quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Um menino Jesus do século XVIII ou votos de boas festas a todos os seguidores velharias do Luís


Como já escrevi muitas vezes aqui no blog não sou muito dado escrever sobre efemérides e quadras festivas. Creio que a única excepção, que abro é para o Natal, pois gosto de arte sacra e esta altura é uma excelente ocasião para mostrar mais uma estampa com uma anunciação ou uma natividade.

Este Menino Jesus em barro estava em casa dos meus pais desde que me lembro. Encontrava-se deitado numa caminha com um colchão capitonné em seda, num móvel da sala de estar. A caminha acabou por se estragar, não sei se fomos nós quando éramos miúdos, que a escangalhámos ao querer brincar com ela, se foi um gato que houve lá por casa ou se uma mulher-a-dias, mais abrutalhada. O que é certo é que a caminha perdeu dois pés, uma das urnas da cabeceira e foi arrumada durante décadas num armário.



Quando, os meus irmãos e eu partilhámos, o recheio de casa do meu pai, escolhi de imediato este Menino Jesus rechonchudo e consegui com algum esforço redescobri a sua caminha encafuada num armário.
O Menino Jesus está deitado numa cama do tipo "lit bateau"

Enquanto o menino Jesus é seguramente coisa do século XVIII, constatei agora que caminha é uma peça mais moderna. É uma cama ao estilo Império ou Restauração (1800-1830), aquilo que os franceses chamam um lit bateau, pois inspira-se nas formas de um barco, mas provavelmente até é mais tardia, talvez no final do XIX ou início do Século XX. O colchão terá sido confeccionado por alguma antepassada cheia de devoção.

O menino deitado no colchão colchão capitonné em seda


Sempre achei que este Menino Jesus era uma daquelas imagens de devoção muito popularizadas pelos conventos femininos no século XVII e XVIII, em que as irmãs costuravam enxovais completos para vestir o Santo Menino, com capas, roupa interior, sapatinhos, chapéus e encomendavam até a um marceneiro camas e cadeiras, que reproduziam os modelos de mobiliário da época. Até já mostrei aqui alguns exemplos dessas móveis em miniatura, destinados ao Menino Jesus e que pertencem à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga.

Para além dos conventos, esta peculiar devoção ao Menino Jesus difundiu-se pela sociedade, prolongou-se pelos séculos XIX e mesmo XX e as famílias mais abastadas tinham sempre um ou mais destes Meninos Jesus, com vestidinhos em seda bordados a ouro e prata ou deitados numa caminha. Como refere Ana Alcoforado no catálogo da exposição "O Menino dos Meninos" O contraste entre a inocência e felicidade do Menino e o horror do sacrifício ao qual estava predestinado, emocionava os corações, levando à multiplicação de imagens com esta tipologia.

O orifício para colocação do resplendor

Contudo, resolvi mostrar esta imagem aos meus colegas do Museu Nacional de Arte Antiga, Anísio Franco e Maria João Vilhena, que me confirmaram tratar-se de uma peça do século XVIII e me chamaram a atenção para uns quantos pormenores. A imagem apresenta um buraquinho no alto da cabeça para a colocação de um resplendor e o corpo do menino Jesus foi repintando. Por último e o mais importante, o Anísio Franco reparou que o menino Jesus, apresenta um orifício em forma triangular entre as nádegas, o que indica, que estaria fixo por um espigão a uma peanha ou a outra imagem, quem sabe se uma Nossa Senhora ou até mesmo um Santo António. Portanto este Menino Jesus, não era para ser visto deitado numa caminha, mas sim na posição vertical.
No rabiosque no menino há um pequeno orifício em forma triangular, revelando que estaria fixo por um espigão a uma peanha ou a uma outra imagem, talvez uma Nossa Senhora ou a um Santo António. 


Num momento qualquer, que nunca conseguirei precisar, a peanha perdeu-se ou alguém retirou esta imagem de uma Nossa Senhora e o Menino Jesus do século XVIII foi disposto numa cama ao gosto Império ou Restauração.

As obras de arte vão sendo modificadas ao longo dos tempos e quando chegam às nossas mãos já são diferentes do momento em que saíram da oficina do pintor, do santeiro ou do marceneiro e agora não sei se deva respeitar a colocação do Menino Jesus na caminha, como estava em casa dos meus pais ou arranjar uma peanha para o colocar em pé, para corresponder melhor a forma para a qual ele foi concebido.




Alguma bibliografia:

O Menino dos meninos / textos Ana Alcoforado. - Coimbra : Museu Nacional de Machado de Castro, 2007

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Uma vue d'optique de Bruxelas do início do século XIX



O meu pai sempre me dizia que quando não se tem dinheiro para comprar boa pintura, é sempre preferível adquirir gravuras, do que reproduções industriais de quadros célebres ou óleos de má qualidade. Por um preço aceitável ou mesmo muito em conta é possível encontrar gravuras impressas nos séculos XIX, XVIII e até do XVII nos mercados de velharias.

