sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Procurando as origens: a tia Bia de Soutelo

 
Trecho do inventário dos bens do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco

Pouco depois da morte do meu bisavô, em 1965, a minha avó Mimi fez um inventário dos bens do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco. É um documento que costumo consultar com frequência e um dia destes ao reler outra vez aquelas linhas encontrei referência dois crucifixos, um com o Cristo em marfim e outro em Madeira, que vieram da casa de Soutelo. Na altura, a minha avó Mimi, não se deu ao trabalho de explicar que casa era aquela, pois para ela e toda e toda a família isso era óbvio. Fiquei muito intrigado com esta casa de Soutelo, de que nunca tinha ouvido falar. Sabia que os meus bisavôs, além do solar de Outeiro Seco tinham outra casa em Chaves, no bairro da Madalena, encostada ao rio Tâmega onde passavam o inverno e com efeito, a minha avô menciona objectos que vieram dessa residência. Também era natural que tivessem uma ou outra coisa da Casa de Santo Estevão, dos Morais Sarmento, através da herança da minha trisavó, cuja mãe pertencia a essa família. Mas a minha avó nunca refere nada no inventário, que tivesse vindo da casa dos Morais Sarmento.

Pouco tempo depois falei ao telefone com a prima Lili, que é ainda única pessoa do ramo Ferreira Montalvão, que ainda vive em Chaves e perguntei-lhe se sabia alguma coisa dessa casa em Soutelo. A Lili lembrava-se de ouvir a sua mãe contar histórias acerca de uma Tia Bia, casada com um Domingos, que viviam em Soutelo e eram visita frequente do Solar, quando a minha avó e os meus tios avôs eram crianças, isto ter-se-á passado nos anos entre os anos 1905-1920. Nesse tempo, depois do jantar, como era vulgar nas famílias da época, rezava-se o terço. E durante a ladainha, Pai Nosso que estás no céu…, a tia Bia interrompia a oração e perguntava ao meu bisavô, Ó Jejé, este ano como foi a apanha da castanha?. Depois continuava a reza e a tia Bia voltava a perguntar, Ó Jejé, este ano como foi a colheita do centeio? e assim sucessivamente, ao longo de todo o terço, ia parando as orações com as mais diversas perguntas sobre o ano agrícola na quinta de Outeiro Seco. Claro, a certa altura era uma risota entre as crianças.

Mas apesar destes esclarecimentos fiquei sem saber a que ramo pertencia esta tia Bia de Soutelo. A Lili afirmou-me que a Tia Bia não era do lado da minha bisavó, gente que tinha casa em Mairos, outra localidade perto de Chaves, nem do lado dos Morais Sarmento, que como já referi, estavam em Santo Estevão, aldeia próxima de Outeiro Seco, na margem direita do Tâmega. Tão pouco consegui perceber que nome se escondia por detrás do diminutivo Bia. Seria uma Beatriz?

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão

Entretanto comecei a inventariar as cartas e os documentos dessa época e senti a necessidade saber mais sobre a família de Liberal Sampaio, meu trisavô, um padre, que manteve uma relação amorosa com uma fidalga do Concelho de Chaves, da aldeia de Outeiro Seco, a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Aliás este par ocupa quase sempre um lugar importante nas narrativas de história familiar deste blog. Gosto sempre de pensar neles, como uma espécie de Ana Plácido e Camilo Castelo Branco, embora saiba perfeitamente, que a vida dos meus antepassados não teve nada de arrojado ou de tão chocante, como essa paixão do grande escritor português. As cartas que esses meus antepassados trocaram entre si são na maior das vezes de assuntos correntes, o governo da casa agrícola, a poda da vinha, a construção do poço ou de um muro, a venda do cereal, a compra de uma égua ou a educação do filho, que tiveram juntos. 

O primeiro bilhete de identidade do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio, de 21 de Abril de 1927 

Mas regressando ao assunto da família do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio nasceu em 29 de julho de 1846 em antigo de Sarraquinhos, perto de Montalegre, filho de António Rodrigues Sampaio e de Maria Gonçalves Liberal. Se de facto, a mãe era natural de Antigo de Sarraquinhos, Montalegre, o pai nasceu em Soutelo, já no Concelho de Chaves. Em suma a família paterna do meu trisavô era de Soutelo e na correspondência do espólio fui encontrado referência a parentes nessa aldeia. Há duas cartas de um primo, Manuel Rodrigues Sampaio, proprietário de um estabelecimento comercial em Soutelo. Na primeira missiva de 2 de Fevereiro de 1899 dá notícias sobre vários parentes naquela terra e informa que vendeu casas em Outeiro Seco e comprou uma em Soutelo por 30 libras. O meu próprio trisavô foi pároco em Soutelo, pelo menos entre 1914 e 1917. Soutelo e Outeiro Seco são aldeias próximas e pelos vistos o meu antepassado manteve uma ligação à terra paterna.

