domingo, 18 de fevereiro de 2024

As cartas de uma prima afastada do Brasil ou o gosto de Liberal Sampaio em partilhar a sua cultura

Edith Manso


Já aqui tinha referido as cartas que o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio recebeu de António Cachapuz e da amizade que se desenvolveu entre os dois, através da troca de livros e longas tardes de conversa, muito embora politicamente estivessem em campos opostos e terem também idades muito diferentes.

Outro exemplo dessa abertura de espírito do meu trisavô, são as cartas que recebeu entre 1922 e 1931 de uma prima afastada do Brasil, a jovem Edith Manso de Barros Liberal. Não consegui perceber exactamente o parentesco entre os dois, mas seriam certamente primos por parte da mãe do meu trisavô, Maria Gonçalves Liberal, gente de Antigo de Arcos, freguesia de Sarraquinhos, no Concelho de Montalegre

Esta jovem vivia numa cidadezinha do Brasil, Ribeirão Preto, uma terra onde não existiriam na altura bibliotecas ou livrarias, mas apesar desse isolamento, demonstrava um grande interesse pelos livros e pela cultura.




Na primeira carta de 22 de Setembro de 1922, refere um livro, que terá pedido numa carta anterior, pedindo-lhe o favor de o enviar em português e sonha voar até à pátria dos seus sonhos e conhecer Liberal Sampaio e passar uma revista na sua biblioteca. Manifesta o desejo de ler os imortais Castilho, Garrett, Herculano, Shakespeare, Chateaubriand e Madame de Stael, mas no interior, onde vive, contenta-se apenas com o desejo. Ainda assim conhece o grande Camões, Bocage, mas quereria ler Homero, Heródoto e os mais ilustres imortais gregos. Imensa será sua dita, no dia que receber a minha Eneida.

Menciona ainda as suas alunas, pobrezitas, são órfãs, o que me faz supor que a Edith fosse professora, talvez nalgum colégio religioso para raparigas pobres. Aliás, a sua caligrafia parece ser a de uma mestra, como que cuidadosamente desenhada no quadro de ardósia para que os meninos a entendam, copiem e pratiquem a boa letra. Por por fim, envia também a sua fotografia, no chamado formato bilhete de identidade.


Na segunda carta de 4 de Agosto de 1924, escreve que acabou de receber por uma viúva e filhos vindos de Portugal, os livros que Liberal lhe prometera e iniciou a leitura da Meditação, pedindo-lhe desculpa pelo atraso da carta, pois entretanto tinha eclodido a revolução no estado de São Paulo, a chamada Revolta Paulista de 1924, conflito brasileiro com características de guerra civil. Iniciado na cidade de São Paulo em 5 de Julho, o movimento expandiu-se ao interior e inspirou levantamentos em outros estados.



A Edith Manso voltou a escrever ao meu trisavô a 28 de Abril de 1924, desta vez dando-lhe informações sobre o seu vencimento 343$800 réis, que lhe dava muito bem para si e ajudar os pais. Em 17 de Setembro desse ano, numa nova carta a jovem de Ribeirão Preto, queixou-se das condições económicas e para o primo pedir ao bondosíssimo Redentor, que nos ajude, que nos de saúde, inteligência (esta última para mim ) e força para lutar. Mais adiante, escreve não me canso de ler a Eneida, estou já no 2º livro, leio-o muito devagar, porque todo o instante preciso de ir ver o dicionário dos nomes próprios (deuses, deusas, ninfas, etc.) para melhor compreender e no paragrafo seguinte mais uma vez lhe agradeço os livros, que são a minha felicidade, pois enquanto os leio, não penso em …outras coisas como, cinemas, festas e bailes…etc.. Por último, promete mandar-lhe o retrato da sua formatura.

A última carta foi escrita no dia um de Janeiro de 1931 e a prima Edith diz “eu tenho lido e relido os livros que me enviou, em cada página parece-me ver um pedaço de sua alma, essa alma tão boa, tão caridosa e tão fina.
José Rodrigues Liberal Sampaio
No tempo que recebeu estas cartas Liberal Sampaio era já um homem idoso

Esta relação epistolar entre uma jovenzinha de uma cidade do interior do Brasil e o um homem que nessa altura andava já nos seus setenta e muitos anos, com dois cursos superiores, numismata, advogado e bibliófilo e colaborador regular da imprensa regional é muito curiosa. Não sei o que o meu trisavô pensava acerca da educação feminina, nunca li nada nas suas cartas, referente a esse assunto, mas segundo a mentalidade dominante na época, o mais natural era que não perdesse muito tempo com a jovem, aconselhando-a não tentar ler obras de grandes escritores, que a poderiam perturbar e a dedicar-se antes à confecção do seu enxoval. Mas, talvez a jovem Edith, tenha recordado a Liberal Sampaio o seu difícil acesso à educação numa aldeia perdida das terras altas do Barroso, conforme ele próprio recorda num caderninho que sobreviveu até ao momento presente Aos sete anos passei a frequentar a aula nocturna de um curioso, que ao completar nove anos, me deu preparado para ir a Vilar de Perdizes habilitar-me na instrução primária com o Professor régio Bento Pires Esteves, o melhor e quase único do Concelho. E assim sendo, o meu trisavô, Liberal Sampaio foi comprando livros e enviou-os para o Brasil, uma vez por portadores, outras talvez por correio e ontem como hoje, enviar encomendas para aquele País, ainda que apenas livros, era e é caro. Creio que entendeu o desejo de conhecer os clássicos da literatura desta jovem e a cultura é algo, que sempre ultrapassa oceanos, fronteiras, idades e transcende a identidade sexual.



