sábado, 7 de outubro de 2023

António Cachapuz e Liberal Sampaio: dois amigos em campos políticos opostos.

Liberal Sampaio

Tenho publicado aqui no blog muito sobre o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), mas referi quase sempre de passagem sua actividade intelectual e, no entanto, os artigos de homenagem, que foram publicados aquando da sua morte, dão notícia da sua rede de correspondência com homens cultos da época e que abria a enorme biblioteca no solar de Outeiro Seco aos interessados. A minha avó, Maria Montalvão Cunha, num texto que publicou nos I jogos florais de Montalegre em 1981, transcreveu um autógrafo do Abade de Baçal(*1) em que este se refere a Liberal Sampaio nos seguintes termos: foi ele que me indicou os livros a consultar. Foi ele que me facilitou a leitura de preciosas raridades bibliográficas da sua enorme biblioteca que por serem raríssimas, senão únicas, por serem caríssimas, só acessíveis a amadores ricos, eu nunca chegaria a ler.



Durante as férias aproveitei para trabalhar bastante no tratamento do espólio e começaram a surgir alguns documentos testemunhando essa faceta do meu antepassado. Entre elas estavam três cartas de um senhor dirigidas ao meu trisavô, em que basicamente escreviam sobre livros e trocavam-nos um com o outro. O problema foi a decifrar a assinatura do Senhor. Achava que seria António Cadafaz e cheguei a pensar, que fosse algum antepassado do Professor Cadafaz de Matos, mas pesquisando no motor de busca do Arquivo Distrital de Vila Real e no Diário de Governo Digital não me aparecia nenhum Cadafaz activo em Chaves ou no Distrito de Vila Real. Pedi ajuda a uma amiga, que é uma barra em paleografia, a Maria João Vilhena, que leu letra a letra a rubrica e através do whatsapp começamos por aproximações, Cachafaz, Cachapa, até que chegamos a Cachapuz e pesquisando no motor de busca do Arquivo Distrital de Vila Real, encontrei uns quantos Cachapuz, com residência em Chaves e percebi que o senhor pertencia uma família flaviense. A partir daí foi fácil e foi só puxar o fio ao novelo. O autor das cartas foi António Pereira da Costa Cachapuz (1884-1963), que viveu e morreu em Chaves. Foi professor do Liceu e também na Escola Industrial e Comercial de Chaves, vereador durante a República e pelo teor das suas cartas foi obviamente um homem culto.

António Cachapuz em 1920. Foto retirada de https://chavesantiga.blogs.sapo.pt/257213.htm


Só uma das cartas está datada, de 10 de Fevereiro de 1924 as outras duas não, e como foram entregues em mão, não há carimbos dos correios, que permitam data-las. Mas como temas são próximos, parecem-me todas mais ou menos da mesma época.





Na primeira carta trata o meu trisavô por Meu Exmo. Amigo e escreve tenho ideia que V. Exa publicou em tempos alguns artigos sobre Chaves antiga. Precisava de consulta-los agora, se V. Exa. tiver a bondade de mandar-me pelo portador qualquer coisa que aí tenha sobre o assunto será favor. Amanhã mesmo lhes serão restituídos. Vai aí o meu filho por eu me encontrar retido em casa por doença.

Creio que o meu trisavô foi pioneiro nos estudos de história antiga de Chaves, em particular do período romano, mas como tudo o que publicou foi na imprensa periódica seu trabalho acabou por cair esquecimento.






Na carta que segue, António Cachapuz envia ao meu trisavô pelo portador a Psicologia política de Le Bom, a Arte Grega de J. Barreira e as Terras do céu de Flamarion.

Mandarei o Forum romano, logo que acabe de tirar umas notas. Se V. Exa por aqui passasse poderia porventura encontrar qualquer coisa que o distraísse, assim vão à sorte.

Já principiei a ler o Dicionário de Noel, que tem a maior parte da matéria que tenho encontrado por vários livros. É um auxiliar para o meu trabalho

Dado que, por qualquer circunstância imprevista eu não possa ir na quarta-feira visitar V. Exa. Seria favor enviar-me o outro ou outros dois volumes pagando eu aqui ao portador.

Despede-se depois, afirmando-se como amigo grato e admirador






Na terceira carta, de 10 de Fevereiro de 1924, António Cachapuz escreve como há dias me disse não conhecer os Ensinamentos psicológicos da guerra europeia e a psicologia das revoluções de G. Le Bon, envio-lhes para entreter os seus ócios .

O portador pode trazer as Civilizações do Oriente do mesmo autor, que amavelmente pôs à minha disposição e eu não trouxe da última vez.

Enquanto de passeio até cá acima, terei muito prazer em que nesta sua casa escolha entre o pouco que cá tenho, bem assim, aguardo a sua preciosa ajuda nos termos da nossa conversa.

Algumas das obras que estes homens andavam a ler reconheci-as de imediato, nomeadamente as de Gustave Le Bon (1841-1931), que cataloguei quando tratei da biblioteca de António Sardinha (1887-1925). Le Bon era um autor muito lido na época e muitos dos seus livros já estavam traduzidos para português. O seu grande contributo é a noção de psicologia das multidões, que não é um somatório das vontades dos indivíduos, mas antes uma entidade própria, que pode ser extremamente violenta, mas também manipulada. Algumas das suas teorias mais tarde serão aproveitadas, por todos os movimentos de extrema-direita, fascistas e nazis, que floresceram na Europa nos 15 anos seguintes à troca destas cartas. Mas, nem todos tiraram essas ilações das obras deste autor francês. Nos dez anos que se seguiram até à sua morte em 1935, Liberal Sampaio não teve qualquer participação na vida política e o filho de Cachapuz, o tal rapaz que entregava os livros em mão na primeira carta, o Francisco de Barros Cachapuz (1914-1993) tornou-se num activo anti-fascista, opositor feroz do regime de Salazar, que lutou na guerra civil de Espanha ao lado dos republicanos. Esteve preso e depois exilou-se no Brasil, foi um dos fundadores do Partido Socialista Português e segundo Helena Pato deve ao seu pai a sua formação humanista e libertária.