E com efeito cresci numa casa com estampas na parede, aprendendo a gostar a gostar delas e quando o meu pai morreu, escolhi umas quantas para decorar o meu apartamento de uma assoalhada e meia.

Uma das que seleccionei foi esta Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles, uma gravura aguarelada, que me pareceu de imediato coisa do início do século XIX, a julgar pela indumentária das personagens, que se passeiam em frente ao edifício dos Estados Gerais, ou melhor dizendo do Parlamento.


No topo, o título da gravura apresenta-se com as letras invertidas, o que indica de imediato que se trata de uma vista óptica. As vues d’optique como eram conhecidas em francês, eram gravuras destinadas a serem visualizadas numas caixas ópticas, que davam uma sensação de perspectiva e profundidade a quem espreitava para dentro delas, conforme já expliquei no meu post de 24 de Setembro de 2013. Como as caixas ópticas ou zogroscópios continham um espelho, as imagens eram visualizadas invertidas e as legendas das vues d'optiques eram então impressas da direita para a esquerda.




Uma Caixa Óptica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Reparem que no tabuleiro de baixo está a estampa.


Estas vues d’optique fizeram a sua aparição em meados do século XVIII em plena altura do grand tour, essa grande viagem, que os ingleses abastados faziam a Itália para se instruírem e os seus impressores inspiram-se nas vedutas, isto é, as pinturas ou gravuras com vistas dos monumentos de Roma ou Veneza, que os turistas britânicos compravam naquele país. Contudo, além do título invertido, as vistas de óptica apresentavam características próprias, distintas das outras gravuras. Eram montadas sobre cartões, os pontos de fugas e perspectivas eram muito bem definidos, as cores fortes eram usadas nos planos mais próximos e as mais suaves nos planos longínquos e normalmente representavam vistas de arquitectura, monumentos, praças, igrejas, palácios ou parques. A ideia era que quando colocadas nas caixas ópticas e vistas através de espelhos e lentes, estas gravuras pudessem criar uma ilusão de profundidade. Algumas delas eram até picotadas e quando se colocava uma luz a azeite ou óleo no aparelho, o espectador ficava com a ideia de ver a praça de uma qualquer cidade iluminada à noite.

Uma vista de óptica noturna. Foto de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières:


As vistas de óptica tornaram-se populares na Europa e eram usadas com fins científicos, para o estudo da arquitectura, das leis da perspectiva e da óptica ou para que os estudantes pudessem ampliar a sua visão do mundo, educando o gosto. O nosso Museu da Ciência da Universidade de Coimbra conserva uma colecção notável destas caixas ópticas. Mas estas gravuras e respectivos instrumentos de leitura foram também coleccionados por famílias nobres ou de grandes burgueses como forma de elevada distracção ou para educação ou dos seus filhos. Apesar de a partir de 1830, a produção das gravuras com vistas de óptica ter começado a decair, o seu uso manteve-se nas feiras pelo século XIX fora, onde por uma simples moeda, pessoas que nunca tinham saído da sua região podiam espreitar nos zogroscópios vistas de Paris, Roma, Bruxelas ou Londres.

À Paris, chez Basset, Rue de St. Jacques, nº 64

Quanto à minha estampa foi impressa em Paris, no Basset, na rua de São Jacques, nº 64, conforme se pode ver no canto inferior esquerdo. A cidade de Paris era um dos principais centros impressores destas estampas e a maioria deles tinham oficina na Rua de São Jacques. Na Biblioteca Nacional de França encontrei a notícia de autoridade referente a este Basset. Trata-se de Paul-André Basset (1759-1829) um impressor e comerciante de estampas, vistas ópticas e papéis pintados. Através deste registo consegui perceber, que a oficina de Paul-André Basset esteve no nº 64 da Rue de St. Jacques entre 1805 e 1817. Até lá estava no número 670 da mesma rua. Portanto esta «Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles» parece ter sido impressa entre 1805 e 1817. 

Dembour et Gangel edits à Metz


Contudo, no canto inferior direito existe uma segunda referência “Dembour et Gangel edits à Metz”, que se reporta à associação dos editores Adrien-Népomucène Dembour e Gangel, formada em 1840. Possivelmente, a casa Dembour et Gangel de Metz reeditou por volta de 1840 uma estampa mais antiga da casa Paul-André Basset, datada entre 1805 e 1817. A minha vue d'optique de Bruxelas será então da última fase da produção deste tipo de estampas.

Foto retirada de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières:


Actualmente as vistas ópticas parecem-nos um pouco ingénuas. Mas é porque as vimos a olho nu, sem ser através de uma lente e um espelho. Além disso, hoje em dia andamos sempre de mala aviada viajando de Paris para Tóquio, fazendo escala em Tel-Aviv e temos os olhos saturados de imagens da internet ou da televisão, sem esquecer os milhares de fotografias partilhadas através dos telemóveis. Mas por volta de 1840, quando esta estampa foi editada viajava-se pouco e havias poucas imagens disponíveis sobre Paris, Berlim, Roma ou Londres e espreitar pela lente de uma destas caixas ópticas era ver um mundo novo.


