sábado, 25 de setembro de 2021

Sto. Epifânio de Salamina: uma estampa do século XVII

Santo Epifânio de Salamina

Para quem gosta de coisas antigas, mas tem um orçamento reduzido, comprar gravuras é uma boa opção. Nos mercados de velharias ninguém lhes ligada nada e adquirem-se gravuras do século XVIII ou até mais antigas por preços irrecusáveis e se tivermos sorte, até estão bem emolduradas.

Muitas gravuras que se encontram à venda foram arrancadas de livros, pois alguns alfarrabistas ou vendedores de velharias fazem mais dinheiro vendendo as estampas à unidade do que pelo livro inteiro. Descobrir de que livro foi retirada esta ou aquela estampa é para mim uma charada, que me dá um enorme prazer resolver.

Esta estampa que o meu amigo Manel comprou representando, Santo Epifânio de Salamina não escapa a essa excepção e foi também tirada de um livro. O lado direito da estampa está até um bocadinho rasgado, pois quem fez esse trabalho, há cinquenta ou 60 anos nem sequer se preocupou em ir buscar uma tesoura ou um bisturi. Rasgou a página e pronto.
A estampa foi rasgada de um livro num momento qualquer desconhecido 

Para tentar descobrir de que livro saiu esta página, com a representação deste bispo Epifânio (ca. 315-403), fotografei a gravura e carreguei a imagem no Google images, pressionei a tela enter e o motor de busca foi buscar todas as imagens iguais existentes na internet. Encontrei duas ou três imagens iguais, mas num daqueles repositórios, que comercializam fotografias de obras de arte e que não fornecem quaisquer dados sobre os autores, as datas ou locais de impressão ou edição. Presumo, que só quando se compra imagem através do cartão de crédito é que esses repositórios indicam mais alguns dados.

Mas como não gosto de me deixar vencer por vendilhões na internet continuei as minhas buscas e na página facebook de uma senhora, que anunciava uma conferência sobre Sto. Epifânio de Salamina, encontrei uma gravura igual inserida ainda no livro original. Contudo a Senhora não identificava o título do livro. Copiei a imagem, ampliai-a e consegui perceber de que se tratava da obra completa, ou a Opera omnia de Epifânio de Salamina, uma edição em dois volumes feita na cidade de Leipzig, por Jeremiae Schrey, & Heinrich. Joh. Meieri, em 1682. Pesquisei então na internet e encontrei integralmente digitalizada esta obra na Biblioteca Nacional de Roma, que foi publicada em grego e latim. Contudo, não tinha esta estampa incluída. Achei isto muito estranho e voltei a fazer mais pesquisas quer pelo título transliterado do grego Tou en agiois patos ēmōn Epiphaniou episkopou Konstanteias quer pelo título latino até que encontrei um exemplar à venda desta edição de 1682 numa leiloeira de Estocolmo e este tinha a estampa logo antes da folha de rosto. Fiquei então com a ideia de o exemplar à venda em Estocolmo estaria completo e o da Biblioteca Nacional de Roma truncado, o que acontece algumas vezes. 

O exemplar à venda numa leiloeira de Estocolmo. Edição de 1682

Na minha experiência como bibliotecário, já apanhei edições antigas do século XVIII ou XVII em que lhes falta um caderno, o frontispício, ou mesmo uma ou outra gravura. Esta minha impressão foi confirmada, quando mais adiante encontrei outro exemplar digitalizado a partir do livro da Biblioteca Pública de Lyon em França e que incluía a estampa do nosso Santo Epifânio.

Paralelamente a estas pesquisas bibliográficas, fui também lendo alguma coisa sobre este Santo Epifânio, um teólogo do século IV, bem como sobre o padre Jesuíta, Denis Pétau ou Dionysius Petavius (1583-1652), que compilou as obra do referido Santo Epifânio, que tinham vindo a ser publicadas aqui e ali ao longo do século XVI. Apercebi-me então que esta edição de Leipzig da Opera omnia de Epifânio de Salamina preparada por Denis Pétau tinha sido publicada pela primeira vez em 1622, em Paris, pelos impressores Michaelis Sonnii, Claudii Morelli, et Sebastiani Cramoisy e claro, como sou curioso fiz uma nova pesquisa para consultar também esta obra e para surpresa minha continha a mesma estampa. 

Distribuição das páginas na edição de Paris de 1622. No verso da estampa está impresso um título. imagens da cópia digital da Biblioteca Nacional de França

Fiquei então com a ideia de que gravura do meu Amigo Manel tanto podia ser da edição de Paris de 1622, como da Leipzig de 1682. Mas comparando on-line melhor as duas edições, percebi que na estampa da obra publicada em Paris tem um título a negro do outro lado da folha. Na obra impressa em Leipzig a gravura não apresenta quaisquer letras impressas no verso, tal como a estampa do meu amigo. Portanto a gravura de Santo Epifânio do Manel foi retirada da edição de 1682.

