domingo, 29 de novembro de 2015

Barro preto

 
Há cerca de uns doze anos comprei este grande recipiente de barro preto, em Vinhais, num senhor que vendia velharias. Foi uma peça bem regateada, pois o vendedor, presumindo que eu era um finaço qualquer de Lisboa, queria-me fazer um preço alto. Comprei-o a pensar coloca-lo logo à entrada de casa, para pôr os guarda-chuvas. O que ainda hoje estou para perceber, foi como consegui encaixa-lo no carro que tinha na altura, um Fiat Cinquento, juntamente com dois filhos, um bonsai, fraldas, brinquedos e a bagagem para 15 dias de férias e ainda fazer 550 km de regresso até Lisboa com aquela tralha toda.

Na altura que o comprei achava que era barro preto de Bisalhães, uma localidade próxima de Vila Real, em Trás-os-Montes. Aliás, todos nós associamos sempre esta louça preta a Bisalhães. Contudo, num passado ainda não muito longínquo, esta louça de barro preto era feita em quase todo País, a Norte do rio Tejo. A Sul deste rio, só há registo de duas localidades que faziam louça preta, Flor da Rosa e Pinhal Novo.

Mesmo em Trás-os-Montes, houve outros centros oleiros, além de Bisalhães a fazer peças deste barro escurecido pelo fumo, em particular Vilar de Nantes, ao pé da cidade de Chaves e umas quantas aldeias vizinhas, nomeadamente Samoiões, Agostém e Selhariz. Em Bragança, na aldeia Cavelhe, também se fez barro preto, mas ao que parece por um oleiro vindo de Vilar de Nantes.

A este propósito, li dois textos muito interessantes de Isabel Maria Fernandes, publicados respectivamente no catálogo A louça preta em Portugal, olhares cruzados. - Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 1997 e no nº 1 da revista Olaria. - Barcelos: Câmara Municipal de Barcelos, 1996, p 11-36, em que a autora além de fazer um levantamento de todos os centros produtores de barro preto, sistematiza as áreas geográficas, em que cada um deles conseguia comercializar os seus produtos, que naturalmente não era grande. As panelas, os cântaros e os púcaros eram transportados, às costas pelos homens, à cabeça pelas mulheres ou no dorso de animais de carga. Relativamente a Vinhais, as feiras desta vila eram frequentados pelos oleiros de Vilar de Nantes. Em suma, é mais provável que esta peça que eu comprei tenha sido executada por um pucareiro de Vilar de Nantes ou de uma das aldeias vizinhas.
 

Relativamente à função original que ele teve, eu que já fui criado na era do Tupperware tenho alguma dificuldade em identifica-la. Consultando os catálogos dos Museu de Etnologia, Arqueologia e Arte Popular acessíveis no Matriz.net, encontrei peças com formas idênticas, que são designadas por asados. Porém, também encontrei peças com este formato, com duas asas, mas designadas por panelas, embora apresentem menores dimensões, que este meu asado, com cerca de 37 cm de altura e 27 cm de diâmetro de área máxima no bojo. Presumo que fosse um utensílio para conter líquidos, já que tem um orifício a meio do corpo, tapado por uma rolhinha, que eu conservei. Aliás, tenho a ideia que as designações das peças de olaria variaram ao longo do tempo e também no espaço. Por exemplo, em Trás-os-Montes usava-se um termo com um nítido sabor galaico-português, o pichorro, para designar uma chocolateira. A própria palavra oleiro tem um uso relativamente novo. No passado, usava-se o termo pucareiro ou paneleiro para designar um oleiro. Só nos dicionários do século XX, o termo paneleiro parece com a conotação de pederasta sexualmente passivo, provavelmente por analogia entre as formas docemente arredondadas das panelas bojudas e as nádegas. As próprias panelas poderiam ter uma acepção mais vasta do que meros instrumentos para ir ao lume.

Em conclusão este asado, destinado a conter líquidos terá sido feito provavelmente em Vilar de Nantes, ou numa das aldeias vizinhas, num forno que era abafado, para o barro ganhar esta bela cor preta.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A casa de banho do velharias do luís na TV


 As minhas excentricidades decorativas, que tenho mostrado aos poucos neste blog, voltaram a interessar a televisão. Desta vez, a propósito do Dia Mundial da Casa de Banho, a televisão voltou a minha casa e fui convidado para o programa da Júlia Pinheiro, as Queridas Manhãs, para falar nessa divisão do meu apartamento, que decorei de forma muito pessoal com toalheiros antigos, faianças inglesas do século XIX e azulejos pombalinos e um pequeno eléctrico lisboeta.
 
