sexta-feira, 29 de junho de 2018

Fragmento de uma estante de missal mogol


Hoje escrevo sobre uma área, sobre a qual sei muito pouco, o mobiliário oriental. Enquanto, que me sinto à vontade para escrever sobre gravura, faiança portuguesa, faiança inglesa ou porcelana europeia dos séculos XIX e XX, nunca aprofundei os meus conhecimentos sobre mobiliário indiano ou indo-português. Claro, quando visitava museus ou exposições temporárias ficava sempre encantado com os contadores, os escritórios e os ventós indo-portugueses ou de estilo mogol, decorados com embutidos de marfim ou madeiras exóticas, mas sempre achei que essas peças só se encontravam nos bons museus ou então à venda por preços milionários nos grandes antiquários.
 

Mas recentemente, encontrei numa banca da feira de Estremoz aquilo que me pareceu uma estante de missal, com uma decoração em embutidos em marfim, que me pareceu semelhante às peças, que vi em exposições dedicadas à arte dos descobrimentos portugueses. Porém, quando lhe peguei, percebi que lhe faltaria uma parte qualquer para ser uma estante de Missal, mas como o trabalho dos embutidos em marfim era feito com uma mestria tão grande, resolvi compra-la na mesma, mesmo sem saber exactamente qual tinha sido a sua função original.
 
 
Os parafusos para colocação na parede foram colocados já em época recente
Chegado a Lisboa, mostrei a peça a uma especialista de arte oriental, a Conceição Borges de Sousa, que foi de opinião, que provavelmente se tratava de uma peça mogol do século XVII, na origem uma estante de missal, alterada numa época desconhecida e reaproveitada para uma nova função. A portinhola, que se abre serviu talvez para colocar um espelho ou uma imagem devota e a peça foi pendurada numa parede

A arte mogol refere-se à actividade artística de um período, que vai de 1526 a 1857, em que uma dinastia de origem turco-mongol governou a maior parte do subcontinente indiano. O apogeu político, económico, cultural e artístico dessa dinastia decorreu entre os séculos XVI e XVII. Estes mogois eram muçulmanos, mas durante o seu governo desenvolveu-se uma requintada arte de fusão entre a cultura indiana, persa e até europeia. As obras de arte mais conhecidas do grande público deste período são de arquitectura, como o célebre Taj Mahal ou então de iluminura, isto é, a ilustração de livros, onde contra a tradição islâmica se representou a figura humana.
 
Contador de mesa. Índia Mogol, primeira metade do séc. XVII. Foto reproduzida de " Missionação : a rota de Lisboa e a rota de Acapulco = Missions in the east : the route to Lisbon and the route to Acapulco / Manuel Castilho. - Lisboa : Manuel Castilho Antiguidades, 2000" 
 Até há bem pouco tempo acreditava-se que não existia propriamente mobiliário mogol, já que a vivência islâmica, que se desenvolvia sobretudo no chão, dispensava móveis. Contudo, precisamente nos séculos XVI e XVII na região de Gujarat desenvolveram-se oficinas de mobiliário, que trabalhavam para o mercado europeu e produziram peças de mobiliário ocidentais como cadeiras, contadores, escritórios e mesas, decoradas com finos embutidos de marfim e onde se misturavam elementos ocidentais, islâmicos e hindus. Essas peças eram escoadas para o Ocidente através de Goa e muitas vezes são classificadas nos museus ou antiquários como peças indo-portuguesas.
 
Estante para colocar o Corão. Índia, séc. XIX. https://www.christies.com/zh-CN/lotfinder/lot_details/?intobjectid=5362869
Terá sido o caso desta estante de missal, que de origem poderia ser uma estante tanto destinada a pousar o Corão como um livro de Missa. Normalmente nestas estantes, o intervalo entre os pés forma como que um arco indiano e são construídas com uma estrutura, semelhante a um banco de tesoura. Este formato passou também para a arte namban, muito embora nestas últimas, um dos lados da tesoura é sempre mais curto que outro.
Estante Namban do Museu Nacional de Arte Antiga. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/matrizpix/home.aspx
 
Relativamente à minha peça, eu terei apenas um dos lados tesoura. A outra metade estará talvez desfeita em mil pedaços, no fundo do oceano ou a servir de bibelot algures em Portugal. Em todo o caso, este fragmento de uma estante de missal será na minha casa o vestígio de uma arte de fusão produzida na Índia, resultante dos descobrimentos portugueses, onde o cristianismo, o hinduísmo e o islão tiveram um encontro feliz, pelo menos ao nível das artes.
 
