídinha de curiosidade acerca das ditas...
Resta-me dar os parabéns ao seu amigo Manel pela paciência, minúcia, mas acima de tudo a coragem de desmontar um objecto já de si tão antigo, e ainda por cima tão maltratado pelo passar dos anos.
Para terminar, digo-lhe que ontem também fiz umas compras na feira de velharias cá do burgo. Acho que lhe vou enviar umas fotos...
Beijinho
Alexandra Roldão
Alexandra
EliminarEfectivamente foi comprado na feira de Estremoz.
Sempre pensei que estes canivets eram feitos em papel, mas estamos sempre a descobrir coisas novas e a versatilidade e habilidade destes trabalhos freiráticos, nunca nos há deixar de surpreender. Recentemente, a If, apresentou no seu blog uma caixa de papelão toda decorada com florinhas, também um trabalho conventual, que é uma coisa admirável.
Como respondi à Maria Paula, o Manuel não teve coragem de desmanchar todo o registo, com receio que este se desfizesse completamente, de modo que não pudemos desdobrar as cartas e lê-las.
Mas este hábito de reaproveitar antigos documentos era comum. Já vi muitos livros do século XVIII com capas em pergaminho, que mais não são do que antigos documentos de arquivo do século XV ou XVI.
bjos
Olá,Luis
ResponderEliminarLindissimo seu registo
Uma ajuda preciosa do Manel e aí tem o seu lindo registo muito bem tratadinho
Mais uma preciosidade a juntar a tantas outras que tem por casa
Parabéns ao Manel
È um amigo muito valioso que o Luis tem
Abraço a ambos
Abraço
Grace
EliminarMuito obrigado pelo comentário. Com efeito, O Manel tem uma parte importante nesta peça, pois conseguiu consolida-la e dar-lhe mais uns anos de vida.
Um abraço
Restaurar esta peça levou a que ficasse com os dedos todos picados da agulha que utilizei para coser os materiais, e o trabalho não ficou bom, pois o cartão, pela idade, está a desfazer-se.
ResponderEliminarNão voltarei a fazer uma peça destas pois não é o meu campo de ação, e não gostei do resultado final deste teu registo, pois há alguns materiais que não consegui substituir como deveria, pois usei materiais novos.
Não é nenhum crime, mas um bom restauro implicaria o uso de materiais antigos, o que não tenho, nem sei como chegar até eles.
É muito difícil encontrar materiais de época a não ser comprar peças antigas, já meio desfeitas, desmanchá-las e guardar os materiais para futuras aplicações.
Faço-o com as madeiras (ando sempre à procura de partes de mobiliário antigo de época, em todo o tipo de madeira, para poder utilizar no restauro de peças antigas), ferragens, pregos antigos, mas com este tipo de peças não, pois não é muito comum fazê-lo.
Creio que restaurei três ou quatro registos meus e pouco mais.
Desmanchar completamente este teu registo seria danificá-lo ainda mais, pois as sedas estavam muito puídas, algumas a desfazer-se, e os metais quebravam-se ao primeiro toque.
A peça original deveria ter sido um primor, e lindíssima.
Realmente é estranho que o canivet fosse em pano, mas assim é. Foi cortado e depois esticado sobre uma base, para que os recortes se notassem, daí o registo estar todo torcido.
Agradeço os comentários da Maria Paula, da Alexandra e da Grace, mas desta vez não creio que tenha merecimento.
Não está tão bom como teria gostado que ficasse.
As madeiras ganham com a passagem do tempo, os tecidos e os metais prateados ou dourados nem por isso
Manel
Olá Luis, olá Manel,
EliminarPaz.
Espero que não se importem por comentar aqui nas respostas. Mas que quero parabenizar a Vc Luis pelo aquisição e a Vc Manel pela restauração.
Como já comentei, temos aqui a grande especialista em Barroco Myriam Andrade Ribeiro que também coleciona estes registos (aqui tb são chamados assim embora como Vc indicou aqui sejam "registros" mas com o meso sentido).
O Cordeiro Pascal é um belo tema, já antecipando a maior e mais profunda celebração cristã. Se bem que que há de se fazer um esforço para notar sua presença central nesta peça. Realmente um monumento à minúcia... Paradoxo perfeito.
Na Bahia (Salvador) primeira capital do Império foram (e são os que restaram) famosos estes registros tanto quanto as pequenas imagens do Menino Deus, tão enfeitadas de toda sorte de miçangas, pedrinhas, jóias, asas de besouros, caquinhos de vidro, diamante até, e tudo mais que tenha cor e brilho...