É certo que o programa da Júlia Pinheiro, não é propriamente uma coisa cultural, daquelas que passam no segundo canal e que fui convidado a título de curiosidade, mas em todo o caso foi interessante passar a mensagem numa televisão com uma enorme audiência, que se podem fazer decorações divertidas, sem obedecer a nenhuma convenção ou moda, com objectos antigos, muitas vezes desprezados e atirados para o lixo pela maioria das pessoas.
 
Achei também um certo interesse ao contraste entre os dois entrevistados, eu, que nasci na classe média, habituado aos confortos modernos desde a nascença e a senhora idosa alentejana, criada no campo, numa pobreza tão característica dos meios rurais portugueses do passado e que agora vive feliz, porque tem uma casa de banho, horrorosamente setentona é certo, mas um supremo luxo para ela. Quase que me envergonhei da minha snobeira em tornar a minha casa de banho, um espaço cuidadosamente decorado com coisas em segunda mão, quando a senhora disse que não lia no wc porque era analfabeta. Mas enfim, não posso flagelar-me e sentir-me culpado da miséria que até uns cinquenta anos caracterizava Portugal. A via que escolhi seguir na vida, a cultura, o património e a história não é feita à custa da pobreza dos outros.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Uma taça de chá da Companhia das Índias que afinal será inglesa


Os dias de chuva são sempre propícios para fazer boas compras nas feiras de velharias. A multidão some-se aos primeiros pingos de chuva e os feirantes, que querem fazer algum dinheiro, de modo cobrir pelo menos os custos da gasolina e vendem então as suas mercadorias a preços convidativos. Foi assim que eu e o Manel conseguimos comprar duas taças de chá, possivelmente companhia das índias, por um valor muito simpático.

Confesso que nunca percebi nada de nem de louça chinesa, nem de Companhia das Índias e a compra desta chávena foi um pretexto para me informar sobre esses assuntos.

Bem, ainda que correndo o risco de menorizar a cultura dos leitores deste blog, talvez conviesse começar por dizer que Companhia das Índias não é nenhuma fábrica de porcelana chinesa, embora seja um termo muito usado por antiquários e amadores de arte para designar porcelana da China, produzida sobretudo no século XVIII.


Este termo tem origens nas várias companhias europeias, criadas na Holanda, no século XVII e depois em Inglaterra e na França no século XVIII e que detinham o monopólio do comércio de produtos vindos das chamadas Índias Orientais, onde se incluía a China. Uma das actividades mais importantes dessas companhias coloniais era o comércio da porcelana chinesa, mas não era uma porcelana idêntica a que os chineses usavam para si. Essa porcelana era produzida especialmente para a Europa e correspondia a um gosto ocidental. As formas inspiravam-se nas peças de ourivesaria europeia e eram frequentemente objectos desconhecidos na China, como urnas, bacias degoladas, penicos, bourdaloues, chávenas com asas, entre outras. As decorações eram também executadas ao gosto europeu e podiam ser o resultado de encomendas precisas feitas a partir de gravuras, desenhos, fragmentos de tecidos ou papéis de parede. Havia mesmo quem encomendasse serviços de louça completa com as armas de família, a chamada porcelana armoriada. Por vezes, enviavam-se para China peças de porcelana europeia, como de Meissen ou Sèvres, caríssimas na altura, pois ficava mais económico encomendar reproduções a dezenas de milhares de km do continente europeu, do que comprar as originais. Também, se mandava vir da China louça branca, que depois era decorada na Europa.

Portanto, a designação companhia das Índias cobre um universo muito vasto, que vai desde a família verde, à rosa, passando pela porcelana armoriada, folha de tabaco até à azul e branca. Este universo é imenso, não só em variedade, mas em número. Por exemplo, a companhia das Índias Orientais holandesa terá feito chegar à Europa, 43 milhões de peças entre 1724 e 1794. Igualmente no século XVIII, a estima-se que Companhia das Índias orientais inglesas, terá sido responsável pela importação de 30 milhões de peças. 

Em Portugal, tentou-se criar também várias vezes uma companhia de comércio oriental, mas sem grande sucesso. Na prática, ao longo dos séculos XVII e XVIII, o comércio de porcelana foi feito por particulares, que pagavam uma percentagem à coroa pelos produtos transportados. Em todo o caso, avaliam-se em 10 milhões o número de peças de porcelana trazidas pelos portugueses.