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Talheres de prata franceses estilo arte nova ou a atracção pelo inútil



Há umas semanas comprei um conjunto de talheres de prata na Feira de Estremoz por um preço muitíssimo convidativo. Quatro deles são de uma tipologia, que eu nunca tinha visto na vida. São semelhantes aqueles talheres para segurar o osso do da perna do perú, enquanto, que com uma faca trinchante se vai cortando as várias fatias de carne, só que muito mais pequenos, pois têm apenas 14 cm de comprimento. O vendedor informou-me que serviam para comer perdizes e que eram franceses.

Quando voltei para a casa, cai em mim, pensando Disparate! Mas para que é eu quero talheres para comer perdizes e sei lá eu cozinhar perdizes! Mas, eram tão bonitos, lavrados com motivos florais característicos da arte nova, que me convenci que afinal foram uma boa compra e que ficariam bem lá por casa, nem que fosse só como decoração.

A parte superior dos talheres tinham um banho de dourado muito enferrujado, que infelizmente não se pode manter.


Em todo o caso, resolvi tirar a limpo essa história de serem talheres para comer perdizes e lancei-me numa busca sistemática nos sites dos antiquários franceses e no www.protantic.com encontrei um conjunto destes talheres em prata, que em França se designam por Manches à Côtelettes. São instrumentos para segurar o osso de costeletas ou eventualmente de pequenas aves, sem ter que sujar as mãos. O mecanismo no topo permite um ajuste à medida da grossura do osso e prende-o assim com segurança. Em França estes talheres eram muito comuns e encontrei muitos conjuntos à venda, de 12 ou 6 pessoas, alguns ainda com os estojos originais dos ourives.

O senhor que me vendeu estes talheres compra muito em França, nas grandes feiras que existem naquele país e depois revende por cá, mas à cautela decidi confirmar se eram realmente franceses e mais uma vez esbarrei com a tremenda dificuldade em ler as minúsculas sinalefas dos punções de garantia e marcas de ourives. As lupas que tenho em casa são fracas e a única forma que tenho de as ler, é usar o telemóvel, ampliando a imagem até ao extremo, e depois tirar a fotografia e ainda assim só a terceira tentativa é que obtive uma imagem nítida da marca. 

A Minerva


Trata-se do punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva usada entre 1838 e 1973. É um período cronológico, muito grande, mas pelo menos tenho a certeza que estes talheres são franceses, de prata e de boa qualidade, pois tem o nº 1 à direita da cabeça. Contudo, não são prata maciça ao contrário dos restos do faqueiro, que herdei da minha avó. O cabo é apenas uma folha de prata, que reveste outro material.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva usada entre 1838 e 1973. Imagem retirada de https://argenterieetorfevrerie.wordpress.com/les-poincons-francais-1789-a-nos-jours-de-1789-a-1798-periode-dite-revolutionnaire/



Dois dos talheres, apresentam uma segunda marca incisa, talvez a do ourives, mas essa é tão pequena que não consegui descodifica-la, por mais que tentasse.

Esta segunda marca não consegui descodifica-la


Se através da punção Minerva, só posso afirmar com segurança que estes talheres foram produzidos em França entre 1838-1973, a decoração de elementos vegetais que se distribuem de forma assimétrica pelo cabo é típica da arte nova, o que me permite data-los entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX. Ao contrário de outros estilos artísticos, não houve ao longo do século XX revivalismos de arte nova, com excepção dos candeeiros e dos vidros, que foram replicados ou serviram de inspiração a novas peças nos últimos vinte ou trinta anos. Para os faqueiros de prata, ao longo do século XX e mesmo no momento presente, as pessoas com posses para os adquirir preferiam ou preferem os estilos mais clássicos como o Luís XV ou Luís XVI em França e em Portugal, o D. João V ou D. Maria. Por exemplo, nas ourivesarias portuguesas ainda hoje encontramos à venda os talheres das caninhas, uma decoração neoclássica, posta na moda há mais de 200 anos, mas feitos agora.




Em suma, tenho em casa uns talheres de prata franceses com cerca de 120 anos para comer costeletas de borrego, porco ou para perdizes, que nunca irei usar na vida, mas que são um testemunho de um tempo onde as famílias mandavam gravar o seu monograma nos faqueiros, as mesas eram postas com arte, com refeições de vários pratos e com variedade enorme de talheres para comer e servir, desde ostras, a morangos, passando por caracóis. Para quem, como eu põe o prato num tabuleiro de plástico e janta em frente à TV estes pensamentos são reconfortantes.

Os talheres encontraram um lugar no meio dos meus tarecos


Alguma bibliografia e ligações consultadas:

A guide to old French plate / Louis Carré. - London : Eyre and Spottiswoode, 1971.

Les poinçons de garantie internationaux pour l'argent / [ed. lit] Tardy. - 5ème éd. - Paris : Tardy, 1957.