terça-feira, 31 de julho de 2018

Tampa de terrina de faiança inglesa: Village Church


Coleccionar velharias significa muitas vezes comprar peças desirmanadas, pires sem chávenas, puxadores de cómodas, pegas de banheiras ou cabeças de santos sem corpo. Normalmente essas peças desemparelhadas vendem-se a um bom preço e fazem colecções estranhas, mas sempre interessantes. Recordo-me que um amigo tinha uma colecção muito gira de urnas de madeira, provenientes de antigas camas, oratórios ou louceiros, todas colocadas em cima de uma cómoda ou arca antiga. Outras das colecções engraçadas que se pode fazer é de tampas de terrinas, que expostas em conjunto na parede de uma sala de jantar fazem um bom efeito.
 
O meu amigo Manel gosta de comprar tampas de terrinas de faiança portuguesa ou inglesa, que pendura nas paredes da sala de jantar. Recentemente comprou esta tampa, em faiança inglesa, com uma decoração muito cheia, em tons de azuis mais escuros, que caracteriza a produção britânica dos primeiros trinta anos do século XIX. O tema é também típico dessa época, uma cena rural envolvida numa bordadura de flores, com camponeses, uma torre de igreja, cottages e umas simpáticas ovelhinhas.
 
Foto retirada de https://www.blueandwhite.com
 
O problema é que uma tampa de uma terrina não está obviamente marcada e descobrir o fabricante não parecia tarefa nada fácil. Fui fazendo pesquisas por imagens no Google pela expressão english pottery 19th century, em combinação com country scenery ou domestic cattle e depois de ver uma centena de imagens de pratos e travessas com pastores, ruínas góticas, lagos, cavalos e vaquinhas acabei por descobrir num desses sites de venda on-line, que o nome deste padrão é o Village Church, do qual raramente aparecem poucas peças com uma identificação do fabricante e por conseguinte terá sido produzido por várias casas inglesas. Os poucos exemplares, que surgem marcados são da James and Ralph Clews, firma activa entre 1818 e 1834.
 
 
Consegui localizar na net uma terrina inteira do padrão Village Church. Fotos retiradas de http://www.sellingantiques.co.uk/271999/antique-english-georgian-blue-and-white-transfer-village-church-pattern-pottery-tureen-and-cover/
Fiz mais umas pesquisas na net, agora pelos termos Village Church e Clews pottery e tive tanta sorte, que encontrei uma terrina à venda deste padrão e pude assim ver como era bonito o conjunto formato pela terrina e pela tampa. Este padrão Village Church é realmente um bom exemplo do charme da faiança romântica inglesa dos primeiros trinta anos do século XIX.
A tampa de terrina do Manel terá sido produzida em Inglaterra entre 1818-1834, talvez pela James and Ralph Clews e o nome do padrão é o Village Church

 

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Como uma princesa persa foi transformada numa Madalena penitente

 
O meu amigo Manel comprou mais uma estampa, representando Santa Maria Madalena, que de todas as pecadoras arrependidas e canonizadas, é de longe a mais popular. Esta pequena gravura é uma representação típica da bela pecadora arrependida, vestida com trajes de cortesã, longos cabelos soltos e que medita ajoelhada diante de uma mesa, onde estão um crucifixo e uma caveira. No chão está uma caixa aberta com as jóias, de que ela se despojou e toda a cena é envolvida por uma cortina de luxo.
 
A gravura não está assinada e contem apenas uma legenda S. Maria Magdalena. Provavelmente os dados com a identificação do impressor foram cortados pela habilidosa Senhora, que encaixilhou a gravura. Abri a página da Sociedade Martins de Sarmento, o melhor site para identificar registos de santos e descobri uma estampa igual à do Manel, mas inteira, contendo os dados da impressão. A gravura foi impressa por Teotónio José de Carvalho, um senhor que esteve activo em Lisboa nos finais do XVIII, inícios do XIX e vendia-se na rua do Ouro, Loja 16B. Provavelmente uma boa parte dos compradores desta gravurazinha seriam frequentadores da Igreja da Madalena, que é ali nas imediações. 
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento

