sábado, 21 de outubro de 2023

Restos de um antigo faqueiro de prata do início do século XIX ou desvendando marcas misteriosas



Hoje escrevo sobre um assunto ao qual pouca atenção tenho dado, pratas. Tenho em casa uma ou outra salva e ainda a terça parte de um faqueiro de 12 pessoas, coisas que a minha avó recebeu por ocasião do seu casamento em 1930. Há 29 anos, os meus irmãos e eu fizemos o disparate de dividir esse faqueiro pelos três, de modo que, cada um de nós só pode oferecer um jantar para 4 pessoas. Hoje sei que nunca se devem estragar conjuntos, pois peças avulsas perdem valor monetário e até o interesse artístico. Mas como dizia um velho professor meu da faculdade, a experiência, quando se a têm, já não serve para nada.

Como passo a vida restolhar trastes nas feiras de velharias, decidi completar esse faqueiro, mas com peças diferentes e há uns tempos trouxe para casa três facas de carne e ainda quatro talheres de sobremesa, uma colher e três garfos. Todos eles tão pretos, oxidados e sujos, que mais pareciam mais ferro que outra coisa. Mas gostei da sua decoração neoclássica muito elegante e apresentavam a chamada marca da bicha, que já tinha ouvido dizer, distinguir a prata mais antiga.

A chamada marca da bicha


O primeiro trabalho foi limpar a prata e tentar retirar a ferrugem das lâminas, embora não tenha conseguido realizar esta última tarefa com êxito. Depois comecei a tentar ler na net alguma coisa sobre pratas antigas portuguesas e num artigo de Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, aprendi que a referida bicha não é nenhuma marca que identifique um ourives ou tão pouco um ensaiador. A bicha é o vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal deixando uma marca em forma de ziguezague.

Em todo o caso, esta técnica de verificação da qualidade da prata terminou na década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias e portanto estes talheres são anteriores a 1882.

Antes da década de 80 do século XIX, os ensaiadores tinham uma ligação municipal e as marcas que usavam nas peças para certificar a sua qualidade consistiam na primeira letra da cidade onde estavam, que normalmente eram centros de trabalho da prata ou do ouro, isto é, Lisboa, o Porto, Braga, Guimarães, mas também Coimbra ou Évora. Ao mesmo tempo, o ourives assinava também os talheres, salvas ou bules de chá com as iniciais do seu nome. Agarrei e numa lupa e num dicionário especializado, o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras: século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos e cheio de boa vontade e optimismo lancei-me ao trabalho de decifrar as minúsculas e misteriosas sinalefas, incisas nestes talheres.

Um maiúsculo encimado por uma coroa, marca que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 


Mas ao optimismo inicial sucedeu o desespero, os sinaizinhos são minúsculos, desgastados pelo tempo e ao fim de uns quantos dias de trabalho consegui apenas identificar a marca de uma das facas, um p maiúsculo encimado por uma coroa, que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 e num ou outro talher um g maiúsculo, identificador dos ensaiadores de Guimarães. Em todo o caso, já foi suficiente para perceber, que estes talheres foram produzidos no primeiro quartel do século XIX no Porto e em Guimarães.

Como esbarrei na leitura das marcas, a Celina Bastos recomendou-me a leitura das obras de Manuela Alcântara Santos e com efeito, depois de consultar o livro Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX dessa autora e comecei a deslindar aos pouco os segredos destas peças.

Imagem retirada de Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX 


A decoração destes talheres consiste numa uma oval enquadrada por uma série de caneluras incisas, que crescem e decrescem simetricamente, com uma folha a marcar o eixo central do motivo é muito característica dos ourives do Porto e Guimarães. Na primeira cidade foi usada num intervalo entre 1792 e 1810 e na segunda, numa cronologia menos precisa, mas anterior a 1820. Também nesta época, um faqueiro era apenas constituído por facas, colheres e garfos de mesa. As colheres de chá já eram consideradas à parte. Os garfos e as colheres de sopa eram mais pequenos, que os de hoje dia e afinal, o que pensava serem talheres de sobremesa são realmente garfos de mesa e uma colher de sopa. Os faqueiros muito completos e complicados, com colher para compota, colheres de café, sobremesa, espátula para peixe ou bolo, concha para espalhar açúcar em pó, garfos de bolo e sabe Deus que mais, só fizeram a sua aparição já mais nos finais do século XIX.

Imagem retirada de Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos


Ao contrário do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, que contem as marcas desenhadas, as obras de Manuela Alcântara Santos apresentam a vantagem de reproduzir em fotografias muito ampliadas as referidas marcas a partir daí consegui as descodificar as sinalefas dos meus talheres e encontra-las no Inventário de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. Passarei então enumerar as marcas, com os números do inventário dos acima referidos autores

Faca A


Apresenta um g maiúsculo coroado. Marca nº G-17.a do ensaiador em Guimarães, José António Fernandes, ca. 1820-1834.

Iniciais DF, marca nº G.47-A de ourives do Ourives de Guimarães não identificado, conhecida com as marcas de ensaiador F. 17 e G17.a (1820-1834).




Faca B



Apresenta a letra P coroada, que parece ser a marca P. 28.0 ou P. 28.0 do ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz, usada entre 1810-1829.

Iniciais APA, marca P.153, de ourives do Porto atribuível a António Pinto de Almeida citado entre 1783-1865. Conhecidas com as marcas de ensaiador P25, P-28.


Faca C



A marca é sem dúvida um g de maiúsculo, de Guimarães, mas está tão desgastada, que não consigo perceber se tem coroa.