Algumas obras e links consultados;



Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières: les collections montpelliéraines de vues d’optique au château de Flaugergues. - Perpignan: Direction régionale des affaires culturelles du Languedoc-Roussillon, 2014

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Tempus fugit


Tenho escrito pouco no blog. Tenho muitas ideias para novos posts, mas tem-me faltado o tempo. O meu pai morreu recentemente e estamos a dividir o recheio da casa, o que dá sempre trabalho. É preciso escolher, embalar, transportar e depois em minha casa, há que limpar, polir e encontrar um lugar para os objectos e acreditem, que isso não é nada fácil, na minha assoalhada e meia pejada de velharias. Uma nossa senhora ou uma caixinha de prata acharam de imediato o seu lugar como que por magia ou talvez, melhor ainda, porque no meu apartamento repliquei aspectos da decoração da casa dos meus pais e estas peças estavam como que em falta. Outras ainda, como gravuras antigas ainda estão à espera de um lugar

Desmanchar a casa de um pai é por vezes um trabalho penoso. Noutro dia abri um roupeiro onde estavam as camisas, as gravatas e as calças do meu pai e senti ali a sua presença, vestido com aqueles casacos fininhos com os quais morria de frio e aquelas roupas tão características da sua personalidade de quem não ligava nada a modas e achava um desperdício gastar dinheiro em trapos. Acabei por me emocionar.

Mas ao mesmo tempo sinto também que estou a dar continuidade ao trabalho de arquivista e compilador da história da família, desenvolvido pelo meu pai depois de se reformar. 

Encontrei a colecção de jornais onde o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio colaborou. São periódicos do segundo quartel do século XIX, publicados em Chaves e que não se encontram digitalizados em nenhuma biblioteca. Mas dessa colecção o meu pai fez uma relação, que até já foi publicada na Aquae Flavie, mais exactamente na adenda ao nº 56, de Junho 2018 dessa revista. Em todo o caso eu nunca li nenhum desses textos do meu antepassado e sinto a maior das curiosidades por conhecer o pensamento desse homem, que foi pregador, numismata, jornalista, coleccionador de objectos arqueológicos e membro do círculo de intelectuais, padres, professores, médicos, que José Leite de Vasconcelos montou por todo o país e que lhe davam notícia de todos os monumentos, ruínas, moedas romanas ou machados neolíticos da sua região.

José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935)


Existem ainda todos os jornais onde a minha avó, Maria Montalvão Cunha, escreveu. Terei que me encher de paciência, recortar o cabeçalho do jornal, o respectivo artigo e colar num caderno e fazer um pequeno catálogo e eliminar o resto do jornal. É certo que a minha avó Mimi não era propriamente uma Yourcenar, mas seria uma pena perder esse trabalho de anos e tenho interesse em ler tudo o escreveu.

Por fim, encontrei uma serie de documentos, que conhecia vagamente a existência, mas que o meu pai nunca me tinha mostrado, a correspondência entre os meus trisavôs, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), Ela era uma fidalga de uma família conhecida em Chaves e ele, um padre e dois viveram um amor ilícito, do qual conheço apenas os contornos gerais.

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)


Estas cartas já tinham sido mais ou menos organizadas por correspondentes pela minha avó Mimi, que fez pequenos maços atados por um cordel. O meu pai estava a dar continuidade a este trabalho, acondicionando cada carta numa pastinha, fazendo o sumário e identificando as datas, mas faltou-lhe o tempo e terá talvez tratado apenas uns 5 por cento daquilo, que calculo serem umas duzentas cartas. Creio que a ideia dele seria mostrar-nos o trabalho só depois de concluído. Agora cabe-me me a mim, prosseguir esse trabalho, que se arrasta há três gerações, de inventariação e leitura das cartas, bem como do seu correcto acondicionamento, o que certamente me levará anos. A inventariação, catalogação de espólios documentais é sempre um processo minucioso e por vezes monótono, que implica decifrar caligrafias antigas, encontrar datas, fazer pastinhas, numerar e arrumar em caixas francesas.

É um desafio fascinante entrar no mundo e nos segredos dos amores ilícitos do padre e da fidalga no segundo quartel do século XIX e conhecer a história da família e oxalá o tempo não me fuja, como aconteceu ao meu pai e à minha avó, antes de concluir catalogação e leitura destas cartas.

"Cartas do avô Dr. Liberal Sampaio para a mãe do papá D. Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Fala do nascimento do Papá". Assim identificou este  maço de cartas a minha avó Mimi com a sua bela caligrafia angulosa


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Um Senhor Morto em marfim


Trouxe de casa do meu pai, esta pequena escultura representado o Jesus Cristo morto. Sempre me lembro de ver este Jesus por casa dos meus pais deitado numa almofadinha de seda capitonné, cuidadosamente confeccionada por alguma bisavó ou por outra qualquer antepassada cheia de devoção. Há quem ache esta representação do Senhor Morto macabra, mas eu gosto de beatices e sou sensível ao carinho e à devoção que gerações de pessoas experimentaram perante esta imagem do tamanho do dedo de uma mão.

