quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Um porta-retratos antigo por preencher


Umas das coisas que vale a pena comprar nas feiras de velharias são as molduras antigas para encaixilhar os retratos de família. Vendem-se a belíssimos preços, emprestam uma dignidade nostálgica às fotografias do passado e dispostas em conjunto em cima de uma mesa ou de uma cómoda, proporcionam uma visão rápida daqueles que contribuíram com os seus genes para nossa formação como seres vivos.


Este porta-retratos requintado, que comprei na Feira de Estremoz a um preço irrecusável levantou-me o problema sobre que fotografia deveria colocar ali. Na minha casa, procuro ter imagens que representem os vários lados da família. Pensei colocar ali uma fotografia do meu avô paterno, o Silvino da Cunha (12.10.1901-14.03.1972), que conheci mal, mas do qual guardo algumas recordações simpáticas, do tempo em passei uma temporada em Chaves. Era muito miúdo, teria uns cinco anos, mas lembro-me que me ia buscar e levar ao jardim-escola João de Deus, passeava comigo pelas ruas de Chaves, onde cumprimentava senhores muito dignos de barba branca e de uma vez ter assistido com ele a uma procissão, onde desfilaram meninos vestidos de anjinhos, que frequentavam o mesmo jardim-escola que eu. Lembro-me também que me levava a passear ao Jardim da Madalena daquela cidade, onde cheirava sempre a buxo molhado e ainda hoje, quando entro num desses jardins fora-de-moda, simétricos e com sebes e aparadas e sinto o cheiro a buxo, emociono-me sempre.
Silvinho da Cunha (12.10.1901-14.03.1972),  fotografia tirada por ocasião da sua formatura em Medicina
Soube mais tarde que era um homem de rotinas, que cumpria os mesmos rituais todos os dias, atravessa a rua nos mesmos sítios e às mesmas horas tomava o seu café e entrava na Sociedade de Chaves para ler o seu jornal. O meu pai herdou essa sua característica e eu também preciso de rotinas para me sentir seguro, embora a vida moderna de Lisboa não facilite hábitos arreigados. 

Tenho também conhecimento de que era um homem culto, republicano e com mau feitio, mas objectivamente pouco sei sobre este meu avô e muito menos da sua família. O meu pai foi criado até aos seis anos com a família da sua mãe, os Montalvões, passava sempre longas férias no Solar desta família em Outeiro Seco e é dessa casa hoje em ruínas, que nos transmitiu maior parte das suas recordações. Do lado do meu avô paterno, os Cunhas nunca soubemos quase nada. Era todo um conjunto de antepassados que nem nos lembrávamos que alguma vez tivessem existido.
Os pais do Silvino da Cunha, Alfredo Augusto da Cunha e Emília Sousa Costa, meus bisavós
Recentemente visitámos o meu primo Jorge e encontramos na sua casa o retrato dos pais do Silvino da Cunha, o Alfredo Augusto da Cunha (1870-1956), contador judicial e sua mulher, Emília Sousa Costa, meus bisavôs paternos. É um daqueles retratos típicos dos finais do séc. XIX, inícios do séc. XX, em que o fotógrafo não pretendia propriamente surpreender o íntimo dos retratados. Naquele tempo, em que a fotografia era cara e reservada para ocasiões especiais, as pessoas quando se mandavam fotografar pretendiam sobretudo uma imagem digna de si, de respeitabilidade, de gente que não desce escadas a correr. É um bocadinho complicado através das fotografias desta época tentar adivinhar o que passava no interior desta gente. No entanto consegui identificar no Alfredo Augusto da Cunha as mesmas entradas no cabelo, que o meu pai, o meu irmão e eu tínhamos, antes de ficarmos irremediavelmente calvos.
Alberto Mario Sousa Costa (1879 -1961) era sobrinho da minha bisavó paterna. Foto Grande enciclopédia portuguesa brasileira
A minha bisavó paterna, a Emília Sousa Costa não parece ser bonita. No entanto provinha de uma família de Vila Pouca de Aguiar com tradições na cultura. Um dos seus irmãos, o António Sousa Costa era jornalista e o filho deste, Alberto Mario Sousa Costa (1879 -1961) foi um escritor extremamente popular na primeira metade do século XX, com uma lista invejável de obras de ensaio, romance, literatura de viagens e ainda de drama. Na Biblioteca Nacional contei 128 edições das suas obras.
Sousa Costa era um homem muito alto para a época, com um tipo muito trigueiro, tal como o meu avô Silvino e o meu próprio pai e sua irmã. Foto do Arquivo Nacional Torre do Tombo http://digitarq.arquivos.pt/

