sexta-feira, 21 de julho de 2023

Um bibelot para decorar o piano



No meu post anterior, escrevi sobre uma cobertura de um piano, que no ano de 1904, uma amiga da minha bisavó pretendia fazer, pedindo-lhe a ela e à sua irmã, através de uma carta, retalhos de vestidos para a confeccionar. Também referi que nessa época era moda cobrir os pianos e de como a minha avó Mimi ofereceu um manton de Manila à minha irmã, explicando-lhe que aqueles panos bordados e cheios de franjas eram usados para pôr em cima dos pianos. Além dessas coberturas, nos finais do século XIX e inícios do XX, na Europa e nos Estados Unidos, era também hábito dispor em cima dos pianos umas figurinhas de biscuit, representando bebés ou meninos, que nos mercados de velharias são conhecidos por pianos babies. Curiosamente há uns anos, comprei um desses piano babies no OLX e o vendedor foi precisamente um Senhor que tinha uma casa de pianos ali para São Bento, o que me levou a pensar que sem dúvida essa moda chegou a Portugal. Normalmente, estes bonequinhos de biscuit eram produzidos na Alemanha e os mais famosos pela sua qualidade de execução eram os da Gebruder Heubach, fábrica situada na Turíngia.



Como já expliquei no meu anterior post sobre um piano baby desta fábrica, a Heubach notabilizou-se pela qualidade das suas figurinhas de biscuit, mas também se dedicou à produção de bonecas para as meninas brincarem. A mestria das suas criações tinha a ver com a existência de uma escola de arte nas cercanias da fábrica, à qual a firma alemã ia buscar escultores e pintores para conceberem e pintarem cabeças de bonecas e figurinhas em biscuit, que depois de prontas revelavam expressões e sentimentos de um realismo e detalhe, que ainda hoje nos espantam.

Marca da Heubach, em relevo, com o número do molde, 10181 


O bonequinho que hoje apresento foi a minha última aquisição na Feira de Estremoz e apresenta uma marca da Heubach, em relevo, que segundo a maioria dos sites de antiquários será datada de cerca de 1915 e é assim mais recente, que a figurinha, que comprei há cerca de 7 anos e também de menores dimensões.

Faz parte de uma colecção de figurinhas mais pequenas, que no mercado norte-americano são designadas por position babies or action figures. Imagino, que o nome os produtores alemães lhes dariam, seria diferente, mas em todo o caso são umas figurinhas de bebés surpreendidos em actividade, uns estão zangados e lutam, outros, como este que apresento, fizeram um disparate e olham para nós, como que arrependidos, pedindo para não ser castigados. Talvez seja esta característica que me encanta neste boneco. Recordo-me que a minha sobrinha Isabel, o meu irmão e o meu filho faziam exactamente esta expressão, embora não tenha nenhuma fotografia que a tenha registado. Encontro aqui, moldada em biscuit qualquer coisa de muito familiar, que se perdeu no tempo, pois hoje são todos adultos e aprenderam a disfarçar ou controlar esses sentimentos mais óbvios. Talvez um dos meus futuros netos, depois de ter feito alguma malandrice, baixe a cabeça e abra muito os olhos tristonhos em direcção a mim e eu reencontre esta expressão. Até lá, vou-me deliciando com este piano baby.



domingo, 9 de julho de 2023

Uma manta para o piano em 1902



Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho


Fazer a história da família, ainda que só de 3 ou 4 gerações é como encontrar um extenso romance, inteiramente desfeito, em que nos aparece primeiro uma parte do capítulo 82, depois o capítulo 34 e o 6º e mais além três ou quatro folhas rasgadas ao meio, sem qualquer numeração. As personagens são muitas, algumas entram e saem brevemente, outras permanecem na narrativa. Por essas razões, no meu blog as minhas lentas investigações sobre a história da família, vão sendo escritas sem ordem cronológica.

O retrato de grupo em 1901

Desta vez, regresso novamente ao ano de 1901, ao concerto em Chaves, em que as meninas da boa sociedade flaviense, posaram com os seus instrumentos musicais, debaixo do olhar do seu mestre, certamente por ocasião de algum sarau musical, promovido pelo Grémio Musical Flaviense. Nesse retrato, figuram a minha bisavó, Aninhas, segurando um bandolim e a sua irmã, a tia Marica com um violino e ainda as suas amigas, a Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho. Conforme, a dedicatória que estas duas últimas escreveram no verso da fotografia, oferecida à minha bisavó e tia bisavó, parecem ter sido dias felizes para estas jovens, com a camaradagem, excitação dos ensaios todos e de um ou dois concertos onde brilharam perante a sociedade da então vila de Chaves.