Quando cheguei a casa com este pequeno objecto, decidi deitar fora a almofadinha, que infelizmente, estava completamente esfarrapada e examinei a imagem com atenção. O Cristo tinha uma cor acinzentada, que eu achava ser uma policromia intencional da madeira, tentando reproduzir o aspecto de um cadáver. Porém quando virei a esculturazinha ao contrário e observei a parte menos exposta ao pó de dezenas de anos, encontrei a cor amarelada inconfundível do marfim. Agarrei então num algodãozinho húmido e num cotonete e limpei aquela a cor acinzentada toda, que afinal era sujidade e apareceu a beleza toda do marfim.


Como era marfim suspeitei que fosse algum trabalho indo-português, tão comum nas casas portuguesas senhoriais. Presumo que este pequeno Cristo tenha vindo do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco, pois do lado da minha mãe não tinham pergaminhos para ter marfins em casa.

Andei a consultar alguma bibliografia sobre marfins indo-portugueses e encontrei umas peças semelhantes no catálogo A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991 onde confirmei que de facto este Cristo é um trabalho feito no Oriente, provavelmente em Goa, no Ceilão ou noutra parte da Índia, no século XVIII. 

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


Estes jesus mortos, que por vezes chegaram aos nossos dias sozinhos, fizeram em tempos parte de conjuntos, isto, é calvários, representando Cristo crucificado em agonia e na base da cruz, S. João Evangelista, Nossa Senhora, Maria Madalena, varias cenas da Paixão e no nicho mais inferior, o Senhor Morto. Estes calvários montados em madeira com as figuras em marfim eram como se fossem um auto, uma representação teatral abrangendo os vários momentos da Paixão de Jesus.

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


O tempo foi desfazendo estes calvários, que chegaram até nós muitas vezes incompletos. Eu fiquei apenas com a pequenina figura deste Senhor Morto, que evoca o recheio de uma casa senhorial, com belas peças indo-portuguesas, mas também o meu próprio pai. Talvez a razão da extraordinária devoção da paixão de Cristo no Ocidente, e pelos vistos também na Índia, seja precisamente essa ideia de que o corpo de Jesus é afinal o nosso filho, pai ou irmão cuja morte lamentamos e choramos.

Uma caixinha francesa antiga tornou-se a nova morada do Senhor Morto


Alguma bibliografia:

A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991

Marfins d'além-mar no Museu de Arte Antiga = Overseas ivory in the Museu de Arte Antiga. - Lisboa : Crédito Predial Português, [1988]

E ainda um agradecimento especial à Ana Kol

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Susan: protagonista de uma peça de teatro em 1829



Esta estampa retratando uma jovem elegante vestida à última moda da terceira década do século XIX veio de casa do meu pai. Apresenta um título, Susan e o local e nome do impressor, London, J. Fairburn. Sempre achei muita graça à garridice desta personagem e perguntava-me a mim próprio, quem teria sido esta Susan. Não me parecia propriamente o retrato de uma cortesã, nem tão pouco tinha o aplomb de uma jovem aristocrata. Aparentava mais ser uma costureirinha engalanada para sair ao Domingo com o namorado

Estampa representando Susan à venda no Rubylane

Fiz então uma pesquisa no Google por Susan Colour print J. Fairburn e à primeira tentativa encontrei uma estampa igual e acompanhada por uma explicação muito completa. Na verdade esta Susan era a personagem de uma peça de Douglas Jerrold, intitulada Black Eyed Susan, os Olhos negros de Susana  que teve um sucesso louco em Londres em 1829. Esta comédia popular passada no tempo das guerras napoleónicas tinha por protagonistas o marinheiro William e a sua amada Susan e foi apresentada 400 vezes nesse longínquo ano de 1829

Nesta primeira metade do século XIX existiam uns quantos impressores e gravadores em Inglaterra, que se especializaram em editar estampas baratas representando personagens de peças de teatro em voga, que o grande público comprava em grandes quantidades. Contudo essas estampas coloridas tinham uma particularidade. Eram vendidas em duas modalidades diferentes, a primeira com aplicações de folhas estanho em tons berrantes imitando ouro e tecidos ricos e a segunda, na versão simples, que as pessoas nas suas casas, poderiam personalizar, aplicando contas, missangas, papel de lustro ou restos de tecidos. Em Inglaterra designam este tipo de gravura por tinsel print, o que traduzido à letra, significa gravura de ouropel.

A estampa à venda nos EUA foi personalizada com a aplicação de restinhos de tecidos, missangas e contas

Por essa razão a minha estampa é ligeiramente diferente da que encontrei à venda no portal de antiquários americanos Rubylane. Nessa gravura alguém aplicou um tecido no corpete da Susan, umas missangas a sugerir os botões e umas contas no pescoço a imitar um colar.