Talvez por causa destes números assombrosos de porcelana chinesa feita ao gosto europeu, experimentei dificuldades em classificar a minha chávena de chá nas famílias típicas da chamada Companhia das Índias e encontrar peças idênticas. A minha taça parece corresponder a um gosto francês, diria mesmo que colheu inspiração nas decorações rocaille de Sèvres. Mas é um rocaille visto por um chinês, em que as tradicionais rosas de Sèvres, se transformaram nuns crisântemos muito orientais. 
Chávena de Sèvres. Colecção Harewood House
Em suma, as minhas pesquisas sobre esta chávena não foram muito conclusivas, até por que nos finais do XVIII, as fábricas de porcelana europeia inspiravam-se também nas louças das companhias das Índias e com efeito depois de publicar este post, a Maria Andrade, chamou-me a atenção para que esta peça afinal poderia ser inglesa. Com efeito, nos finais do século XVIII, algumas fábricas inglesas começaram a produzir louça inspirada na Companhia das Índias, nomeadamente New Hall (1782-1835), Worcester (fundada em 1751), Derby (fundada em 1750), Coalport, entre outras e o formato gomado desta chávena é muito típico da porcelana britânica desse período. Fiz umas quantas pesquisas na net nesse sentido, e com efeito encontrei muitas peças com decorações do mesmo género, com azuis e dourados, das fábricas acima mencionadas, normalmente datadas dos finais do XVIII,  mas sobretudo da New Hall, em particular o padrão 248 desta fábrica, cuja produção se terá iniciado cerca de 1800.

New Hall. Padrão 248, ca. 1800

Em suma é muito provável, que esta taça seja inglesa, dos últimos anos do XVIII ou dos primeiros do XIX.


Alguma bibliografia e links úteis:

Les Compagnies des Indes : route de la porcelaine / Jean-Pierre Kerneis, Robert Picard, Y. Bruneau. - [Paris] : Arthaud, 1966. - 386 p. : il.; 22 cm. - (Bibliothèque historique)

Porcelana de encomenda ou louça encomenda da China / César Valença. - Braga : Museu Nogueira da Silva, 1987. - 13-30 p. : il. ; 23 cm. - Separata de Forum, Braga, 2 de Outubro de 1987

Porcelanas e vidros / Mary Espírito Santo Salgado Lobo Antunes. - Lisboa : Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 1999. - 179 p. : il. ; 29 cm

http://gotheborg.com/qa/beginning.shtml

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Santa Joana Princesa, Rainha Santa Joana de Valois e as intrigas da corte francesa

S. Ionna
Quando o Manuel comprou este registo aguarelado, com a legenda S. Ioanna, emoldurado preciosamente no século XIX, pensámos de imediato que se trava de uma representação de S. Joana Princesa. De facto tudo parecia apontar para que aquela figura coroada, envergando um manto de arminho e entregando uma esmola a um pobrezinho, fosse a Infanta de Avis (1452-1490), filha de do Rei D. Afonso V e que ficou conhecida na história como Santa Joana Princesa.


Fui então consultar o Dicionário de iconografia portuguesa: retratos de portugueses e de estrangeiros em relações com Portugal / Ernesto Soares, Henrique de Campos Ferreira Lima. - Lisboa : Instituto para a Alta Cultura, 1947-1960 e andei a ler a entrada sobre a forma como S. Joana Princesa é representada na arte portuguesa e os dados não coincidiam com a estampa do Manel. Normalmente Santa Joana Princesa é mostrada como monja dominicana, com um crucifixo na mão e ainda, uma coroa real e uma caveira algures no chão ou pousada numa mesa.

O Dicionário de iconografia de Ernesto Soares remetia para a obra de Rocha Madahil Iconografia da infanta Santa Joana. - Coimbra: Coimbra Editora, 1957 e fui então consultar esse livro, que me deu informações muito detalhadas sobre a forma como na arte se mostrou a figura daquela infanta de Portugal.


Segundo Rocha Madahil, as estampas que representam S. Joana são de dois tipos.



Retrato de Santa Joana Princesa do Museu de Aveiro. Foto wikipedia
As do primeiro tipo inspiram-se de uma forma mais ou menos fiel na tábua quatrocentista do Museu de Aveiro, que é um retrato verdadeiro da Princesa. 
 
