sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Travessa de faiança de Viana (1790-1830)


Ultimamente tenho apresentado aqui tantas obras de arte sacra, que os seguidores deste blog já devem estar fartos de tanta beatice. Por isso, resolvi mostrar aqui uma travessa de faiança da Fábrica de Viana (1774-1855), que pertence ao meu amigo Manel. A travessa está em mau estado, foi partida, gateada e arranjada, mas mesmo assim é uma peça de Viana, uma das mais carismáticas fábricas de faiança portuguesas e ainda para mais está marcada, o que não deixa sombras de dúvidas sobre a sua atribuição. 
O característico "V", a marca da Fábrica de Viana do Castelo

Segundo a obra, A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo. – Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2015 esta marca e decoração são típicas do segundo período de laboração da fábrica, que decorre entre 1790-1830. Aliás, esta comprovação pudemos faze-la ao vivo, quando visitamos recentemente o Museu onde está exposto um conjunto de terrina e travessa com esta marca e pertencente à mesma família decorativa.
A travessa do Manel foi em tempos a base de uma terrina. Imagem reproduzida de A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo. – Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2015

Aliás esta não é propriamente uma travessa comum. Servia de base a uma terrina, tal como se pode ver na imagem que aqui reproduzo do catálogo A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo. É aquilo que se costuma designar pelo termo francês présentoir.

Quanto à decoração desta travessa é inspirada na China, naquilo que em história da arte se designa por chinoiserie

Uma "chinoiserie" ou uma China imaginada pelos europeus
A chinoiserie é um modelo artístico europeu, de influência chinesa, que é caracterizado pela utilização de uma linguagem figurada e fantasista de uma China imaginada e ainda pela assimetria. As chinoiseries espalharam-se na arte europeia na segunda metade do séc. XVII, a sua popularidade conheceu o apogeu em meados do séc. XVIII e foram assimiladas pelo estilo rococó. 

Embora o fabrico desta travessa esteja balizado entre 1790 e 1830, a decoração em chinoiserie permite-nos supor, que tenha sido executada na última década do século XVIII.
 


Fontes consultadas: 

A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo. – Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2015

https://fr.wikipedia.org/wiki/Chinoiserie

sábado, 14 de janeiro de 2017

A aventureira: gravura segundo Watteau

Continuo um comprador compulsivo de gravuras. Desta vez, adquiri na feira de alfarrabistas da rua da Anchieta uma gravura feita a partir de uma tela de Watteau, que representa uma jovem elegantemente vestida, que sem medo do que os outros possam pensar, se dirige a um grupo de boémios, procurando um momento de diversão galante, sem grandes limites, esquecendo as sensatas recomendações feitas pela mãe e pelo senhor padre-cura. Enfim, uma verdadeira aventureira.

Peint par Watteau

Pela grossura do papel, pela cor e pelas linhas de água que apresenta, a estampa pareceu-me desde logo coisa do século XVIII. Enfim, trabalho, há demasiado tempo com livros para confundir uma estampa do século XVIII com uma litografia do século XIX.
L'Avanturière. Troyes, Musée de beaux-arts. Foto de http://watteau-abecedario.org/
Fiz algumas pesquisas na net e descobri que esta gravura foi feita a partir de uma tela original de Watteau que se encontra no Musée des beaux-arts et d'archéologie de Troyes e que faz par com outra tela do mesmo pintor, intitulada L'Enchanteur.

L'Enchanteur. Troyes, Musée de beaux-arts. Foto Wikipédia
Logo após a morte deste pintor francês em 1721, houve um senhor chamado François Jullienne ( 1686-1766), mecenas e um grande coleccionador das obras de Watteau, que encomendou aos melhores gravadores da sua época a reprodução da sua colecção de quadros daquele pintor. Os vários volumes dessa compilação foram publicados entre 1728 e 1736 e tornaram-se conhecidos pelo nome Recueils Jullienne. Foram acrescentados com outras gravuras setecentistas executadas a partir da obra de Watteau pelo Barão Edmond de Rothschild, no séc. XIX. No tomo I da Oeuvre gravé dessa compilação encontrei uma estampa igual à minha, na mesma página do L'Enchanteur, mas invertida e gravada por um tal Benoît Audran II.