António Cachapuz emprestou ao meu avô, a Arte grega de João Barreira, que tinha sido publicada em 1923 e ainda as Terras do céu, de Camille Flammarion (1842-1925), que já estavam traduzidas para português, nesta época. Irmão de Ernest Flammarion, o fundador da célebre editora francesa com o mesmo nome, este Camille Flammarion foi um grande divulgador de assuntos de astronomia. Em troca, Liberal Sampaio emprestou-lhe o Forum Romano, obra que não consegui identificar e ainda o dicionário de Noel. Este autor certamente trata-se de François Noel (1756-1841), mas que escreveu dois dicionários e tanto poderá ser o Nouveau dictionnaire des origines, inventions et découvertes dans les arts, les sciences como o Dictionnaire de la fable. O meu trisavô tinha os dois na sua biblioteca, o primeiro numa edição de 1837 e o segundo numa edição de 1810.

Uma imagem do catálogo da biblioteca de Outeiro Seco, onde se encontram referidos os dicionários de  François Noel  


Através destas cartas, ficamos com idéia que os dois tinham uma cultura eclética, que tanto se interessavam por sociologia política, como por astronomia, passando pela história, pela arte e ainda pelas civilizações do Oriente. Ao mesmo tempo, testemunham a amizade de dois homens de idades muito diferentes, o Liberal Sampaio em 1924 tinha 78 anos e o António Cachapuz 40 anos, com filiações políticas opostas, o primeiro monárquico e o segundo republicano. Em Chaves, filiações partidárias opostas no tempo da primeira república (1910-1926)  significaram neste caso, que durante as incursões de Paiva Couceiro em 1911, com vista ao restabelecimento da monarquia em Portugal, o meu trisavô foi perseguido pelos republicanos na chamada caça aos padres, escondendo-se das tropas num quarto secreto do Solar de Outeiro Seco e depois disso, se refugiou durante alguns tempos na Galiza, ao mesmo tempo que António Cachapuz como fervoroso republicano partia para Vinhais para combater os paivantes.

Mas num momento qualquer que não posso precisar, os dois tão diferentes, descobriram o mesmo gosto pelos livros, pela cultura e visitavam-se, mostravam as preciosidades bibliográficas das suas bibliotecas e conversariam longamente. Como diriam os franceses, Les beaux esprits se rencontrent toujours.

A casa de António Cachapuz em Chaves. Foto retirada de https://chaves.blogs.sapo.pt/tag/francisco+de+barros+cachapuz

Bibliografia e ligações consultadas:


História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012

Dr. Padre José Rodrigues Liberal Sampaio / Maria do Espírito Santo Ferreira Alves Montalvão Cunha
in
I Jogos florais de Montalegre. - Montalegre: Câmara Municipal de Montalegre, 1981. - 47-53 p.

Francisco Cachapuz [ou Paulo de Castro] / Helena Pato
In
Jornal Tornado Online. - (25 Fevereiro, 2018)




https://chaves.blogs.sapo.pt/tag/francisco+de+barros+cachapuz

Notas: 
(*1) Palavras de um autógrafo do Abade aquando de uma conferência realizada no cube de Bragança 15-6-1946

4 comentários:

  1. Mais outra faceta do teu antepassado que surge mais nítida, pois já a sabias existente antes.
    É a confirmação de uma atividade intelectual levada a cabo pelas poucas mentes que a isso se dedicavam no interior de Portugal.
    Nos grandes centros urbanos estas mentes, não sendo abundantes, eram mais comuns, e o próprio ambiente a isso propiciava, mas neste interior fechado e claustrofóbico não eram fáceis de surgir. Seria um remar contra ventos e marés de uma interioridade que não estava muito virada para a exploração destes assuntos da cultura.
    E assim vai surgindo uma pessoa, através do que dele ficou, e da tua força de vontade e paciência
    Manel

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    1. Manel

      É verdade. Já tinha lido sobre esta faceta do meu trisavô, mas só agora encontrei as primeiras cartas e de facto demonstram uma certa abertura de espírito. Este António Cachapuz estava num campo político oposto, mas os dois encontravam-se, conversavam e trocavam livros. Claro, os dois já se conheciam anteriormente. O Liberal Sampaio conheceria os pais. Em Chaves todos se conheciam, mas não deixa de ser curioso como estes dois homens formam uma relação baseada na cultura. Também é interessante perceber que livros liam exactamente. Também já apanhei uma série de cartas de uma sobrinha de Liberal, no Brasil, uma jovem professora, a qual o meu antepassado enviava livros, como a Eneida. Creio que gostava de incentivar a cultura dos outros e partilhar a sua. É uma característica interessante.

      Um abraço e obrigado pelo teu apoio

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  2. Respostas
    1. Margarida. Muito obrigado pela paciência que tem ler tudo o que escrevo. Um bom resto de fim-de-semana

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