Mas não fiquei satisfeito e resolvi pesquisarem inglês e francês no Google sobre esta imagem daquela figura do Novo Testamento, designada antigamente em França por La Trés Sainte demoiselle pécheresse e os resultados foram surpreendentes. Encontrei duas placas de esmalte de Limoges, exactamente com o mesmo tipo de representação e ambas do século XVII. Há apenas pequenas diferenças aqui e ali. Como as placas são ovais, o pormenor da caixa de jóias foi cortado e sobre a mesa, acrescentaram o vaso de perfume, com o qual Madalena ungiu os pés de Cristo e que é um dos seus atributos mais característicos, de tal forma que ainda hoje, Maria Madalena é padroeira dos fabricantes de perfumes.
Imagem extraída do blog de Alain.R.Truong
 
Imagem extraída do site de vendas Aguttes 
Apesar de mais de um século separar a produção das placas de Limoges e a estampa do Manel, as três tinham algo em comum, a mesma fonte iconográfica, que suspeitei desde logo que pudesse ser uma gravura. E com efeito, num desses sites de venda on-line, o “todocoleccion.net”, encontrei uma gravura francesa com a mesma representação da Madalena, ajoelhada em frente à mesa e vestida exactamente da mesma forma. A estampa não está datada, mas parece-me coisa do XVIII.
Imagem retirada de todocoleccion.net
Continuando as minhas buscas, acabei por descobrir uma gravura mais antiga provavelmente do XVII, gravada por Nicolas Bazin (1633-1710), editada por Pierre Mariette II (1634-1716) e feita a partir de um desenho de Charles Le Brun (1619–1690) e que será muito provavelmente a fonte de inspiração das gravuras e dos esmaltes já mencionados.
Imagem retirada de https://picclick.fr/Gravure-ancienne-MARIE-MADELEINE-PLEURANT-Nicolas-BAZIN-253631299911.HTML
 
Charles Le Brun foi um pintor régio na Corte de Luís XIV, com uma vasta obra de pintura, desenho, gravura e cartões para tapeçarias. Pintou pelo menos duas Madalenas, uma que se encontra no Louvre, outra no Museu de Grenoble, mas não tem nada a ver com as imagens das estampas e dos esmaltes, que venho aqui referindo. Já estava a praticamente a desistir de encontrar a pintura, que deu origem a esta gravura, quando encontro no site do British Museum uma outra estampa com uma cortesã semelhante a esta e onde se refere, que esta figura ajoelhada, foi extraída de uma grande composição de Charles Le Brun, datada de 1661, que está no Palácio de Versalhes, representando a família de Dario aos pés de Alexandre o Grande.
 
A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande. Palácio de Versalhes
Em suma, o Senhor Charles de Brun ou o gravador Nicolas Bazin tiveram a ideia de reaproveitar a princesa da família de Dario, acrescentar-lhe um crucifixo, uma caveira e uma caixa de jóias e transformaram-na numa bela Madalena penitente.
Pormenor do quadro "A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande". A jovem que chora foi reaproveitada e transformada numa Maria Madalena Penitente 

 

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Um velho castanheiro, testemunha de amores do século XIX

A minha bisavó materna Maria da Graça esteve recolhida num convento desde que era menina até aos 29 anos. Já conhecia alguns pormenores da sua vida e até já tinha escrito sobre esta antepassada aqui no blog, mas este Verão resolvi juntar a família e visitar essa casa conventual, localizada numa aldeia perdida do concelho de Vinhais, a Mofreita.

Logo no cruzamento que dá acesso aquela aldeia, da estrada de que vem de Fresulfe, encontrámos um castanheiro várias vezes centenário, daqueles muitos que se encontram por todo o concelho de Vinhais e pensei, que certamente aquela árvore terá assistido à passagem da pequena Maria da Graça e do seu pai, em 1861, quando este a foi entregar ao Recolhimento das Oblatas, apenas com sete anos de idade.
 
