Para os que acompanham este blog há pouco tempo, convém explicar que venho descrevendo uma velha casa solarenga que pertenceu à minha família paterna, os Montalvões e que se situa na aldeia de Outeiro Seco, perto de Chaves. A casa foi vendida nos anos 80 à Câmara Municipal de Chaves e hoje é uma ruína de partir o coração. Usando as memórias compiladas pelo meu pai, fonte incontornável do blog, tenho vindo aqui a costurar uma espécie de pequenos artigos, que pretendem reviver destinos passados do Solar e das pessoas, que por lá viveram.
Uma das coisas de que se tinha completamente perdido o traço era o recheio da capela particular da casa, isto é os, os santos e as alfaias religiosas. A minha avó Mimi que fez um inventário mais ou menos sistemático dos bens da casa, omitiu pura e simplesmente o recheio da capela. Chegámos a pensar que tudo teria sido pilhado e vandalizado. Numa troca de comentários com o Humberto Ferreira, um natural de Outeiro Seco, referi que o meu pai há muito tinha recebido um telefonema da Câmara municipal de Chaves pedindo-lhe se tinha uma relação dos santos existentes na capela. O nosso seguidor Humberto foi iluminado por uma espécie de clarão e no momento a seguir estava a telefonar a um rapaz de Outeiro Seco, que trabalha no Museu da Região Flaviense, mandou mails, fez mais telefonemas, escreveu uma carta registada à Câmara de Chaves e em três tempos já estava armado de uma máquina fotográfica nos depósitos e nas salas do Museu, acompanhando com o Carlos Félix ( o tal rapaz filho da terra). Em menos de uma semana, o Humberto descobriu o paradeiro dos Santos da Capela, fotografou-os a todos e fez-me chegar as imagens à minha caixa do correio!!!!!
Fiquei sem palavras de alegria, pensando que afinal nem tudo corre mal neste Portugal amargurado pela crise e a achar que o Humberto e o Carlos Félix foram como aquela equipa de arqueólogos britânicos, que trouxeram à luz do dia, em 1922, o túmulo de faraó egípcio Tutancâmon.
Nos anos 80, quando o Solar foi comprado o recheio da capela encontrar-se-ia lá na íntegra. Nessa época, o Carlos Félix, sugeriu ao presidente da autarquia de então, o Eng. Branco Teixeira, que era melhor recolher as imagens num depósito da Câmara antes que fossem roubadas, e é talvez graças a ele, que hoje podemos admirar duas estupendas imagens no Museu de Arte Sacra, um Cristo Senhor dos Aflitos e um Salvador do Mundo provenientes do Solar. As restantes encontram-se em nos depósitos do Museu da Região Flaviense, longe dos olhares do público, mas apesar de tudo a salvo da vilanagem.
Passarei então uma breve descrição das obras:
1- Encerrado numa maquineta que não proveio do Solar, o
Cristo Senhor dos Aflitos é uma peça em marfim muito bonita, que julgo ser de produção oriental, certamente fabricada na Índia, para ser vendida na Europa. A Cruz parece talvez pau santo, mas o Manuel que é entendido em madeiras o dirá.
2- Também no Museu de Arte Sacra está o
Cristo Salvador do Mundo. Transporta uma esfera que representa o mundo e o sacrifício feito na cruz para salvar a humanidade. Será certamente do século XVIII.
Depois no depósitos do Museu da Região Flaviense encontram ainda as seguintes peças:
- Uma
Nossa Senhora da Conceição assente na característica meia-lua, que é muito ingénua, muito popular, um verdadeiro encanto. A senhora é coroada, pois D. João IV nas aflições da luta contra os espanhóis durante a Restauração ofereceu-lhe a Coroa de Portugal em troca da sua ajuda na guerra. É desde esse tempo padroeira de Portugal
- Uma Nossa Senhora. que está tomada como Senhora da Lapa, mas que eu julgo ser a
Senhora da Assunção ou mais exactamente da Glória. O tema representa a morte de Nossa Senhora, a entrada da sua alma e do seu corpo no seu céu, em gloriosa Assunção. Tem por isso na base os anjos que servem para a transportar para o céu e a coroa de glória. As senhoras da Glória e da Assunção tem significados e representações idênticas, só que as primeiras costumam ter também o menino Jesus na mão, igualmente coroado. O Carlos Félix chamou a atenção para o facto de a escultura estar fixa numa tábua com quatro furos, pelo que é muito provável, que tenha sido armado o andor e saído em procissão. Também segundo o referido Senhor, era esta imagem que estava no centro Altar-mor da Capela de Santa Rita, quando foram recolhe-las nos anos 80
- Uma santa que está dada como Santa Ana e que eu julgo ser
Sta. Teresa de Ávila. Normalmente Santa Ana é representada juntamente com a Virgem, muitas vezes ensinando-a a ler e muitas vezes ainda com o menino Jesus, formando um trio. Esta imagem deve ser Sta Teresa de Ávila, pois está vestida de Carmelita, em atitude de êxtase, enverga um livro, pois é a primeira doutora da Igreja e na outra mão deve ter tido uma pena, alusão aos seus dotes de escritora mística.
Compare-se esta imagem com a do Museu de Abade Baçal e veja-se se não representam a mesma Santa, embora a do Museu Brigantino tenha um traje mais esplendoroso
- Um
Sta. Rosa. Parece-me a Sta Rosa de Lima. Embora originária do Peru, a devoção a esta Santa era muito popular em Portugal. Apresenta a coroa de espinhos característica desta figura. Contudo a Santa Rosa de Lima era dominicana e o traje desta imagem parece-me de uma franciscana, o que me leva a crer que poderá ser a Santa Rosa de Viterbo. Em todo o caso, esta imagem teve qualquer atributo nas mãos, que se perdeu entretanto e que poderia ajudar a identificar melhor qual das Santas Rosas se trata.
Ler mais sobre este assunto.
- Uma
Santa Rita de Cássia, o orago da capela. Advogada das causas impossíveis e dos terramotos a sua devoção em Portugal foi muito popular, sobretudo depois do grande sismo de 1755. A iconografia é muito típica conforme se pode ver pelo registo pertencente à Casa Sarmento , que apresento em seguida
- Por último, a minha imagem preferida, um
Santo António de Lisboa lindo de morrer, segurando um menino Jesus igualmente encantador. Não tenho palavras para descrever esta imagem. As fotografias falam por si. Os historiadores de arte referem muitas vezes que uma característica fundamental da arte sacra portuguesa é uma certa familiaridade e esta imagem dá-lhes razão. Apetece beijar o menino e o Santo é apenas um irmão mais velho, que os pais encarregaram de tomar conta de Jesus enquanto sairam para trabalhar.
O Humberto fez mais descobertas surpreendentes, mas essas ficam para um próximo capítulo. Em todo o caso, em nome dos membros da família Montalvão que ainda se importam com a casa, quero-lhe agradecer a ele, ao Carlos Félix e à Câmara Municipal de Chaves a redescoberta dos Santos do Solar. O Meu pai tinha razão, as pessoas de Outeiro Seco são uma gente especial.