A estampa foi impressa por John Fairburn (fl.1789-1840) 

O autor desta estampa, John Fairburn (fl.1789-1840) foi um impressor e livreiro inglês sedeado na rua Minories em Londres e que se dedicou à produção de caricaturas, mapas e estampas baratas como esta, que deve datar da altura da apresentação da peça em 1829.

Outra personagem da peça Black Eyed Susan, a Miss Scott, impressa por A. Park. Colecção do Victoria and Albert Musem

Estas gravuras cujo desenho de base é simples e sem grande arte e que na altura se vendiam por um penny apenas são hoje raras, pois quando passaram de moda, as pessoas desfizeram-se delas. Por isso são procuradas pelos coleccionadores, sobretudo quando foram personalizadas pelos antigos proprietários, com restinhos de tecido, contas e outros brilhos falsos. A minha estampa é a versão mais elementar, simplesmente colorida, mas gosto dela, pois imagino que uma flausina em Londres, por volta de 1829, teria o ar desta Susan.



Alguns links consultados:

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Doze anos de velharias do Luís



O blog velharias do Luís completa hoje doze anos. Nem sei como o mantenho há tanto tempo. Creio que necessito deste exercício espiritual de escrever, fazer alguma investigação sobre velharias ou história familiar. De outra forma a minha vida seria bem mais triste, marcada por um quotidiano banal entre a casa e o emprego.

Estes aniversários são também um momento de reflexão sobre o que me leva a encher um apartamento minúsculo com tanta gravura, pratos, porcelanas, candeeiros, espelhos, fotografias, bibelots e outras traquitanas. Não sou um coleccionador no sentido clássico do termo, que escolhe uma época ou uma área temática, por exemplo pintura de retrato e se especializa nesse campo. Eu compro um pouco de tudo e de quase todas as épocas, desde que não seja arte contemporânea e o principal critério parece ser a dimensão, isto é, desde que seja pequeno e antigo e caiba na minha casa.

Mais do que um coleccionador, sou um criador de ambiente. Preciso de ter um espaço decorado à minha medida, de acordo com a minha personalidade, o meu gosto e o interesse pela história.

Mas esta acumulação de velharias é igualmente uma tentativa de recriar na minha assoalhada e meia antigas casas antigas de família, que marcaram a minha vida, como se quisesse reviver todos os dias aqueles sítios e as pessoas que lá viveram e morreram. Da casa da minha avó em Chaves, copiei um certo ar de paço episcopal com móveis do século XVII, ao gosto desse século ou em estilo D. João V, cobertos de damasco vermelho. Depois fui mais longe nesse gosto eclesiástico e enchi tudo com santos, santinhos e outras beatices. As memórias já um pouco esbatidas do interior do Solar de família Montalvão em Outeiro Seco, inspiram-me para mandar fazer um tecto de masseira, que confere ao meu apartamento o ambiente de uma residência fidalga, mas à escala de uma casa de bonecas. 



Nesse solar, existia uma colecção de gravuras antigas representando os reis de Portugal e da qual herdei apenas três retratos. Aos poucos fui comprando mais gravuras dessa temática, como que tentando reconstituir essa colecção, de que nem sequer me lembro de ver na casa. Só conhecia a sua existência através das conversas da minha avó Mimi e do meu pai. Também do recheio dessa casa recebi uma dúzia de porcelanas da Vista Alegre do século XIX, decoradas com florinhas e filetes dourados. Claro, depois disso, comprei mais uma vintena de chávenas, pratos, leiteiras e açucareiros dessa época e estilo.



Da casa de da família em Vinhais, na qual passei sempre férias de Verão, reconstitui um canto da sala de estar onde existe um comprido armário cheio de fotografias de família de todas as gerações. Aliás, sempre que nascia uma criança nova na família, toda a gente se apressava a mandar uma fotografia do rebento à Tia Lalai, para que a tia a colocasse naquela galeria. O meu gosto pela faiança Cantão popular começou também nesta casa, onde na sala de jantar está pendurada uma travessa deste motivo decorativo.



Ao longo destes anos andei a completar, reconstituir ou recriar ambientes das casas de família, mas neste momento ultrapassei em muito os modelos originais e a minha casa tornou-se qualquer coisa de único, que só podia ser do Luís Montalvão.

As memórias das casas antigas e dos que lá viveram e deixaram esta vida continuam aqui neste apartamento, como se eu tentasse capturar esse tempo, que passou irremediavelmente. É um ambiente reconfortante, um refúgio, mas algumas vezes doloroso, quando me recorda que a morte está sempre presente. Mas esse convívio entre o passado e o presente é a essência da própria vida.

sábado, 25 de setembro de 2021

Sto. Epifânio de Salamina: uma estampa do século XVII

Santo Epifânio de Salamina

Para quem gosta de coisas antigas, mas tem um orçamento reduzido, comprar gravuras é uma boa opção. Nos mercados de velharias ninguém lhes ligada nada e adquirem-se gravuras do século XVIII ou até mais antigas por preços irrecusáveis e se tivermos sorte, até estão bem emolduradas.

