Já aqui tinha referido as cartas que o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio recebeu de António Cachapuz e da amizade que se desenvolveu entre os dois, através da troca de livros e longas tardes de conversa, muito embora politicamente estivessem em campos opostos e terem também idades muito diferentes.
Outro exemplo dessa abertura de espírito do meu trisavô, são as cartas que recebeu entre 1922 e 1931 de uma prima afastada do Brasil, a jovem Edith Manso de Barros Liberal. Não consegui perceber exactamente o parentesco entre os dois, mas seriam certamente primos por parte da mãe do meu trisavô, Maria Gonçalves Liberal, gente de Antigo de Arcos, freguesia de Sarraquinhos, no Concelho de Montalegre
Esta jovem vivia numa cidadezinha do Brasil, Ribeirão Preto, uma terra onde não existiriam na altura bibliotecas ou livrarias, mas apesar desse isolamento, demonstrava um grande interesse pelos livros e pela cultura.
Na primeira carta de 22 de Setembro de 1922, refere um livro, que terá pedido numa carta anterior, pedindo-lhe o favor de o enviar em português e sonha voar até à pátria dos seus sonhos e conhecer Liberal Sampaio e passar uma revista na sua biblioteca. Manifesta o desejo de ler os imortais Castilho, Garrett, Herculano, Shakespeare, Chateaubriand e Madame de Stael, mas no interior, onde vive, contenta-se apenas com o desejo. Ainda assim conhece o grande Camões, Bocage, mas quereria ler Homero, Heródoto e os mais ilustres imortais gregos. Imensa será sua dita, no dia que receber a minha Eneida.
Menciona ainda as suas alunas, pobrezitas, são órfãs, o que me faz supor que a Edith fosse professora, talvez nalgum colégio religioso para raparigas pobres. Aliás, a sua caligrafia parece ser a de uma mestra, como que cuidadosamente desenhada no quadro de ardósia para que os meninos a entendam, copiem e pratiquem a boa letra. Por por fim, envia também a sua fotografia, no chamado formato bilhete de identidade.
Na segunda carta de 4 de Agosto de 1924, escreve que acabou de receber por uma viúva e filhos vindos de Portugal, os livros que Liberal lhe prometera e iniciou a leitura da Meditação, pedindo-lhe desculpa pelo atraso da carta, pois entretanto tinha eclodido a revolução no estado de São Paulo, a chamada Revolta Paulista de 1924, conflito brasileiro com características de guerra civil. Iniciado na cidade de São Paulo em 5 de Julho, o movimento expandiu-se ao interior e inspirou levantamentos em outros estados.
A Edith Manso voltou a escrever ao meu trisavô a 28 de Abril de 1924, desta vez dando-lhe informações sobre o seu vencimento 343$800 réis, que lhe dava muito bem para si e ajudar os pais. Em 17 de Setembro desse ano, numa nova carta a jovem de Ribeirão Preto, queixou-se das condições económicas e para o primo pedir ao bondosíssimo Redentor, que nos ajude, que nos de saúde, inteligência (esta última para mim ) e força para lutar. Mais adiante, escreve não me canso de ler a Eneida, estou já no 2º livro, leio-o muito devagar, porque todo o instante preciso de ir ver o dicionário dos nomes próprios (deuses, deusas, ninfas, etc.) para melhor compreender e no paragrafo seguinte mais uma vez lhe agradeço os livros, que são a minha felicidade, pois enquanto os leio, não penso em …outras coisas como, cinemas, festas e bailes…etc.. Por último, promete mandar-lhe o retrato da sua formatura.
A última carta foi escrita no dia um de Janeiro de 1931 e a prima Edith diz “eu tenho lido e relido os livros que me enviou, em cada página parece-me ver um pedaço de sua alma, essa alma tão boa, tão caridosa e tão fina.
Esta relação epistolar entre uma jovenzinha de uma cidade do interior do Brasil e o um homem que nessa altura andava já nos seus setenta e muitos anos, com dois cursos superiores, numismata, advogado e bibliófilo e colaborador regular da imprensa regional é muito curiosa. Não sei o que o meu trisavô pensava acerca da educação feminina, nunca li nada nas suas cartas, referente a esse assunto, mas segundo a mentalidade dominante na época, o mais natural era que não perdesse muito tempo com a jovem, aconselhando-a não tentar ler obras de grandes escritores, que a poderiam perturbar e a dedicar-se antes à confecção do seu enxoval. Mas, talvez a jovem Edith, tenha recordado a Liberal Sampaio o seu difícil acesso à educação numa aldeia perdida das terras altas do Barroso, conforme ele próprio recorda num caderninho que sobreviveu até ao momento presente Aos sete anos passei a frequentar a aula nocturna de um curioso, que ao completar nove anos, me deu preparado para ir a Vilar de Perdizes habilitar-me na instrução primária com o Professor régio Bento Pires Esteves, o melhor e quase único do Concelho. E assim sendo, o meu trisavô, Liberal Sampaio foi comprando livros e enviou-os para o Brasil, uma vez por portadores, outras talvez por correio e ontem como hoje, enviar encomendas para aquele País, ainda que apenas livros, era e é caro. Creio que entendeu o desejo de conhecer os clássicos da literatura desta jovem e a cultura é algo, que sempre ultrapassa oceanos, fronteiras, idades e transcende a identidade sexual.
