Quando viajamos, há nas cidades que visitamos, pormenores que nos chamam a atenção e não conseguimos esquece-los. Em Elvas, encantei-me por com uma varanda burguesa, onde um menino gordo, que parece ter perdido todo o pudor característico dos finais do século XIX se lança nu numa dança desenfreada ora destapando ora cobrindo-se com uma longa écharpe. Dir-se-ia quase que é um dançarino de um espectáculo burlesco para cavalheiros vitorianos. Enfim, este género de figuras faz-me sempre pensar na estranha sexualidade da burguesia dos finais do século XIX, que se comprazia com imagens como estas e escolhi-as para enfeitar as varandas das suas residência.
Donatello. Decoração com danças dionisíacas. Coro da igreja de Santa Maria das Flores, em Florença, estrutura que hoje se pode admirar no Museo dell’Opera del Duomo. Foto Wikipedia |
Contudo, faço um julgamento demasiado severo dessas famílias burguesas, que encomendavam varandas decoradas com meninos gordos dançando nus, em números de teatro burlesco. Na verdade este motivo decorativo representa uma dança dionisíaca e era já usado na antiguidade, surgindo nos sarcófagos romanos. No Renascimento, Donatello usou este motivo no coro da igreja de Santa Maria das Flores, em Florença, estrutura que hoje se pode admirar no Museo dell’Opera del Duomo e no século XVIII estes meninos bacantes faziam de tal maneira parte do vocabulário das artes decorativas, que podiam enfeitar a base de um relógio francês. Portanto este motivo decorativo na varanda de uma casa burguesa, que a nós nos parece um bocadinho perverso, tinha a dignidade emprestada pela arte da antiguidade clássica.
Detalhe de relógio francês do séc. XVIII, com putti em dança báquica. Foto retirada da leiloeira Rouillac |
Sobre estas varandas de ferro, presentes na arquitectura das casas portuguesas de Norte a Sul do País não há praticamente bibliografia capaz de nos informar sobre os fabricantes, as formas típicas de cada época e por aí fora. O único texto que encontrei foi um artigo do Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto, 3º série, nº 19, de 2001, muito bem escrito por Francisco Queiroz, intitulado Subsídios para a história das fábricas de Fundição do Porto no século XIX. Em primeiro, lugar, este autor esclarece-nos que na época deste balcão, os finais do século XIX, os componentes para estas varandas já eram feitos industrialmente em ferro fundido. Os mais antigos é que eram forjados à mão por oficinas de serralharia. Embora, em alguns trabalho, os serralheiros pudessem fazer um acabamento manual da produção industrial para se conseguir um resultado mais perfeito. Neste artigo de Francisco Queiroz, enumeram-se as fábricas do Porto, a maioria propriedade de famílias inglesas ou a funcionarem com técnicos ingleses e referem-se as também as fábricas lisboetas. No entanto, o assunto parece estar ainda pouco estudado e não há uma relação entre essas fábricas e todas as varandas, peitoris e portões de ferro espalhados por esse País fora.
Aliás, nunca percebi muito bem, porque é nunca ninguém se lançou a estudar a sério este tema da arte do ferro. Só este menino numa dança báquica merece bem que se estude o assunto.
Interessante. Também aprecio muito a arte do ferro e essa varanda é belíssima. Gostei muito da varanda do Donatello. Bom dia!
ResponderEliminarMargarida
EliminarÉ curioso que por vezes não relacionamos estes pormenores das nossas cidades com as grandes obras de arte. Quando resolvi escrever este post não fazia a menor ideia que este menino gordo representava uma dança dionisíaca. Acabei por conseguir encontrar um contexto para este pormenor de uma varanda em ferro, o que acabou por me dar imenso gozo.
Um abraço
Não sei se existe um apanhado deste tipo de peças, de que Portugal é um mundo, pois em todo o sítio encontro sempre belíssimas varandas em ferro.
ResponderEliminarPor vezes tenho a veleidade de pensar que me apeteceria fazer um apanhado fotográfico destes elementos de aquitetura, tal como gostaria de fazer de portas, portadas ou janelas, por exemplo, mas falta-me a capacidade de sistematização e de conseguir fotografar de forma capaz e atraente.
Mas, por todo o lado, encontramos peças lindíssimas, como foi o caso desta.
Portalegre também está cheia de belíssimos exemplares.
E a tua aproximação a estes festivais báquicos também é interessante, se bem que não me parece que os donos deste edifício tivessem este significado especifico em vista quando mandaram instalar estas varandas em ferro fundido.
A boa burguesia portuguesa, e mais propriamente de Elvas, talvez não visse com bons olhos esta situação, se lhes dissessem que os meninos das varandas deles seriam elementos de um festival com finalidades meio duvidosas, no que toca ao catolicismo romano ortodoxo.
Sei que o coro esculpido por Donatello destinar-se-ia a uma igreja católica, mas é um contexto e um mundo completamente diferente.
No entanto é muito feliz, o teres colocado esta peça aqui, pela beleza que introduz no teu post
Manel
Manel
EliminarÀ excepção do artigo de Francisco Queiroz nunca li nada muito sério sobre este assunto da arte do berro, que se vê com tanta abundância nas varandas das casas antigas portuguesas. Há uns álbuns de imagens como "Os ferros de Lisboa / Baltazar Matos Caeiro. - Lisboa : Baltazar Caeiro, 1999", mas são superficiais. Em jovem, quando morava perto de Alfama, iniciei um caderno com desenhos a tinta-da-china de varandas que gostava, mas a coisa ficou por aí. Outros valores mais comezinhos se levantaram.