 
Alguma bibliografia e links consultados:

What happened to the mughal furniture? The role of the imperial workshops, the decorative motifs used, and the influence of western models/  Pedro Moura Carvalho
https://archnet.org/system/publications/contents/5390/original/DPC2134.pdf?1384791804
 
Missionação : a rota de Lisboa e a rota de Acapulco = Missions in the east : the route to Lisbon and the route to Acapulco / Manuel Castilho. - Lisboa : Manuel Castilho Antiguidades, 2000
 
 
https://www.christies.com/zh-CN/lotfinder/lot_details/?intobjectid=5362869

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Santa Helena: pagela francesa do século XIX

Desde os meus trinta e poucos anos, fui-me tornando aos poucos num coleccionador de santinhos em papel, o que é um hábito estranho, já que sou um ateu empedernido. Talvez porque tenha sido sempre um homem com o gosto de estar contra a maré e até de chocar, comecei a comprar aquilo que para as pessoas do meu meio, gente de esquerda ou descristianizada, era insuportável, os santinhos, as virgens e os Cristos e outras imagens piedosas. Normalmente, o meu coleccionismo por estas imagens foca-se no século XVIII, mas por vezes gosto de algumas das pagelas do século XIX, estampadas em papel finamente recortado, como esta Santa Helena, que comprei na Feira de Estremoz pelo preço irrecusável de um euro.

Esta pagela foi impressa em Paris, por L. Turgis Le Jeune, activo entre 1855–87. A casa Turgis (1828-1928) foi uma das maiores editoras de pagelas e outras beatices do seu tempo e em 1858 abriu até uma filial em Nova Iorque, para satisfazer as encomendas dos milhões e milhões de católicos, apostólicos e romanos de todas as Américas. Portanto, as estampas da Casa Turgis encontram-se um pouco em todo o mundo Católico, são baratas e apesar de uma certa religiosidade piegas, que denotam, não deixam de ter um certo charme.
 
O verso da pagela. Impressa em Paris por L. Turgis Le Jeune
Esta Santa Helena viveu entre 250 e 329 no espaço do antigo Império romano e foi mãe do primeiro imperador cristão, Constantino e terá sido ela quem descobriu na Terra Santa a Cruz onde Cristo foi supliciado, bem como os pregos e outros instrumentos do martírio. Helena é uma figura interessante. Terá tido uma origem humilde e trabalhava numa estalagem quando conheceu o general Constâncio Cloro, com quem casou e teve filhos. Este Constâncio Cloro estava preparado para grandes voos e acabou por chegar a imperador de Roma, não sem antes repudiar a pobre Helena, cuja origem humilde não combinava muito bem com os cargos importantes que veio a acumular. Porém, quando o Imperador Constâncio Cloro morreu, quem herdou a púrpura imperial foi Constantino, o filho de ambos, que chamou a mãe à corte, concedendo-lhe o título de Augusta, bem como alguma preponderância nos negócios de estado. Segundo a tradição, terá sido Helena quem influenciou Constantino no sentido de conferir liberdade de culto aos cristãos através do édito de Milão, em 313.
A iconografia típica de Santa Helena: a Cruz, a coroa, o manto imperial e os três pregos da Cruz
Contudo Helena notabilizou-se na história Cristã, por ter descoberto a cruz onde Cristo foi supliciado, numa viagem que empreendeu à terra Santa, transportando-a de volta consigo para Constantinopla.
 
No fundo Santa Helena é a precursora de um vasto movimento que se estenderá por toda a Idade Média e Idade Moderna de procura de relíquias relativas à vida de Cristo, da Virgem e das centenas de santos, que preenchem o calendário católico. Depois dela, empreendem-se viagens à Terra Santa e à Ásia Menor para encontrar o dedo de um santo ou o manto de uma mártir ou a unha de uma santa. As igrejas orgulhavam-se de ter nas suas colecções de relíquias, objectos tão estranhos aos nossos olhos contemporâneos, como o cordão umbilical do Menino Jesus ou o seu prepúcio ou uma pena da pomba do Espírito Santo. Pedacinhos da Cruz eram então às centenas por toda a Europa, de tal forma que no Renascimento, os humanistas comentavam com ironia que se juntassem em todos os lenhos da Santa Cruz, um barco inteiro não seria suficiente para os transportar.
 
