sábado, 18 de fevereiro de 2023

Uma insólita figura em biscuit


Comprei esta figurinha de biscuit por tuta-e-meia. Tem o bracinho partido e por isso foi tão barata. Tudo que está incompleto ou partido tem sempre fraco ou nenhum valor comercial. Mas, mal a vi na banca do vendedor, identifiquei-a logo como sendo uma produção da Schafer & Vater, essa fábrica alemã, fundada em 1890 e que se especializou na produção de insólitas figuras em biscuit, muitas delas caricaturas de figuras da época ou mesmo serviços de loiça, também com as mesmas características. Já aqui apresentei um serviço de chá desta fábrica alemã, que representa as sufragistas, essas mulheres, que tanto deram que falar na Inglaterra pelas suas proezas e protestos e cuja fama correu o mundo inteiro, nos finais do século XIX e inícios do XX.


Esta figurinha apresenta uma boca desmesuradamente aberta e a cabeça toda perfurada. Normalmente, aqui em Portugal estes objectos são tomados por paliteiros. Mas o paliteiro é um utensílio muito português. Na verdade, esta estranha figura é uma fosforeira e simultaneamente um cinzeiro. Espetavam-se os fósforos nas cavidades das cabeça e a boca servia para segurar o cigarro ou sacudir uma cinza. Claro, o boneco tinha também uma função decorativa e os seus donos teriam um especial prazer em espetar um cigarro numa figura qualquer pública ou num tipo popular antipático.


As figurinhas Schafer & Vater foram muito populares nos EUA e Inglaterra algumas delas foram mesmo produzidas especialmente para esses mercados, apresentando legendas em inglês, identificando as figuras ou situações postas a ridículo.



A figurinha não está marcada, apresenta apenas o número de série do modelo, 957 e no tardoz alguém escreveu a lápis, qualquer coisa que não consigo ler. Talvez Frauda, Franda, ou Fianda, seguido de uma data, 1917 ou 1927. Será uma marca de posse, uma informação relativa ao preço? Enfim, aceito sugestões.



Em termos de datação, é um pouco complicado. Fundada em 1890 em Volkstedt-Rudolstadt, a Schafer & Vater esteve particularmente activa durante as décadas de 10 e 20 do século XX, depois entrou em decadência. Após segunda guerra mundial, a Turíngia ficou do lado da Alemanha comunista e Schafer & Vater deixou de exportar para o Ocidente e fechou as definitivamente as portas em 1962. No portal de antiquários americano Ruby Lane encontrei umas destas figurinhas, datada de mais ou menos 1910 e creio que a data deste meu boneco deve andar por aí.

Figura à venda no Ruby Lane



Bem sei que esta uma fosforeira / cinzeiro é peça um bocadinho insólita, está partida e não tem valor comercial. Mas eu adoro estes biscuits alemães do princípio do século XX.



Algumas ligações consultadas:


Schafer & Vater Porcelain / by Peter P. Spirit
http://stein-collectors.org/Members/private/PrositArticles/201303Prosit/Schafer%20and%20Vater%20Porcelain%20--%20by%20Peter%20P%20Spirito%20(Prosit%20Mar%202013).pdf


https://www.iconicedinburgh.co.uk/products/copy-of-antique-porcelain-smoking-head-ashtray-by-schafer-vater-by-the-light-of-the-silvery-moon


https://www.rubylane.com/item/1836869-Matchx20Holderx2cx20Sickx20Head/Original-Schafer-Vater-Match-Holder-Sick?search=1&t=6fc2b2c0


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Senhor do Jesus do Patrocínio: uma estampa do século XVIII ou as andanças de uma imagem




Comprei já alguns anos este registo, representando o Senhor do Jesus do Patrocínio, na feira dos alfarrabistas da Rua da Anchieta, em Lisboa. É um sítio estupendo para comprar estes santinhos a preços de ocasião, pois poucos parecem dar valor a estas imagens. Vivemos numa sociedade descristianizada e hoje em dia os jovens gostam é de objectos de design dos anos 60 e 70 do século XX e para os mais velhos, estes santos e imagens piedosas despertam-lhe más recordações, dos tempos dos colégios de freiras ou da catequese, em que as criancinhas eram ameaçadas com o inferno ou edificadas com imagens piegas de cristos loiros e de olhos azuis. Eu como já recebi uma educação religiosa deficiente e logo na adolescência me tornei descrente adoro estes registos de santos, sobretudo os do século XVIII, como este, rodeado de uma cercadura preciosamente elaborada.