Recueils Jullienne. http://technologies.c2rmf.fr/exhibitions/watteau
A minha estampa está no mesmo sentido do quadro original, mas não tem a assinatura do gravador e portanto não foi executada Benoît Audran II. Mas em todo o caso, comprovou a minha impressão inicial que a gravura que comprei foi cortada e que deveria ter sido publicada na mesma página que outra estampa, muito provavelmente o L'Enchanteur. Consultei então o catálogo de uma exposição feita em Paris, em 1984, Watteau, 1684-1721. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1984 e na entrada referente à L’aventuriere, refere-se que para além da gravura de Audran foram impressas mais quatro versões, uma por Louis Crepy, que encontrei a venda numa leiloeira francesa e que tem a orientação da tela do Museu de Troyes, mas está assinada e mais outras três, das quais o catálogo não dá referências. Enfim, a minha estampa será talvez uma dessas outras três.
L'Avanturière. Gravada por Louis Crepy

Estas cenas galantes, povoadas por jovens ociosos, músicos e figuras da commedia dell arte, tendo por pano de fundo paisagens com árvores frondosas são típicas de toda a obra de Watteau (1684-1721). Com efeito, Watteau é um autor que procura antes de mais nada, capturar na tela pequenos momentos da comédia do amor, postos como numa peça de teatro, onde não faltam sequer as personagens da commedia dell arte. Nos seus quadros de festas galantes, onde gente de qualidade se diverte, espreitam estátuas de divindades e génios das florestas. É um mundo frívolo, ocioso, algo egoísta, e não há um gesto de ternura entre as personagens, que apenas procuram seu próprio prazer, com esta nossa aventureira.
Jovens ociosos, músicos e figuras da commedia dell arte
Essa frivolidade da arte Watteau, característica de uma época, onde a grande nobreza francesa se diverte despreocupadamente, faz-nos no entanto a esquecer a qualidade das paisagens da obra de Watteau, que acabam por ser as grandes protagonistas das suas festas galantes.
A paisagem é a grande protagonista das festas galantes de Watteau.

A obra de Watteau conheceu grande sucesso e foi muitíssimo copiada, nem sempre da melhor maneira. Cópias das suas obras aparecem estampadas em chávenas, vasos, leques, papeis de parede ou bibelots e até mesmo na azulejaria portuguesa, como num painel de azulejos, atribuído a Bartolomeu Antunes (1668-1753), que existe no Palácio Valada Azambuja (Biblioteca Municipal Camões) no largo do Calhariz, nº 17, em Lisboa, executada certamente a partir de uma estampa semelhante a que apresento hoje aqui.


Um aspecto do interior do Palácio Valada Azambuja (Biblioteca Municipal Camões). Os azulejos foram colocados aqui em 1925 pelo proprietário de então, Manuel Henriques de Carvalho, provenientes de um Palácio em Almada. Foto João de Carvalho da Wikipédia

Apesar da frivolidade das obras de Wattau, fiquei contente com a compra. Pendurada na parede da minha casa, esta gravura evocará as festas galantes do século XVIII, esse mundo despreocupado, que acabará nos cadafalsos da revolução francesa, depois de 1789.

L'Avanturière. Watteau.
Alguns ligações e bibliografia consultadas:
À l'enseigne de Gersaint [Texte imprimé] : Edmé-François Gersaint, marchand d'art sur le pont Notre-Dame : 1694-1750 / Guillaume Glorieux. - Seyssel : Champ Vallon, 2002

Watteau, 1684-1721. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1984

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Maria Madalena a arrependida ou uma visita ao Museu de Aveiro

Visitei recentemente o Museu de Aveiro, que tem uma colecção riquíssima de talha dourada e escultura religiosa. No meio daquelas salas e salas pejadas de altares fantásticos de talha e santos com trajes riquíssimos, descobri uma Maria Madalena em barro, do século XIX, que me encantou completamente. Tirei-lhe três fotografias e todas ficaram estupendas. As verdadeiras estrelas são sempre fotogénicas.

Todos nós gostamos da figura de Maria Madalena. Ainda que arrependidas, as pecadoras são sempre mais populares que as mártires, as virgens, as abnegadas e todas aquelas mulheres do cristianismo que viveram uma vida inteira de reclusão. Passa-se o mesmo na literatura, no cinema ou na televisão. Preferimos sempre a Scarlett O'Hara à Melanie Hamilton, adoramos a Becky Sharp da Feira das Vaidades do Thackeray e nas novelas brasileiras, as bandidas suplantam em popularidade as boazinhas. 

Mulheres pecaminosas do cristianismo, mesmo que arrependidas no final da história, Maria Egipcíaca e Maria Madalena foram como que um pretexto quase inconsciente para introduzir sub-repticiamente o erotismo na arte ou apimentar subtilmente os livros que relatavam a vida dos santos. Apesar de condenar o sexo praticamente desde o seu início, houve continuadamente no cristianismo, uma forma de passar algum erotismo na arte ou nos relatos hagiográficos, pois o ser humano precisa de sexo, como água para viver.
Santa Maria Madalena, Museu de Aveiro, inv. 99B

Esta Maria Madalena do Museu de Aveiro enverga um manto esvoaçante e um vestido vermelho, como se outrora, nos tempos do despertar da puberdade, se tivesse entregado às garras de algum lobo mau, daqueles que espreitam as encruzilhadas do início da nossa juventude e aparenta aquela melancolia, que sempre advêm depois de um encontro fortuito de sexo ou de uma traição à pessoa amada.