Claro, a família burguesa que encomendou estas varandas não fazia a menor ideia sobre o que representava este menino. Terá encomendado esta varanda num catálogo a um fabricante português de Lisboa ou do Porto, que copiou um modelo qualquer francês. O Francisco Queiroz Francisco Queiroz, intitulado no seu artigo "Subsídios para a história das fábricas de Fundição do Porto no século XIX" publica algumas imagens destes catálogos, que hoje são obras raras.
É curioso observar que no fundo esta varanda é uma reminiscência da grande obra de Donatello.
Um abraço
Luís,
ResponderEliminarConsegue sempre fixar-se em pormenores interessantes da arquitetura das nossas cidades... sobretudo as alentejanas!
Sem dúvida os ferros forjados são uma arte a preservar e a valorizar. No Banco de Materiais da Câmara do Porto também guardam elementos de ferro forjado, a par com os azulejos, as telhas pintadas, os estuques...
Mas enquanto estão "in situ" é que vale a pena admirá-los e divulgá-los. É o que o Luís tão bem aqui faz.
Beijinhos
Maria Andrade
EliminarPor um acaso do destino, tenho me fixado mais nas cidades e vilas alentejanas, embora eu seja um homem do Norte e tenho muita pena de agora ir tão pouco ao Porto, a Braga, Guimarães, Chaves, Viana ou Aveiro.
É certo que no Alentejo o património urbano está no geral mais bem conservado, mas encantam-me as terras do Norte.
Depois esta minha opção por pormenores é deliberada. Não iria aqui escrever sobre a matriz de Elvas ou sobre as fortificações da Restauração, que são assuntos mais que estudados. Prefiro estes pequenos detalhes, que escaparam aos historiadores arte.
Bjos e obrigado pela sua visita
Luis,
ResponderEliminarEstes balcões (mesmo sem figuras bacantes), junto com as portadas de pedra, em arcos ou retas, geminadas ou não e os beirais de telhões azuis (nem falo das paredes azulejadas) são, em conjunto, meu sonho de moradia. Pelas ruas do Rio antigo são comuns e variadas essas ferragens, sobressaindo-se as de estilo Art Noveau, fundidas por inteiro ou montadas em exímio trabalho de ferreiros que arrebitavam, perfuravam e por fim costuravam as partes como quem passa os cadarços nas botas...
Figuras destacadas nos medalhões, são mais raras, por vezes perfis humanos tipo das moedas.
Quanto a este dançante de seu post me pergunto se é de bronze, ou coisa assim, ligado às grades de fer forge (que é o que parece, se considerarmos ferrugem o avermelhado sobre a pintura branca).
Vira e mexe aparece um para-peito desses nas feiras e leilões. Já as portadas não sabemos para onde vão após tantos sobrados ruirem de vez...
Um abraço.
ab
Amarildo
EliminarTambém partilho consigo o mesmo sonho de casa.
Infelizmente não consigo saber de que material foi feita esta varanda. Muitas vezes não me falta vontade de feito macaco trepar a estes balcões e tentar ver se existem marcas dos fabricantes ou bater à porta e pedir se posso ir ao telhado tentar perceber se os vasos e as urnas das cornijas estão marcados. Mas, confesso que tenho sempre uma certa vergonha e limito-me a aumentar o zoom da máquina.
Um abraço
Pois eu achei interessantíssimo os teus escritos sobre a arte no ferro, que concordo plenamente, que merece mais estudo.
ResponderEliminarE as pequenas cidades, as vilas, apresentam um conteúdo valioso sobre detalhes, na maioria das vezes, tão interessantes.
Maria da Gloria
EliminarQuase todas as cidades e vilas portuguesas tem casas com balcões em ferro muito bonitos, mas se quiser saber ler alguma coisa sobre eles não encontra nada de jeito. Por vezes tenho ideia que os historiadores de arte andam sempre a estudar os mesmos assuntos e vão deixando no esquecimento estas artes ditas menores e que são tão apelativas.
Um abraço
E pelo mundo, há tanto classificado como menor, mas que faz tanta diferença. E passam desapercebido.... beijinho.
EliminarMaria Gloria
ResponderEliminarTalvez estas artes menores sejam tão interessantes, precisamente porque ninguém lhe liga nada e tem tanto a descobrir.
Bjo
Olá a todos
ResponderEliminarJá há mais alguns pequenos trabalhos publicados sobre assuntos similares. Há ainda um outro que está a aguardar publicação, mas tudo em formato de artigo, com não mais do que 15 páginas. Pode ser que daqui a alguns anos já seja possível convencer uma editora a publicar algo mais extenso. Tenho tentado, mas sem sucesso
Um exemplo: http://www.franciscoqueiroz.com/modelos_para_as_artes_do_ferro_aplicadas_a_tumularia_romantica.pdf
Caro Francisco Queiroz
EliminarMuito obrigado pelos links que aqui sugere e que serão úteis para todos os que se interessam por este assunto. Pessoalmente sempre andei pelas cidades portuguesas de boca aberta a admirar as varandas em ferro e sempre tive dificuldade em encontrar bibliografia capaz de satisfazer a minha curiosidade sobre estes elementos tão característicos das casas antigas portuguesas.
Um abraço e obrigado
Outro exemplo:
ResponderEliminarhttp://www.franciscoqueiroz.com/o_ferro_como_forma_de_arte_cemiterial_caso_de_coimbra.pdf