Na verdade, esta proliferação de relíquias tem uma explicação, que faz sentido do ponto de vista religioso. No passado, quando se fundava uma igreja nova, por exemplo dedicada a um santo mártir, pedia-se a uma igreja mais antiga para ceder um dente da caveira do mesmo santo e era à volta dessa relíquia que erguia o novo templo.
 
 

Em conclusão, Santa Helena é a pioneira desta procura incessante de relíquias, que é um dos traços mais fortes de todo o Cristianismo. Também por essa mesma razão, no cristianismo ortodoxo, Helena de Constantinopla é a padroeira dos arqueólogos.
 
Alguma bibliografia e links consultados:
 
Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955
 
 

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Açucareiro e caixa de chá em casquinha


Apesar de ter não sei quantos açucareiros em casa, expostos num pequeno louceiro, no dia-a-dia deitava açúcar directamente do boião para a chávena. Como a minha filha se tivesse queixado dessa prática um pouco desleixada, resolvi comprar um açucareiro para uso corrente na feira de velharias de Estremoz. Encontrei um velho açucareiro em casquinha, bonito é certo, mas que já tinha perdido praticamente quase todo o banho de prata, a que foi submetido aquando do seu fabrico. Mas, como era de metal, portanto inquebrável e até me agradava aquela cor velha entre o vermelho e o dourado, comprei-o por um preço muitíssimo em conta. Aproveitei e comprei uma caixa de chá com a mesma decoração e que também já tinha perdido toda a casquinha de prata.
 
Antes da aplicação do Pratex
Coloquei as duas peças a uso e vivia contente com elas, até que o meu amigo Manel me falou num produto, o Pratex, que devolve a prata, às velhas peças, que perderam o seu revestimento original. Resolvi levar o açucareiro e a caixa de chá para o Alentejo, onde mediante um algodãozinho lhes apliquei o Pratex, deixei secar e puxei lustro e o resultado foi maravilhoso, tão fantástico, que resolvi nalgumas zonas, aplicar em menor quantidade o preferido produto, para deixar aqui e acolá alguma patine, o chamado toque do tempo.
Antes da aplicação do Pratex
Aproveitei também a ocasião para tentar apurar alguma coisa acerca da época e do local onde estas peças foram produzidas, mas obtive poucos resultados. No verso, o açucareiro apresenta a marca EPNS, sigla que se refere ao método pela qual a peça foi prateada, Electro Plated Nickel Silver e não a um fabricante em especial. No fundo a sigla EPNS servia para o consumidor saber que estava a comprar um açucareiro ou uma salva com um banho em prata e não uma genuína peça em prata. O açucareiro apresenta umas marcas na asa, mas tão pequeninas, que não as consegui ler.
EPNS (Electro Plated Nickel Silver)
 
Não consegui identificar as marcas na asa
O processo EPNS (Electro Plated Nickel Silver) foi inventado logo nos primeiros anos do século XIX, mas só começou a ser aplicado à indústria a partir de 1840 pelos ingleses George Elkington and Henry Elkington e rapidamente se generalizou pela Europa e pelos Estados Unidos. A sigla EPNS foi usada sobretudo pelos fabricantes ingleses e americanos.
 
Caixa de chá encontrada à venda no e-bay em Inglaterra e dada como peça vitoriana.
Não consegui avançar muito mais nas minhas pesquisas sobre a identificação destas duas peças, mas encontrei muitas peças com decoração semelhante ou igual à venda nos sites ingleses, datadas dos finais do século XIX e nessa época mercado da casquinha era dominado pelo Reino Unido. É provável que este açucareiro e esta caixa de chá tenham sido feitos em Inglaterra, nos finais do século XIX ou mesmo até no início do XX, por algum fabricante de Sheffield, cidade inglesa onde se concentrou grande parte da indústria de cutelaria, aço e metais do Reino Unido.