É curiosa esta correspondência, porque incomum. Faz-me lembrar o filme "84, Charing Cross", sobre uma relação baseada na correspondência entre uma novaiorquina e uma casa de venda livros ingleses em segunda mão, em Londres, no período pós segunda Guerra Mundial. Com uma atriz fantástica como a Anne Bancroft e um outro ator muito bom, Anthony Hopkins nos papéis principais, e com uma Judi Dench à mistura, o filme não poderia ser melhor.
ResponderEliminarEsta relação epistolar entre um senhor, no ocaso da vida, e uma jovem no interior do Brasil, à procura de clássicos, no sentido de desenvolver a sua cultura, é única e muito bem vinda a este teu blog.
Ainda por cima a ler a Eneida, que eu nunca li, nem creio que venha a ler (conheço a história em resumo, e nada mais), pois é uma literatura difícil para uma pessoa como eu, que não conhece bem os clássicos. Li os clássicos gregos em edições abreviadas próprias para jovens que existiam na minha juventude, e, mais tarde, desenvolvi alguns estudos sobretudo sobre a Ilíada e a Odisseia, porque os considerei fundamentais para perceber o significado da representação da pintura grega do período da antiguidade clássica grega. A mitologia grega está baseada nestas obras.
Ainda bem que fizeste reviver mais este capítulo da vida do teu trisavô.
Mostra aspetos interessantes da sua personalidade
Manel
Manel
EliminarÉ verdade, esta relação epistolar recorda um pouco o filme "84, Charing Cross". O interesse comum que liga a jovem Edith Manso e o meu trisavô é o gosto pelos livros e pela cultura. Estas cartas evidenciam também a generosidade de Liberal Sampaio em partilhar a sua cultura e até mais, enviando livros para o Brasil, pagos por ele.
Fiquei também muito impressionado com esta rapariga que andava a ler a Eneida. Eu nunca li essa obra, nem tão pouco a Odisseia ou a Ilíada. Claro, na faculdade li a Maria Helena da Rocha Pereira, que tinha muitas excertos desses dois últimos livros e interpretações críticas. Mas, nunca ter lido um desses clássicos, é sem dúvida uma falha na minha cultura.
Um abraço
Não sabia que escrevia tão bem DR adorei a narrativa ......bji Teresa
ResponderEliminarTeresa
EliminarMuito obrigado. Só escrevo bem quando acredito nas minhas palavras e sou sincero com aqueles que me leem. Se tiver que escrever um texto oficial, sai tudo uma treta.
Bjos
Não sabia que escrevia tão bem DR adorei a narrativa ......bji Teresa
ResponderEliminarLuís,
ResponderEliminarA sua história e narrativa é muito interessante pelo que revela do gosto pela cultura e literatura dos dois personagens tentando ultrapassar a distâncias geográfica que os separava.
É bom valorizar uma época com tantas limitações ultrapassadas pelo empenhamento e interesse pela cultura.
JOSÉ CARNEIRO
Zé Carneiro
EliminarEsta história ilustra bem como a cultura aproxima as pessoas, mesmo tendo um oceano a separa-las ou tendo idades e estatutos sociais diferentes. A cultura é um sempre um valor mais alto.
Um abraço
Que beleza essa carta de Edith, tão bem escrita. Ela deveria ser contratada como professora de um orfanato do interior. Nas fazendas de café os proprietários às vezes contratavam professoras para ensinar os seus filhos que tinham que viver na área rural e também para filhos de colonos italianos.
ResponderEliminarNão sei se Ribeirão Preto estava entre as cidades que vieram a se projetar economicamente com as fazendas de café.
Seria professora dos filhos dos barões do café, também dos colonos italianos e filhos de antigos escravizados.
"Sou assaz pobre..." que vida vida dura ela deve ter vivido... será que casou? teve filhos?Morreu velhinha em Ribeirão Preto?
O que terá sido de Edith????
Abraços, Luís.
Jorge
EliminarAinda fiz algumas pesquisas na net sobre esta Edith, uma rapariga com tanto desejo de saber e aprender, mas não encontrei nada. Também não conheço os arquivos brasileiros. Por cá, já sei em que arquivos procurar e ainda que pela simples consulta dos inventários consigo descortinar alguma coisa sobre as pessoas, se casaram, o ano em que morreram, a profissão. Desta Edite tenho apenas informações de que a família seria portuguesa, de Montalegre, professora de crianças e sobre o seu enorme desejo de saber e esta fotografia, que revela um rosto com personalidade. Mas talvez apareçam mais cartas dela. Um grande abraço de Lisboa