Casou com uma senhora que era também uma literata, Emília da Piedade Teixeira Lopes, que tornou conhecida como Emília Sousa Costa (1877-1959) e consagrou-se como escritora de livros infantis, cujas ilustrações foram assinadas por artistas plásticos conhecidos, como Sara Afonso ou Raquel Roque Gameiro. As suas entradas na Biblioteca Nacional ascendem a 120 títulos.
Emília Sousa Costa tinha um estilo literário, que hoje se considera enfático. Foto do Arquivo Nacional Torre do Tombo. http://digitarq.arquivos.pt/
Hoje em dia já ninguém lê as suas obras deste casal. O estilo de Emília Sousa Costa é pesado, típico da época. No entanto, a obra social deste casal a favor das crianças e da condição feminina é notável. Durante a república, Alberto Sousa Costa esteve na base da criação das Tutorias da Infância, organismo, que mais tarde veio dar origem aos actuais Tribunais de Família. Emília Sousa Costa preocupou-se de forma pioneira com a instrução feminina, que sabia ser a único meio pelo qual as mulheres pobres e desamparadas, podiam escapar ao inevitável destino da prostituição. Criou a Caixa de Auxílio a Estudantes pobres do Sexo Feminino, com um o seu curso anexo de instrução primária, que subsidiou milhares de raparigas em cursos preparatórios e superiores.
O poeta Cândido Guerreiro casou com uma prima direita do meu avô Silvino, Margarida Sousa Costa
A irmã de Alberto Mario Sousa Costa, a Margarida casou com o poeta Cândido Guerreiro em 1909. Foram apresentados pelo irmão pois Sousa Costa, António Sardinha e Aristides Sousa Mendes e Cândido Guerreiro faziam parte do mesmo grupo que se conhecia da Universidade de Coimbra. Durante o tempo em que viveram no Algarve, depois de 1936, os meus avôs, o Silvino e a Maria do Espírito deram-se bastante com o casal Cândido Guerreiro e Margarida Sousa Costa. Afinal de contas a Margarida era prima direita do Silvino. O poeta cândido Guerreiro era um homem de tendências republicanas e antes de casar com a Margarida Sousa Costa teve uma ligação com Maria Veleda (Maria Carolina Frederico Crispin) uma senhora muito à frente do seu tempo, uma republicana convicta, defensora dos direitos das mulheres e que apesar de ter tido um filho de Cândido Guerreiro optou por ser mãe solteira. Curiosamente entre 1912 e 1941 esteve ao serviço da Tutoria da Infância, a instituição criada pelo irmão da mulher que a substituiu no coração de Cândido Guerreiro, o que nos faz pensar, que talvez tenha sido por via do Alberto Mario Sousa Costa, que Maria Veleda conseguiu este lugar.


Em suma, a compra desta moldura tornou-se pretexto para explorar um lado da família cuja existência ignorava e o conhecimento do ambiente literário em que viveram os primos direitos do Silvino, bem como os respectivos conjugues, alguns deles comprometidos com a República serviu-me para entender melhor o meu avô, cuja cultura se poderá também se explicar por este meio familiar. Acredito até que a figura de Emília Sousa Costa poderá ter servido de modelo à minha avô Mimi (Maria do Espírito Santo Montalvão Cunha,) colaboradora literária assídua de jornais e revistas de Bragança e Chaves, bem como do Comércio do Porto.
O porta-retratos encontrou um retrato e uma história para contar

Além das fontes familiares, encontrei informações para coligir este trabalho em:


- Grande enciclopédia portuguesa e brasileira. Lisboa ; Rio de Janeiro : Enciclopédia,195 .

- NOGUEIRA, C.. Emília de Sousa Costa: educação e literatura. Revista Lusófona de Educação, América do Norte, 23, jul. 2013. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/3359>. Acesso em: 11 Aug. 2016.

- http://www.regiao-sul.pt/noticia.php?refnoticia=141452
 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Azulejaria portuguesa numa casa de banho


Nos últimos quarenta e cinco anos, nós os portugueses passámos como que uma esponja na nossa tradição azulejar de séculos e enchemos as nossas casas de banhos com azulejos hediondos, transformando aqueles espaços em divisões banais e tristes.


Comentador habitual deste blog, o meu amigo Manuel resolveu contrariar essa tendência e encomendar azulejos de fabrico artesanal, em verde e branco para o wc da sua casa alentejana. Os primeiros azulejos foram executados pela Cristina Pina e e destinaram-se à zona do duche e passados uns cinco anos, o Manel mandou fazer mais azulejos iguais, desta vez à Isabel Colher, que muita gente conhece através do seu blog, o Tardoz
Os problemas de salitre visíveis na casa de banho do Manel

Mas a colocação dos azulejos não foi apenas uma questão estética. Como a casa do Manel é antiga o reboco estava-se a esfarelar aos poucos, provavelmente porque areia usada para fazer a argamassa tinha sal a mais. Assim, os azulejos resolveram o problema do salitre, isolaram melhor a divisão e emprestaram uma graça especial a este espaço cheio de coisas curiosas, um bidé recuperado de um contentor do lixo perto da minha casa, toalheiros de faiança da Fábrica de Louça de Sacavém, um espelho em mármore dos anos vinte ou trinta, um lavatório antigo e muitas máscaras africanas que vieram nos caixotes de madeira dos retornados e acabaram desprezadas no chão das feiras de velharias.

Toda esta decoração foi rematada com um azulejo solto, que a Isabel Colher ofereceu ao Manel, decorado com a esfera armilar, réplica de um dos azulejos do Palácio Nacional de Sintra, colocado de forma insólita junto ao bidé, para dar uma nota histórica de humor. 
Azulejos do Palácio Nacional de Sintra. Foto Wikipédia
Se nós os portugueses temos uma tradição tão rica em azulejos, porque não reutiliza-la nos espaços onde nos movemos quotidianamente?