A bisavó, Aninhas, segurando um bandolim e a sua irmã, a tia Marica

Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho

Tenho pensado bastante no senhor mais velho, que se encontra de pé, que foi sem uma dúvida o mestre deste grupo de meninas da sociedade flaviense e creio, que poderá tratar-se do Maestro Pinto Ribeiro, que esteve activo em Chaves, pelo menos entre 1892 e 1912 e deixou uma marca profunda na vida musical daquela cidade, encenando operetas e zarzuelas, algumas da sua autoria. Mas não tenho a certeza. Só encontrei uma fotografia de João Carlos Pinto Ribeiro Pinto Ribeiro (1862--1931) num site de genealogia estrangeiro, com fraca qualidade e nesta época, todos os cavalheiros, que usavam fartos bigodes, se pareciam uns com os outros.


O mestre das jovens poderá ser o maestro Pinto Ribeiro?


João Carlos Pinto Ribeiro Pinto Ribeiro (1862-1931)

Ainda destes tempos felizes e no arquivo da família encontrei uma carta de Maria José Dias de Carvalho, dirigida à minha bisavó Aninhas, datada de 10 de Outubro de 1902, muito afectuosa.


Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902

Acusa a recepção de notícias da Aninhas, cuja mãe foi a banhos para Carvalhelhos na companhia da Marica. Conta que escreveu à Mariquinhas, uma amiga comum, talvez outra das jovens do retrato de grupo e soube que o estado do pai desta se agravou e não há esperanças de o salvar.

É curioso observar os diminutivos destas jovens, Marica, a Mariquinhas. A minha trisavó de uma geração anterior, também Maria era igualmente conhecida pelo petit nom de Maricas. Parece que, nesta época, em 1902, maricas ainda não era um termo pejorativo usado para designar um homem efeminado.

Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902


Depois, a meio da missiva, a Maria José Dias de Carvalho pede um grande favor à minha bisavó ando a fazer uma coberta para o piano em lãs de fantasia e como tu e a Maricas tem vestidos lindíssimos para isto pedia-te a fineza de me mandares todos os bocadinhos que não te sejam precisos, mesmo de Inverno tudo serve, mesmo alguns que te pareçam feios, manda-mos sem receio, porque isto tudo serve.

Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902

No passado havia este hábito de cobrir os pianos com panos decorativos. Recordo-me que a minha avó Mimi, quando ainda estava de boa saúde ofereceu um manton de Manila à minha irmã, explicando-lhe que antigamente aquelas espécie de xailes, bordados e com muitas franjas eram usados para cobrir os pianos. Mas nesta época, em que as meninas tocavam piano e falavam francês não havia lugar para desperdícios e guardavam-se os retalhos todos de tecidos e Maria José teve tempo para idealizar o seu projecto de manton. A encomenda com os retalhos terá ido de mala posta até à Régua, depois de comboio até Porto, depois para o Sul até ao Entroncamento, e finalmente até Castelo Branco, onde Maria José estaria a residir. Finalmente, a jovem terá passados semanas cosendo artisticamente os paninhos uns aos outros e no final terá aplicado um passamane cheio de franjas ou fez ela própria um em renda, quem sabe, se em bilros. Talvez na família Maria José Dias de Carvalho, algum dos seus netos ou bisnetos ainda tenha esta coberta do piano.

Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902

Finalmente, a Maria José recorda a Aninhas que ainda não recebeu o seu retrato e despede-se escrevendo, não te esqueças de mim, que depois dos teus pais e da tua mana não tens quem te tenha uma amizade mais sincera.

Tudo isto que escrevi não tem grande importância para a história, mas estas fotografias e cartas não deixam de ser o fresco da sociedade de terras pequenas do interior, com as suas actividades musicais, em que as meninas tocavam piano, dedicavam-se aos lavores domésticos e onde as palavras tinham até um significado diferente , do que têm hoje em dia.