Apresentas as siglas IR., marca G.81.0 de ourives não identificado de Guimarães, associada à marca de ensaiador G.16.0a




A colher e garfos, apresentam tal como a última faca, sigla IR, a marca de ourives G.81.0 não identificado de Guimarães. Contudo, tenho dificuldade em identificar a marca do ensaiador. É certamente, um G, encimado por uma coroa, que tanto poderá ser o G.15 ou G.16, isto é, do ensaiador Manuel Joaquim de Freitas, usada entre1792-1801 ou de José Baptista dos Reis, em uso entre 1801-1820.




Em suma, os três garfos, a colher e uma das facas terão saído da mesma oficina de ourives em Guimarães e autenticadas pelo mesmo ensaiador, a segunda faca de um ourives e de um ensaiador diferentes, embora também nessa cidade e finalmente, a última foi feita no Porto. Aliás, olhando para uma fotografia das três facas, percebemos que são ligeiramente diferentes, a da marca IR tem a oval rodeada por um único filete, a da marca DF, três filetes e a da marca do Porto, de António Pinto de Almeida, apresenta apenas dois e não tem a folhinha.

As três facas são diferentes entre si, quer nas lâminas, quer nos filetes que decoram o motivo oval 


Estas diferenças todas no mesmo conjunto têm a ver com razões muito práticas. A prata era cara e as famílias não compravam os talheres de uma única vez, num ano adquiriam um conjunto de seis de cada, passados cinco ou seis anos, a família crescia e encomendavam-se mais uns quantos, depois haveria sempre um ou outro talher roubado, que era preciso substituir e pelo meio da história, morria alguém e faziam-se partilhas e era necessário comprar mais. Por outro lado, neste início do século XIX, nas vilas e cidades do interior, os talheres eram vendidos nas feiras, frequentadas pelos ourives de Guimarães ou do Porto e desde que fossem iguais, numa vez comprava-se os talheres ao feirante vimaranense e noutra ocasião ao ourives da Invicta.

Em suma, estes talheres foram fabricados em Guimarães e um deles no Porto, no primeiro quartel do século XIX e serão a sobras de um conjunto maior, que em tempos, brilhou na mesa de alguma família fidalga ou da burguesia abastada. Em minha casa, dei-lhes uma nova vida, colocando-os a uso e sobretudo obrigaram-me a estudar um pouco as pratas portuguesas.




Bibliografia:

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018


Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX / Manuela de Alcântara Santos ; apresent. Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. - 1a ed. - Porto : Universidade Católica Editora, 2012.


Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos. - Porto : Campo das Letras, 2007


Ourivesaria portuguesa: breves apontamentos históricos sobre os ofícios, marcas e matérias relacionadas, essencialmente até à criação das contrastarias (1882) / Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. 

7 comentários:

  1. Luís,
    Parabéns por este seu post que resultou muito bem. Revela a atenção e cuidado que colocou nas peças de um património herdado. Mostra o seu interesse em querer saber mais e associar esses conhecimentos ao encanto e ternura que tem pelas peças de ourivesaria que passaram de geração em geração e que contam histórias e memórias interessantíssimas.

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    1. Zé Carneiro.
      Estes talheres serviram de impulso para começar a aprender alguma coisa sobre pratas portuguesas e a obra de Manuela de Alcântara Santos, ensinou-me muito sobre a forma como as famílias os adquiriam e usavam. Confesso que fiquei fascinado e passei a olhar o assunto com muito mais interesse. E como o Zé bem referiu, estes talheres contam várias histórias.
      Um grande abraço

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  2. Grande investigação esta.
    Partir de um universo de que se sabe muito pouco até encontrar esta informação exige uma boa investigação.
    Estás de parabéns, pois não há assim tanta informação disponível.
    Boas continuações nas pesquisas.
    Como eu não tenho quase nenhuma prata antiga, não vale sequer a pena em utilizar esta informação que tu, aqui, tão generosamente colocaste.
    Manel

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    1. Manel

      Andei quase um mês de volta deste assunto, a esbarrar em dificuldades. Se já domino bem a lógica das marcas da cerâmica e sei logo onde procurar para identificar um biscuit ou uma faiança, as pratas são um mundo à parte, com as suas marcas minúsculas de ensaiador e de ourives e cuja leitura é diabólica. Por alguma razão, é que há gente que se especializa em ourivesaria.

      Tenho poucas pratas e como referi não são antigas. Creio que desta época tenho mais uma colher de chá e uma concha de açúcar, que um dia servirão de assunto para um post novo.

      Em todo o caso, adquiri algum conhecimento, que mais tarde me poderá vir a ser útil.

      Um abraço

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  3. Fantástico, Luís. Conseguiste captar a atenção e interesse para um tema que, em princípio, não despertaria curiosidade. Tens essa arte!

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    1. Caro(a) anónimo(a)

      Evito sempre usar uma linguagem académica e vou contando as estas minhas experiências com as velharias da minha casa de forma despretensiosa, descobrindo ou identificando os objectos do passado, que é um desafio sempre interessante. Depois acabo por tentar entender a época, em que foram produzidos, a sua utilização e o seu valor social.

      Hoje, os jovens noivos já não pedem aos convidados da boda, que comprem as várias peças de um faqueiro de prata. As refeições são mais simples, já não há criadagem e estes talheres não podem ir à maquina de lavar loiça, sobretudo as facas, que se soltam dos cabos, de modo que o seu uso foi caindo. Além de que hoje em dia, as pessoas gostam é de design contemporâneo e talheres neoclássicos ou D. João V não lhes dizem nada.

      Um abraço

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