A Maria da Graça era filha ilegítima de uma tal Balbina Felicíssimo e de Francisco Germano Pires e quando a mãe morreu, o pai resolveu interna-la no Recolhimento das Oblatas do Menino Jesus, instituição especializada em receber crianças pobres e órfãs. Pouco se sabe deste meu trisavô materno, mas o que a tradição familiar conservou da sua existência não é muito simpático. Seria um homem avarento, que emprestava dinheiro a juros e terá feito um casamento por interesse, com uma mulher mais velha e abastada, a Hilária, de tal forma, que na vila de Vinhais se tornou conhecido pela alcunha depreciativa do Hilário. A Maria de Graça viverá no recolhimento da Mofreita cerca de 22 anos e há uma fotografia dela e das suas condiscípulas no pátio daquela casa religiosa, que aos nossos olhos contemporâneos nos impressiona muito, já que algumas das recolhidas são meninas muito pequeninas e todo aquele ambiente que as rodeia nos parece muito pobre.
 
O recolhimento da Mofreita no século XIX
No entanto, no tempo que aqui passou Maria da Graça aprendeu a ler, a escrever e certamente algum francês, pelo menos o suficiente para ler um livro de bordados, Les jours sur toile, que ainda se conserva na casa familiar de Vinhais e que tem a sua assinatura. Para os padrões da época, em que quase 80 por cento da população portuguesa era analfabeta, a instrução que aqui recebeu foi bastante boa.
Les jours sur toile. Mulhouse: H. de Dillmont éditeur, [s.d.]. A minha bisavó terá aprendido no recolhimento algum francês, pelo menos o suficiente para ler um livro de bordados. Repare-se na sua assinatura

Segundo uma história já muito esbatida pelo tempo, mas que ainda corre na família, a Maria da Graça terá conhecido o futuro marido, Clemente da Ressureição, ainda aqui na Mofreita. Ao que consta, o meu bisavó Clemente teria um parente a viver nesta aldeia transmontana, numa casa que ainda hoje existe, um pouco mais acima do convento e numa das visitas que fez a esse familiar, do qual só se conhece o primeiro nome, Amândio, travou conhecimento com Maria da Graça, mas não sabemos em que circunstâncias. Talvez o primo Amândio tivesse no recolhimento alguma familiar e quando a visitou na companhia do Clemente, este último conheceu a Maria da Graça. Normalmente, as casas conventuais femininas tinham uma sala destinada a receber visitas, o parlatório, dividida por uma grade, onde de um lado ficam as noviças ou recolhidas e do outro, as visitas.
 
Imagem recolhida na net da Igreja do Recolhimento das Oblatas, na  Mofreita, onde se vê o local onde as recolhidas assistiam à missa.
Há cerca de uns trinta e tal anos, atrás o edifício do recolhimento não estava tão arruinado e entrei na Igreja do Convento e lembro-me de ver a grade que separava as recolhidas do resto das pessoas. Quem sabe se a Maria da Graça não passaria toda a Santa Missa olhando para o Clemente, que tinha uns belos olhos azuis. Enfim, só podemos fazer suposições, mas pelo menos é certo, que o Clemente da Ressureição nas suas idas e vindas à Mofreita teria passado pelo mesmo castanheiro centenário.
A casa do Amândio ainda hoje existe na Mofreita. Sabe-se que era parente do meu bisavô e e que chegou a Tenente
 
A Maria da Graça saiu do Convento por sua vontade com 29 anos e no caminho para Vinhais, onde foi novamente viver com pai, passou obrigatoriamente pelo mesmo castanheiro, que já era nesse tempo centenário. Viveu um ano e tal na companhia do pai, até que a 6 Junho de 1889, casou com o meu bisavô Clemente, tinha ele 31 anos e ela trinta, e com essas idades presumimos, que tenha sido um casamento feito por amor, além de que, segundo um pequeno caderno de memórias, que o meu bisavô deixou, foi uma união feita contra a vontade dos pais. Nos primeiros anos o casal terá vivido mesmo com dificuldades, já que nem os pais de um, nem de outro os ajudavam.
Maria da Graça já idosa. Reconheço nela o mesmos olhos e o mesmo queixo que eu tenho. 
Enfim, os tempos passaram e os pais lá aceitaram este casamento desigual e a Graça e o Clemente tiveram filhos, que por sua vez também tiveram outros filhos e de uma das netas do casal descendo eu. Também os meus filhos e eu passámos este Verão por debaixo do mesmo Castanheiro, que testemunhou a passagem dos meus bisavôs a caminho dos seus destinos.
 
O meu filho Henrique, trisneto da Maria da Graça e do Clemente, fotografando a árvore que viu passar os seus antepassados