Muitas gravuras que se encontram à venda foram arrancadas de livros, pois alguns alfarrabistas ou vendedores de velharias fazem mais dinheiro vendendo as estampas à unidade do que pelo livro inteiro. Descobrir de que livro foi retirada esta ou aquela estampa é para mim uma charada, que me dá um enorme prazer resolver.

Esta estampa que o meu amigo Manel comprou representando, Santo Epifânio de Salamina não escapa a essa excepção e foi também tirada de um livro. O lado direito da estampa está até um bocadinho rasgado, pois quem fez esse trabalho, há cinquenta ou 60 anos nem sequer se preocupou em ir buscar uma tesoura ou um bisturi. Rasgou a página e pronto.
A estampa foi rasgada de um livro num momento qualquer desconhecido 

Para tentar descobrir de que livro saiu esta página, com a representação deste bispo Epifânio (ca. 315-403), fotografei a gravura e carreguei a imagem no Google images, pressionei a tela enter e o motor de busca foi buscar todas as imagens iguais existentes na internet. Encontrei duas ou três imagens iguais, mas num daqueles repositórios, que comercializam fotografias de obras de arte e que não fornecem quaisquer dados sobre os autores, as datas ou locais de impressão ou edição. Presumo, que só quando se compra imagem através do cartão de crédito é que esses repositórios indicam mais alguns dados.

Mas como não gosto de me deixar vencer por vendilhões na internet continuei as minhas buscas e na página facebook de uma senhora, que anunciava uma conferência sobre Sto. Epifânio de Salamina, encontrei uma gravura igual inserida ainda no livro original. Contudo a Senhora não identificava o título do livro. Copiei a imagem, ampliai-a e consegui perceber de que se tratava da obra completa, ou a Opera omnia de Epifânio de Salamina, uma edição em dois volumes feita na cidade de Leipzig, por Jeremiae Schrey, & Heinrich. Joh. Meieri, em 1682. Pesquisei então na internet e encontrei integralmente digitalizada esta obra na Biblioteca Nacional de Roma, que foi publicada em grego e latim. Contudo, não tinha esta estampa incluída. Achei isto muito estranho e voltei a fazer mais pesquisas quer pelo título transliterado do grego Tou en agiois patos ēmōn Epiphaniou episkopou Konstanteias quer pelo título latino até que encontrei um exemplar à venda desta edição de 1682 numa leiloeira de Estocolmo e este tinha a estampa logo antes da folha de rosto. Fiquei então com a ideia de o exemplar à venda em Estocolmo estaria completo e o da Biblioteca Nacional de Roma truncado, o que acontece algumas vezes. 

O exemplar à venda numa leiloeira de Estocolmo. Edição de 1682

Na minha experiência como bibliotecário, já apanhei edições antigas do século XVIII ou XVII em que lhes falta um caderno, o frontispício, ou mesmo uma ou outra gravura. Esta minha impressão foi confirmada, quando mais adiante encontrei outro exemplar digitalizado a partir do livro da Biblioteca Pública de Lyon em França e que incluía a estampa do nosso Santo Epifânio.

Paralelamente a estas pesquisas bibliográficas, fui também lendo alguma coisa sobre este Santo Epifânio, um teólogo do século IV, bem como sobre o padre Jesuíta, Denis Pétau ou Dionysius Petavius (1583-1652), que compilou as obra do referido Santo Epifânio, que tinham vindo a ser publicadas aqui e ali ao longo do século XVI. Apercebi-me então que esta edição de Leipzig da Opera omnia de Epifânio de Salamina preparada por Denis Pétau tinha sido publicada pela primeira vez em 1622, em Paris, pelos impressores Michaelis Sonnii, Claudii Morelli, et Sebastiani Cramoisy e claro, como sou curioso fiz uma nova pesquisa para consultar também esta obra e para surpresa minha continha a mesma estampa. 

Distribuição das páginas na edição de Paris de 1622. No verso da estampa está impresso um título. imagens da cópia digital da Biblioteca Nacional de França

Fiquei então com a ideia de que gravura do meu Amigo Manel tanto podia ser da edição de Paris de 1622, como da Leipzig de 1682. Mas comparando on-line melhor as duas edições, percebi que na estampa da obra publicada em Paris tem um título a negro do outro lado da folha. Na obra impressa em Leipzig a gravura não apresenta quaisquer letras impressas no verso, tal como a estampa do meu amigo. Portanto a gravura de Santo Epifânio do Manel foi retirada da edição de 1682.