Uma representação típica de Santa Joana Princesa. "3 coroas reais jazem por terra, em alusão aos casamentos que lhe foram propostos e desprezou". Foto http://www.csarmento.uminho.pt/ 
O segundo tipo é constituído pelas estampas devotas e nelas a Princesa é representada em hábito de dominicana e tem como atributos a coroa de Espinhos, o crucifixo, um livro de orações, frequentemente uma caveira, e quase sempre aparece de corpo inteiro, 3 coroas reais jazem por terra, em alusão aos casamentos que lhe foram propostos e desprezou. O Brasão de armas de Portugal acompanha muito frequentemente as figurações da Infanta, bem como uma legenda identificadora mencionando expressamente a sua categoria social de Princesa.
 

Uma representação típica de Santa Joana Princesa. Santa Joana é sempre identificada como Princesa de Portugal. Foto
http://www.csarmento.uminho.pt/
Em suma, a estampa do Manel não era certamente uma representação da Santa Joana, Infanta de Aviz, pois esta não era identificada inequivocamente como Princesa de Portugal, não havia coroas pelo chão, nem um escudo de Portugal e nem a figura trajava um hábito dominicano.

Rocha Madahil adverte para o facto que as estampas com a legenda S. Ioanna e que mostram uma mulher coroada, com um manto de arminho, um crucifixo e diante dela, um Menino Jesus, que lhe coloca um anel no dedo mínimo da mão esquerda, representam na realidade a Rainha Santa Joana de Valois, cujo culto, em tempos idos terá conhecido também alguma popularidade em Portugal, pois existem uns quantos registos desta santa nas colecções das bibliotecas e museus portugueses
As gravuras com a legenda S. Ioanna, mostrando uma mulher coroada, com um manto de arminho, um crucifixo e diante dela, um Menino Jesus, que lhe coloca um anel no dedo mínimo da mão esquerda, representam na realidade a Rainha Santa Joana de Valois

Esta Joana de Valois (1464-1505) era filha Luís XI de França e da Rainha Carlota de Sáboia e como todas as princesas reais daquela época, foi um mero joguete de uma prática, em que os casamentos eram contratos políticos, que variavam consoante os interesses das conjunturas do momento. Com efeito, o seu pai casou Joana com Luís de Orleães, uma família demasiado próxima do trono de França, com o objectivo maléfico de afastar os Orleães da sucessão real, pois sabia perfeitamente, que daquele matrimónio nunca sairiam filhos, uma vez que a jovem era coxa e corcunda. Se de facto, Luís de Orleães nunca fez uma vida matrimonial com pobre Joana, conhecida na época como la boiteuse, as contas saíram um bocadinho trocadas a Luís XI, quanto a afastar do trono o seu genro, pois o seu filho mais velho, Carlos VIII morreu acidentalmente, sem deixar filhos varões e Luís de Orleães, passou a ocupar o primeiro lugar na sucessão da linha do trono. No meio de uma intriga política complicadíssima, daquelas em que a corte francesa é pródiga, Luís de Orleães e a la boiteuse acabaram por se tornar reis de França, o que explica que a figura da estampa do Manel esteja coroada e com um manto de arminho. Contudo, a pobre Joana foi rainha por pouco tempo, pois Luís de Orleães, agora Luís XII, pediu ao Papa a anulação do matrimónio, para se casar com Ana da Bretanha, viúva de Carlos VIII, assegurando a integração definitiva daquela região no Reino de França. Depois de um processo complicado, em que Joana foi vilipendiada, o Papa Alexandre Bórgia acabou por anular o casamento e a La boiteuse, foi recompensada com o título de Duquesa Berry.

Santa Joana de Valois por Jean Mazoyer. Bordeaux, église Sainte-Eulalie. Foto http://inventaire.aquitaine.fr/
Apesar de coxa e corcunda, Joana de Valois era inteligente e sensível e logo depois de ser repudiada, dedicou-se à única actividade permitida a uma mulher da sua condição (para além dos lavores femininos), a religião e fundou a Ordem da Anunciação (Ordo de Annuntiatione Beatae Mariae Virginis), que ainda hoje existe. 

Voltando à gravura do Manel, depois de todas estas leituras, o que era uma simples imagem piedosa, transformou-se num pequeno símbolo das insídias da corte dos Valois, fonte inesgotável para a literatura, para o cinema e mesmo para aqueles historiadores, que se comprazem com a intriga política.
S. Ionna