quarta-feira, 29 de junho de 2016

Uma desenfreada dança dionisíaca em Elvas

 
Quando viajamos, há nas cidades que visitamos, pormenores que nos chamam a atenção e não conseguimos esquece-los. Em Elvas, encantei-me por com uma varanda burguesa, onde um menino gordo, que parece ter perdido todo o pudor característico dos finais do século XIX se lança nu numa dança desenfreada ora destapando ora cobrindo-se com uma longa écharpe. Dir-se-ia quase que é um dançarino de um espectáculo burlesco para cavalheiros vitorianos. Enfim, este género de figuras faz-me sempre pensar na estranha sexualidade da burguesia dos finais do século XIX, que se comprazia com imagens como estas e escolhi-as para enfeitar as varandas das suas residência.

Donatello. Decoração com danças dionisíacas. Coro da igreja de Santa Maria das Flores, em Florença, estrutura que hoje se pode admirar no Museo dell’Opera del Duomo. Foto Wikipedia

Contudo, faço um julgamento demasiado severo dessas famílias burguesas, que encomendavam varandas decoradas com meninos gordos dançando nus, em números de teatro burlesco. Na verdade este motivo decorativo representa uma dança dionisíaca e era já usado na antiguidade, surgindo nos sarcófagos romanos. No Renascimento, Donatello usou este motivo no coro da igreja de Santa Maria das Flores, em Florença, estrutura que hoje se pode admirar no Museo dell’Opera del Duomo e no século XVIII estes meninos bacantes faziam de tal maneira parte do vocabulário das artes decorativas, que podiam enfeitar a base de um relógio francês. Portanto este motivo decorativo na varanda de uma casa burguesa, que a nós nos parece um bocadinho perverso, tinha a dignidade emprestada pela arte da antiguidade clássica.
Detalhe de relógio francês do séc. XVIII, com putti em dança báquica. Foto retirada da leiloeira Rouillac
Sobre estas varandas de ferro, presentes na arquitectura das casas portuguesas de Norte a Sul do País não há praticamente bibliografia capaz de nos informar sobre os fabricantes, as formas típicas de cada época e por aí fora. O único texto que encontrei foi um artigo do Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto, 3º série, nº 19, de 2001, muito bem escrito por Francisco Queiroz, intitulado Subsídios para a história das fábricas de Fundição do Porto no século XIX. Em primeiro, lugar, este autor esclarece-nos que na época deste balcão, os finais do século XIX, os componentes para estas varandas já eram feitos industrialmente em ferro fundido. Os mais antigos é que eram forjados à mão por oficinas de serralharia. Embora, em alguns trabalho, os serralheiros pudessem fazer um acabamento manual da produção industrial para se conseguir um resultado mais perfeito. Neste artigo de Francisco Queiroz, enumeram-se as fábricas do Porto, a maioria propriedade de famílias inglesas ou a funcionarem com técnicos ingleses e referem-se as também as fábricas lisboetas. No entanto, o assunto parece estar ainda pouco estudado e não há uma relação entre essas fábricas e todas as varandas, peitoris e portões de ferro espalhados por esse País fora.


Aliás, nunca percebi muito bem, porque é nunca ninguém se lançou a estudar a sério este tema da arte do ferro. Só este menino numa dança báquica merece bem que se estude o assunto.

terça-feira, 21 de junho de 2016

S. Balbina: uma estampa do século XVIII de Augsburg

 
Nestes tempos, em que boa parte dos portugueses parecem andar entretidos nas redes sociais a cobrir com os piores insultos políticos, cómicos e cantores e a deixar nas páginas de facebook uns dos outros comentários com apelos à violência contra os muçulmanos, decidir-me por escrever um post sobre a Santa Balbina de Roma parece uma coisa um bocadinho bizantina. Mas, de facto este é um blog dirigido a pessoas educadas, que não garatujam palavrões nas redes sociais e se estão nas tintas para essas polémicas. Talvez a arte e história sejam caminhos de aprendizagem para lidarmos com os outros seres humanos de uma maneira um pouco mais civilizada, embora a simples condição de humanos nos faça estar em conflito permanente uns com os outros. 

Seja como for, esta nossa Balbina é uma santa de que se sabe muito pouco e está hoje esquecida por todos. Viveu no século II e é uma espécie de actriz secundária dos relatos da vida de Santos mais importante, como a do Papa Alexandre I, Quirino ou Hermes. Balbina terá estado ligada à descoberta das correntes, que serviram para prender S. Pedro e que ainda hoje se podem admirar na igreja de S. Pedro o Acorrentado em Roma.