A distribuição das páginas no exemplar da Bibliothèque municipale de Lyon, da edição de 1682. No verso da estampa não há caracteres impressos

Enfim tudo isto aos nossos olhos contemporâneos parece obscuro e bizantino, mas este Sto. Epifânio de Salamina foi um teólogo conceituado no século IV da nossa era, que escreveu sobretudo sobre as heresias numa época em que o cristianismo ainda se estava a definir, se discutia o dogma da Santíssima Trindade e a divindade de Cristo e os textos dos evangelhos, que faziam fé ainda não tinham sido inteiramente definidos. No espaço do antigo Império Romano proliferavam então diferentes interpretações do Cristianismo e muitas vezes estas discussões terminaram em verdadeiras guerras civis. Nos séculos XVI e XVII, com a reforma e a proliferação de das igrejas protestantes na Europa, a obra de Sto. Epifânio de Salamina ganhou um acrescido interesse entre os teólogos católicos e o padre Denis Pétau, um estudioso de autores gregos cristãos decidiu então publicar a sua obra completa, da qual esta estampa fez um dia parte.
Santo Epifânio de Salamina, 1682


domingo, 12 de setembro de 2021

Nossa Senhora em espuma de mar


Encanto-me com as pequenas imagens religiosas francesas de finais do século XIX, normalmente encaixilhadas numa moldura oval e com o vidro abaulado ou bombé, como se fiz em francês. Eram imagens que se traziam dos centros de peregrinação em França como Lourdes ou La Salette ou que se vendiam em casas de artigos religiosos. Ao contrário do que se pensa, a França não exportou só para o mundo revoluções, jacobinismo, movimentos artísticos arrojados e ideias de liberdade ou de libertinagem. Durante o século XIX, uma boa parte da França continuava profundamente católica e abundavam naquele país casas de artigos religiosos, que exportavam os seus santinhos, pagelas e livros piedosos para o todo o mundo apostólico e romano.

Há muitas imagens destas à venda na net e há sempre uma certa confusão sobre o material em que são realizadas. Normalmente são vendidas como sendo espuma de mar, em francês, écume de mer e em alemão, meerschaum, termo também usado pelos ingleses. Esta espuma de mar é um mineral branco, uma sepiolita, que faz parte do grupo das argilas. É um material fácil de trabalhar e adequado à escultura. Contudo, alguns sites de venda on line, como o americano rubylane, indicam que o material é a Terre à pipe ou terre de pipe, o nome antigo de uma argila plástica ou de um caulino, todos eles propícios à realização de trabalhos minuciosos de escultura. Outros ainda são vendidos como gesso. Estes últimos são relativamente fáceis de identificar pois são sempre mais branquinhos que os outros. Agora saber se são feitos em sepiolita, terre de pipe ou caulino é demasiado complicado para mim que não entendo nada de mineralogia, mas fiquei com a ideia que estes três minerais são relativamente próximos uns dos outros.

Esta nossa Senhora é de dimensões reduzidas

Esta nossa Senhora em espuma de mar ou terre de pipe de dimensões reduzidas é um trabalho muito minucioso e tem uma cor vagamente amarelada, que faz até lembrar o marfim. A minha peça não está no seu contexto original, perdeu a sua moldura original oval, com o vidro bombé



No verso tem dois espigões o que me levou a pensar que estaria encaixada numa estrutura côncava também em espuma de mar e que lhe serviria de cenário, com uma nuvens representadas, uns raios de luz divinos e uns anjinhos. Porém encontrei num desses sites de partilha de imagens, https://www.picuki.com/media/1736802531030081519, uma nossa senhora igual, que pertence a uma senhora ou senhor australiano, que se encontra em Brisbane. De facto, a minha imagem, nunca teve nenhum cenário e falta-lhe apenas a moldura oval e o vidro abaulado.

Este seria o aspecto original da minha Nossa Senhora. Foto de https://www.picuki.com/media/1736802531030081519


Quanto à iconografia não consegui perceber, a que devoção mariana ou a que santuário mariano em França, esta peça se reporta. Contudo quando mostrei esta foto a um amigo, o Daniel, ele identificou-a imediatamente como tendo sedo inspirada directamente na Imaculada de Soult, também conhecida por Imaculada Conceição dos Veneráveis, uma pintura do espanhol Murillo, datada de cerca de 1678. 
Imaculada de Soult, de Murillo. Museu do Prado. Foto Wikipédia

Esta pintura tem uma história muito curiosa, pois foi concebida originalmente para o Hospital de los Venerables, em Sevilha, mas em 1813 durante as invasões francesas, foi roubada e levada para França, pelo Marechal Soult, esse senhor que também fez umas belas patifarias por Portugal. Depois da morte do Marechal em 1851, os herdeiros venderam à pintura ao Museu do Louvre em 1852 por uma verdadeira fortuna. A Imaculada Conceição dos Veneráveis esteve exposta no Louvre até 1941, ano em que o Marechal Petain, a devolveu a Espanha, juntamente com a célebre Dama de Elche.