Antigo de Sarraquinhos, Soutelo e Outeiro Seco são terras próximas

Entretanto, foi tratando o espólio familiar e nas cartas, que o meu bisavô escreveu de Coimbra para a mãe, mencionou muitas vezes a Bia. Mandava recados à Bia, perguntava pela Bia e em 11 de Dezembro de 1900 escreveu mesmo Se a Tia Bia quiser os ingredientes para a gomagem, que mande os mercenários cobres, pois estou o que em calão académico, se chama depenado. Igualmente nas cartas que Liberal Sampaio dirigia minha à trisavó, refere também a Bia. Percebi através destas referências que a Bia era presença frequente no Solar de Outeiro Seco ou até que passaria por lá temporadas.

Ao mesmo tempo ia progredindo no tratamento do espólio e encontrei algumas cartas da irmã de Liberal Sampaio, de que já conhecia a existência, a Maria Rodrigues Sampaio, minha tia-trisavó. Numa delas, datada de 7 de Abril de 1889 escreve ao irmão, que se encontrava em Coimbra, juntamente com filho, dando notícias da casa agrícola “a podada já está feita e inda se faz em Março. A égua anda cheia e anda muito gorda, graças a Deus” e no final envia recados da prima Sampaio e do tio de Soutelo e pede que deia muitos beijos ao menino da sua Bia. Afinal, a tia Bia era a irmã de Liberal Sampaio, a Maria Rodrigues Sampaio. Bia não era o diminutivo de Beatriz, como era suposto, mas um desses petits noms, sem sentido, criado por algum irmão ou por uma mãe enternecida enquanto amamentava a criança e que muitas vezes acompanham as pessoas durante uma vida inteira.


Carta de Maria Rodrigues Sampaio, datada de 7 de Abril de 1889, escrita ao irmão. 

Depois de ter obtido destas informações fiz algumas pesquisas no motor de busca do arquivo Distrital de Vila Real por Maria Rodrigues Sampaio e encontrei referência a um processo de inventário obrigatório de um tal Domingos Afonso da Cruz, cuja inventariante foi Maria Rodrigues Sampaio, com a data de 1907. Consultei o registo de óbitos desse ano e no dia 25 de Abril faleceu Domingos Afonso da Cruz, comerciante, casado com Maria Rodrigues Sampaio, ambos residentes em Soutelo. Encontrei também um testamento de 1912 da Maria Rodrigues Sampaio, de 1912, dado em Soutelo e finalmente outro processo de inventário obrigatório de 1933, data em que esta minha tia trisavô terá morrido e cujo inventariante foi Domingos Afonso da Cruz, certamente o filho, que tinha o mesmo nome do pai. Portanto, estes dados batem certo com história que a prima Lili contou. A tia Bia vivia em Soutelo e era casada com um Domingos.

O assento de óbito de Domingos Afonso da Cruz, o marido da tia Bia

O episódio, que a prima Lili contou sobre a Tia Bia, que interrompia constantemente o terço com perguntas sobre o ano agrícola, coincide com as preocupações que esta manifestava nas suas cartas. Aliás, o irmão, o meu trisavô o Liberal Sampaio, assemelhava-se nestes cuidados, estava também sempre a escrever a minha a trisavô com inúmeros conselhos sobre o governo da casa agrícola, como a as vindimas, égua, que estava prenha, ou com o cereal, que poderia apodrecer, antes de ser vendido. Estas cartas revelam-nos um mundo de gente, que vive da terra.

Descobrir quem foi esta tia Bia de Soutelo, permitiu-me conhecer um pouco sobre o estatuto social da família Liberal Sampaio, que não tinham de todo os pergaminhos dos Montalvões ou as suas extensas propriedades, mas em todo o caso, não seriam tão humildes, como acreditava até há pouco tempo, pois a Tia Bia ou a Maria Rodrigues Sampaio sabia ler e escrever, o que é um indicador de um certo desafogo económico nesta época. Em 1878, taxa de analfabetismo feminino era de 89,3 por cento, conforme indica Irene Vaquinhas, em Senhoras e Mulheres" na sociedade portuguesa do século XIX. A tia Bia fazia parte de uma minoria de cerca de 10 por cento das mulheres portuguesas.

A partir destes dados começo a entrever melhor a figura do meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que desde muito jovem, me ensinaram a admirar e em cujo retrato reconheço as feições do meu pai e do meu próprio filho.



Bibliografia consultada:

"Senhoras e Mulheres" na sociedade portuguesa do século XIX / Irene Vaquinhas. 1a ed. Lisboa : Colibri, 1999. ISBN 972-772-112-5.