Tenho um pobre registrozinho (acho que é) do Coração de Jesus mas só com miçangas... pena.
No ano passado havia um muito interessante que por 2 sábados me tentaram passar na feira mas não pude pelo preço: Fugia muito das miçangas, tecidos... só havia um intrincado recortado cor de ouro vivo reproduzindo um altar com o SS, candelabros, palmas, degraus, retábulos... e por aí vai. Tudo dourado dentro da moldura.
Mas não sei se esta arte é um registo ou outra artimanha conventual de recortar e re-inventar a vida...
Um abraço.
Amarildo
Manel
EliminarBem sei que não ficaste contente com o resultado final, mas em todo o caso consolidaste esta peça, limpaste-a e no geral melhorou imenso. Eu fico-te muito grato, pois como aqui escrevi, nunca me atreveria a mexer nesta peça. Só um homem com a tua minúcia e paciência seria capaz de o fazer.
Foi uma surpresa descobrir que o Canivet não foi feito em papel, mas sim em tecido. Estive a ler o artigo Canivet na wikipedia e só referem estes trabalhos em papel ou em pergaminho. Mas, no fundo conhecemos mal todos estes trabalhos conventuais e um dos aspectos positivos deste teu restauro foi esta pequena descoberta.
Um abraço
Amarildo
ResponderEliminarA pintura do Agnus Dei encontrava-se muito desvanecida. No passado terá talvez apanhado humidade. O próprio movimento do vidro deve ter destruído a camada pictórica. Enfim, é um trabalho certamente com dois séculos de existência e tem as marcas do tempo.
A produção destes trabalhos à volta de uma estampa ou pintura religiosa é muito grande e obviamente variava ao gosto da imaginação destas senhoras devotas e com muito tempo pela frente.
Certamente que no Brasil existirão também muitos destes trabalhos dos século XVIII e XIX. Nas terras de Vera Cruz também abundavam conventos e recolhimentos de religiosas. Enfim, já formámos todos o mesmo País e a cultura foi durante muitos anos idêntica nestes dois lados do Atlantico. Aliás, se assim o não fosse, eu não teria tantos e tão bons seguidores brasileiros neste blog.
Um abraço
Gostei imenso, Luís e Manel, sobretudo da moldura, confesso.
ResponderEliminarO trabalho minucioso de recorte no tecido e a própria imagem são um mimo, mas o trabalho da moldura torna a peça muito requintada, com um belo efeito decorativo.
Só muito recentemente conheci esta técnica de formar o relevo da moldura através de um enchimento de papel porque precisamente o último registo que comprei usa a mesma técnica, só que o acabamento é com bocadinhos de papel e não com tecido. Bem preferia o s tecidos recortados com os belos galões antigos a delimitá-los, só que não me lembro de ter visto algum à venda.
Parabéns, Luís, por este belo acrescento à sua coleção (e como dá jeito contar com as mãos de ouro do Manel para melhorar o aspeto e fazer a estabilização destas peças).
Um grande abraço aos dois
Maria Andrade
EliminarJá todos sentíamos a sua falta.
Este registo foi um golpe de sorte. Também o comprei a bom preço, porque estava bastante danificado.
Nunca tinha visto nenhum registo visto com esta técnica, mas também é verdade que nunca desmanchei muitos. Já comprei dois ou três registos, de tal maneira estragados, que tive que deitar fora a moldura e aproveitar apenas a estampa. Nessas peças, o relevo da moldura era feito com quatro canas cortadas, que formavam um rectângulo. Em todo o caso, numa deles, para dar mais consistência ao cartão onde o registo assentava encontrei fragmentos de editais da Inquisição, que um um dia mostrarei aqui no blog.
Beijos
Maria Andrade, também para mim foi uma surpresa esta forma de construção. Já desmanchei um ou outro meu, e um deles tinha as tais canas, que o Luís referiu, e um outro era feito com enchimento de cartão, mas não era cosido. Esta forma de encher com papel e cosido em simultâneo é uma novidade.
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário, no que a mim se refere, mas, desta vez, não gosto muito do meu trabalho, ao qual falta algo que considero fundamental: materiais de época. Não conheço química suficiente nem a forma como fazê-los, visto já ser difícil encontrá-los.
Manel
Boa noite.
ResponderEliminarSou um leigo nestas matérias.... mas adoro antiguidades e fiquei encantado ao ler algumas coisa suas.
Obrigado por partilhar tanta sabedoria estou certo que irei aprender.
Atenciosamente,
Gil Vicente
Caro Gil Vicente
EliminarBem vindo ao meu blog. Agradeço o seu comentário e espero poder contar com a sua presença mais por aqui.
Um abraço