A distribuição das páginas no exemplar da Bibliothèque municipale de Lyon, da edição de 1682. No verso da estampa não há caracteres impressos

Enfim tudo isto aos nossos olhos contemporâneos parece obscuro e bizantino, mas este Sto. Epifânio de Salamina foi um teólogo conceituado no século IV da nossa era, que escreveu sobretudo sobre as heresias numa época em que o cristianismo ainda se estava a definir, se discutia o dogma da Santíssima Trindade e a divindade de Cristo e os textos dos evangelhos, que faziam fé ainda não tinham sido inteiramente definidos. No espaço do antigo Império Romano proliferavam então diferentes interpretações do Cristianismo e muitas vezes estas discussões terminaram em verdadeiras guerras civis. Nos séculos XVI e XVII, com a reforma e a proliferação de das igrejas protestantes na Europa, a obra de Sto. Epifânio de Salamina ganhou um acrescido interesse entre os teólogos católicos e o padre Denis Pétau, um estudioso de autores gregos cristãos decidiu então publicar a sua obra completa, da qual esta estampa fez um dia parte.
Santo Epifânio de Salamina, 1682


5 comentários:

  1. Boa tarde.Tive o prazer de mais uma vez ler um texto seu e aprender mais um pouco.Obrigado pelo conhecimento que vai partilhando. Por acaso utilizei esse método do google para tentar localizar duas gravuras que possuo e que eram de família e tive uma agradável surpresa ao perceber que são parte de um conjunto e que até têm algum valor monetário. Pergunto eu é se o valor das gravuras, longe obviamente dos valores dos quadros pode variar e existirem algumas "arrancadas a livros" com pouco valor e outras que foram feitas para o efeito com
    algum valor. Gostava da sua opinião. Melhores cumprimentos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro ENFº Enfermo

      No geral a gravura não é muito valorizada, ao contrario de outras velharias. Por exemplo a faiança portuguesa do século XIX vende-se por preços altos.

      Mas os preços variam em função do sítio onde se compra. Um antiquário da Rua de São Bento venderá uma gravura antiga bem encaixilhada por um valor elevado, mas no chão de uma feira de velharias compra-se por vinte euros se for preciso. Da pratica que tenho de alfarrabistas, sei que gravuras com temas religiosos são menos procuradas e por isso os valores são mais baixos.

      A maioria das estampas foram retiradas de livros. Contudo, os registos de santos eram impressos e vendidos em folhas soltas. Também nos séculos XVII e XVIII editavam-se álbuns só de gravuras e penso, que serviam para o ensino das artes, mas também já os vendiam assim, para serem retalhados e emoldurados.

      Em suma o preço de uma gravura no mercado não tem a ver com o facto de ser tido retirada ou não de um livro. Tem a ver com a qualidade da estampa, com a temática e também com a qualidade da moldura.

      Um abraço

      Eliminar
  2. quadros subentenda-se -Pinturas .Peço desculpa pelo engano.

    ResponderEliminar
  3. É verdade, estas gravuras enganam-me.
    Quando a vi no chão da feira de Estremoz pensei que talvez fosse uma gravura do XIX, talvez, e se tivesse sorte, do XVIII, mas não acreditei lá muito, até que o papel não me parecia dessa época, mas ... que sei eu?
    Quanto ao santo, propriamente dito, não o conhecia.
    O termo Epifânia, no feminino, significava igualmente o dia de Reis, e, quando era criança, representava uma data alguns dias após o Natal, em que também se recebia prendas, especialmente em casa dos padrinhos da minha irmã, onde eu, por vezes, costumava passar esta data. Era um dia ótimo, pois também servia para receber mais alguns presentes!
    Que o S. Epifânio existisse, isso era algo que não sabia, mas não é para admirar, eu, como não católico, não conheço a maioria dos santos celebrados pela igreja. É mais um!

    Quando desmanchei a moldura - que por sinal até era bonita, só que estava de tal forma cheia de corantes que escureciam a madeira, que os cantos, que são em pau santo, não se distinguiam - reparei que o papel era muito fino, e pensei (santa ignorância a minha em matéria de papéis) que fosse um papel contemporâneo.
    E, de repente, após a tua pesquisa fantástica, a idade da gravura recuou 3 séculos!!!!
    Claro que recuperei a moldura, adquiri cantos em latão, que ficam a matar sobre o pau santo, encerei bem a madeira, e ficou muito bonita.

    Como é possível que uma peça com 3 séculos esteja à venda no chão de uma feira.
    Ou os interesses das pessoas são totalmente diferentes, o que até percebo (quem quer saber da representação de um santo que viveu no tempo inicial do cristianismo?), ou pura e simplesmente, hoje em dia, não se liga a antiguidades, sobretudo gravuras (o que também compreendo), ou então as pessoas passaram a não perceber o que está à venda - o que, também entendo, pois eu próprio também não sou um estudioso da matéria, e tenho muitas falhas neste campo.
    Quando adquiro é por instinto, não por saber o que estou a comprar. Não foras tu e não faria ideia da peça que agora está lá por casa. Colocá-la-ia na parede, mas só porque me tinha agradado, e não por conhecimento.
    Agradeço-te pois, esta pesquisa, na qual és "uma máquina", pois consegues ir até à própria obra de onde foi retirada.
    É sempre um gosto ler-te
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Manel

      Estas pesquisas sobre gravura dão-me muito gozo e estou muito à vontade nelas, pois estou muito habituado a consultar os catálogos das grandes bibliotecas europeias e americanas.

      Só ribe pena de mão conseguir resultados com a identificação da marca de água do papel, pois é uma área que nunca explorei. Creio que conseguiria uma maior certeza sobre de que edição foi recortada esta estampa, se tivesse conseguido identificar a marca de água.

      Um abraço

      Eliminar