Em suma durante a segunda metade do século XIX, esta pintura do Murillo este exposta no Louvre e algum fabricante de artigos religiosos de Paris viu-a, encantou-se com ela e teve a ideia de a reproduzir em espuma de mar e vende-la como uma imaculada qualquer venerada nalgum santuário francês. Enfim, esta é a minha teoria, que não sei se será exactamente verdadeira.

O material tem uma cor amarelada, que em alguns ângulos de luz parece quase marfim 

Agora faltava apenas descobrir uma moldura oval e alguma casa que ainda faça vidros abaulados, para devolver a esta pequena escultura o seu aspecto original.

Alguns links consultados: 



sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Velharias do Luís no Museu Nacional de Arte Antiga ou uma escultura em biscuit arte nova



Aqueles que acompanham regularmente o velharias do Luís sabem bem que é uma página muito pessoal, onde apresento peças minhas ou de amigos ou então fotografias antigas, que servem como mote para contar velhas histórias de família.

Mas como sou bibliotecário no Museu de Nacional Arte Antiga, a direcção deste museu convidou-me a participar no programa DAR A VER: a escolha do conservador para falar sobre uma peça da colecção de cerâmica do MNAA.

A ideia deste projecto é dar a conhecer ao público obras, que estão nas reservas do museu, colocando-as temporariamente em exposição e ao mesmo tempo produzir um vídeo, colocado ao lado da peça, que fornece ao visitante as explicações necessárias. Esse pequeno filme é disponibilizado na internet de forma a permitir a que todos tenham acesso aos tesouros do Museu Nacional de Arte Antiga, mesmo estando longe de Lisboa, como por exemplo no Brasil, em França ou nos Estados Unidos.

Pela minha parte escolhi um biscuit de Sèvres, concebido por Agathon Léonard, apresentado na Exposição Universal de Paris de 1900 e que é um ícone do movimento arte nova.

Convido-vos a todos a visualizar o vídeo sobre esta bailarina em biscuit e claro, a visitarem o Museu Nacional de Arte Antiga, onde está exposta, logo no átrio principal.



segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A alegria das cores: um prato de peixes possivelmente Bandeira



Já há muito tempo que o meu amigo Manel comprou este prato de faiança portuguesa do século XIX e eu andava com vontade de o apresentar aqui, pois é tão bonito. Mas, como é hábito na faiança portuguesa, não está marcado e é sempre um risco escrever sobre peças de faiança portuguesa sem qualquer identificação do fabricante, de modo que fui protelando a publicação deste post.

O prato não tem marca

Mas as cores com que está pintado são tão alegres e combinam tão bem com o Verão, que não resisti a escrever sobre ele.



Em primeiro lugar, acho uma graça louca ao motivo central, o peixe com o garfo e a faca, talvez porque ainda me lembre de ver este tipo de talheres como cabo em osso, a uso na velha casa de família de Vinhais. Recordo-me que nessa altura, na minha meninice, já tinham saído da sala de jantar e eram usados pelos criados. Mais recentemente, há cerca de uns vinte anos o meu pai salvou-os do lixo e resolveu, arranjar uma tábua de castanho e pendurar lá estes velhos talheres, semelhantes aos do prato. 

Os antigos talheres da casa de Vinhais

Também há aqui um pormenor curioso. A parte metálica do talher está representada num tom qualquer de amarelo. Até cheguei a pensar que quem pintou este prato pretenderia reproduzir um talher numa liga qualquer de cobre com um tom dourado. Mas fiz alguma pesquisa sobre estes pratos com peixes na base de dados do matriznet e encontrei uns quantos pratos atribuídos à Fábrica da Bandeira, com o motivo do peixe e talheres, com as partes metálicas dos garfos e facas pintadas a azul!

Prato do Museu Nacional de Soares dos Reis

Portanto, quem pintava estes pratos estava mais preocupado com o efeito das decorativo das cores, do que propriamente com uma pintura realista dos objectos. Embora seja um ignorante em matérias de ictiologia, duvido também que nas costas portuguesas existam peixes vermelhos e azuis.

Aliás, este gosto pela cor, é também muito visível na orla do prato, com uma mistura de folhas e flores feitos à estampilha. Aliás, creio que esta decoração da orla do prato é característica da fábrica de Bandeira ( ca.1828- ca.1913), embora não tenha encontrado em livros ou na net nenhum prato com uma cercadura exactamente igual a esta. Mas também tenho ideia que as faianças portuguesas desta época, meados do século XIX, nunca são iguais. Embora usassem estampilha, cada peça era única, ou porque o motivo central variava, ora porque nas bordas os azuis, os amarelos ou os vermelhos mudavam de tom, consoante a preparação das tintas, que embora fossem feita segundo receitas, as cores nunca saiam rigorosamente iguais. Também a criatividade destes pintores de cerâmica era enorme, como é bem visível neste prato.


Meninos gordos / Isabel Maria Fernandes. Porto: Civilização, 2005


Enfim, este prato decorado com um peixe, talheres e flores em cores vivas terá sido fabricado em meados do século XIX, algures entre Gaia e o Porto, possivelmente na Fábrica de Bandeira.