Processo de Inventário obrigatório de Domingos Afonso da Cruz, 1907
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/JUD/TJCCHV/C-C/082/352

Testamento público de Maria Rodrigues Sampaio, 1912
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/NOT/CNCHV2/007/297/24

Processo de Inventário obrigatório de Maria Rodrigues Sampaio, 1933
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/JUD/TJCCHV/C-C/082/1028

Registo de óbitos de Soutelo, 1889-01-17 – 1911-11-14
Arquivo Distrital de Vila Real

sábado, 7 de janeiro de 2023

Uma panela de barro que não deu ouvidos à panela de ferro


Recordo-me que num dos livros de leitura da antiga instrução primária, já não me recordo se da terceira ou da quarta classe, havia uma história sobre duas panelas, uma de barro e outra de ferro. A de ferro desafiou a panela de barro a irem dar um passeio, garantindo-lhe que a protegeria de qualquer perigo com toda a fortaleza da sua constituição metálica. E lá se meterem as duas a caminho, só que com os solavancos do caminho irregular, as duas panelas acabaram por chocar e a de barro quebrou-se numa dúzia de pedaços. Na altura, teria eu os meus 8 ou 9 anos, fiquei com muita pena da panela de barro. Os miúdos preferem sempre histórias com finais felizes.

Mas estes textos dos manuais de leitura da antiga escola primária marcavam-nos sempre muito Éramos muito pequenos e cada um deles ocupava um ou dois dias de aula, com a leitura em voz alta, o estudo do vocabulário, a cópia e finalmente o ditado, que significava sempre uma ou outra reguada. Por cada erro no ditado o professor batia-nos com a régua na mão e umas quantas faltas de acentos equivaliam a uma ou outra reguada suplementar. Naquela época e isto passou-se mais ou menos em 1971 ou 1972, os castigos físicos em correntes no ensino primário oficial.



Só já em adulto, é que recordando esse texto, me apercebi do seu significado, a chamada moral da história. Temos que conhecer as nossas limitações e não nos deixarmos influenciar pelos mais fortes e correr aventuras e perigos, para os quais não temos capacidades para nos defender.

Há uns anos, quando o meu amigo Manel comprou esta panela de barro na feira de Estremoz recordei-me outra vez dessa história de um antigo livro de leitura da instrução primária, fiz alguma pesquisa sobre o assunto e descobri que esse texto era uma adaptação de uma das fábulas de La Fontaine. Confesso que imediato, comecei a criar uma história para esta panela que sobreviveu até aos nossos dias. Quando foi comprada era uma bonita peça de barro e que foi muito usada, pois o vidrado está todo estragado um pouco por todo o lado. Mas, por qualquer razão nunca se partiu, talvez porque a sua dona fosse muito cuidadosa ou talvez porque esta panela fosse muito sensata e nunca se tenha posto à aventura na companhia de uma panela de ferro. Mas, o mais certo, é que um dia tenha sido retirada de uso, quando a sua dona recebeu de presente de uma filha ou nora um trem de cozinha de panelas e tachos de esmalte decorados com flores. Recordo-me que nos anos 70, mais ou menos na altura em li esse texto, os trens de cozinha em esmalte eram o supra-sumo da barbatana. Esses trens de cozinha eram muito mais baratos em Espanha do que em Portugal e a minha mãe comprou um no país vizinho, decorado com umas flores cor-de-laranja e que antes de atravessarmos a fronteira, o meu pai escondeu no atrelado, debaixo da tenda de campismo, não fossem os guardas alfandegários, implicar com o trem de cozinha, apreende-lo ou fazer-nos pagar direitos aduaneiros. Recordo-me bem do ar tenso e preocupado do meu pai no momento que cruzamos a fronteira entre Portugal e Espanha. O meu pai era um legalista, um homem cumpridor da Lei e passar aquele trem de cozinha à revelia dos guardas fronteiriços não o deve ter deixado muito confortável.

Mas voltando a panela de barro desconheço onde foi produzida e quando. Como foi comprada em Estremoz talvez tenha sido feita numa olaria algures no Alentejo. Quanto à época em que saiu do forno, é ainda mais difícil atirar com hipóteses, já que as formas na olaria são quase sempre imemoriais. Mas imagino, que não deva ser muito antiga, já que esta louça de barro para cozinhar facilmente se quebrava, contra os potes de ferro, ou em virtude das diferenças de temperatura extremas ou ainda porque escorregava das mãos enquanto era lavada. O mais certo é ser do início dos anos 70, do tempo em que li a fábula de La Fontaine no livro de instrução primária, quando os castigos físicos eram prática corrente e moralmente aceitáveis na educação em Portugal e não havia livre circulação de pessoas e bens entre Portugal e Espanha. Mas também de um tempo em que a modernidade já se anunciava e uns dois anos depois em 1974, tudo se começou a transformar em Portugal e esta panela de barro foi remetida para um escaparate, como decoração típica.