As correntes de S. Pedro. Igreja de San Pietro in Vincoli, Roma

Em linhas muito gerais a história é a seguinte, Alexandre e Hermes foram aprisionados por serem cristãos e o seu carcereiro era Quirino. Cada um dos prisioneiros estava em prisões diferentes, incomunicáveis. Mas um dia um anjo quebrou as cadeias, que prendiam Alexandre e levou-o a visitar a cela de Hermes. Quirinus ficou muito surpreendido com este milagre e pediu-lhe que curasse a sua filha Balbina, que sofria de bócio. O Papa Alexandre respondeu-lhe que trouxesse a sua filha à sua cela e Quirino perguntou-lhe como era possível que ele regressasse lá. Aquele que aqui me trouxe, me trará de volta respondeu Alexandre. E de facto, quando Quirino trouxe a sua filha, lá encontrou o Papa acorrentado de novo. Balbina chorou quando o viu, ajoelhou-se e beijou-lhes as correntes, ao que Alexandre lhe disse para ir procurar as verdadeiras correntes, que tinham prendido S. Pedro e quando as encontrasse, beijasse-as com fervor que ficaria curada. Balbina com auxílio do pai, que era carcereiro e que conhecia os cantos todos das prisões de Roma foi procurar as correntes de S. Pedro, encontrou-as, beijou-as e curou-se. No final, o Papal Alexandre baptizou Quirino, a sua mulher e Balbina e é esse momento que esta estampa representa, o que é confirmado pela legenda latina da cena effunda super vos aqua mundam & mundabimini ab omnibus inquinamentis vestris, retirada da Bíblia, do Livro de Ezequiel, capítulo 36, versículo 25, o que em português quer dizer E derramarei sobre vós uma água pura, e vós sereis purificados de todas as vossas imundícies e eu vos purificarei de todos os vossos ídolos.


Basicamente, o que a história desta Balbina parece querer dizer é que a fé quebra as correntes de qualquer cadeia e talvez por isso no passado esta Santa tenha sido objecto de uma grande devoção. Em Roma há uma igreja dedicada a Santa Balbina e uma das obras-primas do Metropolitain Museum de Nova Iorque é um busto relicário desta santa. Aqui em Portugal, não há muitos anos, o nome de baptismo Balbina não era uma coisa assim muito rara.

Busto relicário de S. Balbina. The Metropolitan Museum of Art
Na estampa não estão identificados os impressores, nem o local de edição, mas é quase certo que seja alemã. Embora não saiba latim, a frase do canto inferior esquerdo, Cum Privil. Sac. Caes. Majest., quer dizer, mais ou menos, publicado com a autorização ou licença de Sua Majestade Imperial e era usada pelos impressores do Sagrado Império Romano Germânico, construção política, que correspondia grosso modo à Alemanha, Áustria, República Checa e parte da Polónia. O estilo é dos impressores de Augsburg, mais particularmente dos irmãos Klauber (Johann Baptist Klauber e Joseph Sebastian Klauber), de que já aqui mostrei duas estampas em 2013 e 2015 e cujas gravuras foram populares em Portugal, usadas como fonte de inspiração não só para os gravadores portugueses, como também para os artistas, que concebiam os grandes altares de talha dourada.

É também curioso, observar que toda esta cena à volta de Santa Balbina, decorre no meio de um cenário de destroços de casas e palácios antigos, uma antiga Roma esboçada em apenas 9,5 x 14,5 cm de papel, o que traduz já a valorização da ruína como elemento estético, nos finais do século XVIII.



Na parte superior da estampa, está indicado do lado esquerdo o dia em que se venera a santa, 31 de Março e foi talvez a data, que me levou a supor que esta estampa não fosse uma folha isolada e talvez tivesse feito parte de um livro, um martirológio romano, isto é, uma obra em que para cada dia do ano há uma imagem com um santo ou uma figura do Antigo Testamento. Fiz umas quantas pesquisas na net e de facto confirmei numa leiloeira alemã, a Galerie Bassenge, que esta gravura de S. Balbina foi uma entre as 392 páginas da obra Annus dierum Sanctorum, editada em Augsburg, em meados do século XVIII, assinadas pelos irmão Klauber, impressas em formato horizontal, com cerca de 9 x 14 cm. Ainda na tertúlia bibliófila encontrei uma colecção quase completa destas estampas, ricamente encadernadas. Com efeito, a minha impressão inicial, de que se tratava de uma obras dos irmãos Klauber estava correcta.

Foto de tertúlia bibliófila