Este registo já não está no estado original, foi recortado, provavelmente com a intenção de o encaixilhar numa moldura feitos de restos de paninhos ricos, decorada com missangas, bordados a prata e passamanaria. Mas a Senhora que o recortou, deve ter morrido entretanto, sem ter tempo de o emoldurar e assim ficou. Como os dados referentes ao impressor, que normalmente, constavam do rodapé da imagem foram também cortados, abri o site da Sociedade Martins Sarmento, que disponibilizou em linha toda colecção de registos de Santos. Com efeito, com alguns minutos de pesquisa, encontrei uma estampa igual à minha, mas com os dados completos do impressor. Foi gravada, por Debrie, isto é, Guilherme Francisco Lourenço Debrie, um impressor francês, que veio para Portugal em 1731. Deste gravador, também designado por Guillaume François Laurent De Brié, sabe-se muito pouco, embora sua obra seja extensa, na produção de estampas para livros, como também nestes registos de santos. Este Debrie terá morrido em 1755, segundo se diz no terramoto ocorrido nesse ano.

Imagem da Casa de Martins Sarmento. No canto inferior esquerdo, está identificação do gravador, Debrie

Portanto, esta gravura foi concebida entre 1731 e 1755, embora seja possível, de ter continuado a ser reimpressa depois da morte do seu autor.

Contudo, as minhas pesquisas não ficaram por aqui. Como já tenho alguma experiência neste assunto, sei que estas estampas representavam muitas vezes imagens verdadeiras, expostas ao culto numa igreja ou num convento e que estas simples folhinhas em papel era uma forma de as pessoas beneficiarem nas suas casas da protecção de uma qualquer invocação de Maria ou de um Santo ou muitas vezes compravam-nas em cumprimento de um voto.
S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.


Neste momento comecei a trabalhar a legenda da imagem. S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.

Presumi que este Cristo preso a coluna, estivesse ao culto na igreja das Mercês, em Lisboa. Mas a sede desta paróquia só se transferiu para o actual edifício, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, depois da extinção das ordens religiosas, depois de 1834. A velha igreja paroquial situava-se na antiga Rua Formosa (actual Rua de 0 Século), ficou muito arruinada com o terramoto de 1755. Esteve assim instalada dois anos na Ermida da Ascenção de Cristo, na Calçada do Combro. Findas as obras de recuperação, voltou à Rua do Século, até 1835. ano em que passaria para a igreja do Convento de Jesus, onde se encontra até hoje. Enfim, era natural, que esta imagem do senhor Jesus do Patrocínio, que deveria ser objecto de muita devoção, conforme testemunha esta estampa, tivesse sido transportada por todos estes sítios. Contudo, nas descrições e fotografias actuais da igreja das Mercês não encontrei nenhum Jesus do Patrocínio Amarrado à coluna. Talvez a imagem tivesse sido destruída durante o terramoto de 1755.

Fiz mais umas pesquisas e encontrei no arquivo digital do Ministério das Finanças o processo de Arrolamento dos bens culturais da freguesia de Mercês, distrito de Lisboa, Concelho de Lisboa. Deste processo que decorreu entre 1912 e 1924, acerca dos bens do extinto Convento de Jesus, um dos intervenientes foi a Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio. Esta referência mostrou-me que estava no caminho correcto. Existiu um culto ao Senhor Jesus do Patrocínio na freguesia das Mercês em Lisboa, conforme atesta a existência duma irmandade com esse nome. Mas nesse arrolamento de bens não constava nenhuma imagem da referida imagem de Jesus. Recomecei as minhas buscas no google pelo nome da Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio e no arquivo da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna encontrei um registo relativo à Irmandade do Senhor Jesus do Patrocínio, datado entre 1911 e 1913, onde se refere que estava provisoriamente instada na Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, localizada na Rua dos Caetanos, na freguesia de Mercês, no concelho de Lisboa.


Parti então à procura da Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos e o google levou-me a página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, que ocupa aquele templo e depois de vasculhar um pouco a galeria de fotos encontrei a imagem do Senhor Jesus do Patrocínio, que inspirou a minha gravura e que afinal sobreviveu à grande cataclismo de 1755. Na estampa a imagem está invertida como é costume e a coluna está no centro, mas é sem dúvida a escultura, que inspirou o gravador Debrie, antes de 1755.

Senhor do Jesus do Patrocínio na sua actual localização, Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos. Imagem da página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus

Contudo, continuava a achar estranho a imagem não estar na sede da paróquia, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, cuja igreja é tão grande e resolvi explorar a página oficial da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, cuja história está muito bem escrita e fundamentada. E com efeito, encontrei a história desta escultura, que transcrevo resumidamente.

A 10 de Fevereiro de 1856, na Mouraria, (…) o Cabo João Maria de Sousa foi inspirado divinamente de que na Igreja das Mercês existiria uma imagem de Cristo, preso à coluna, e que se lhe deveria criar uma Irmandade e um "Montepio" para assistência aos mais pobres. Decidiu então com dois amigos também miliares procurar a veracidade da existência da referida imagem. Chegados à freguesia das Mercês, procuraram a pessoa mais velha da freguesia, para a questionar acerca disto. Falando com o Juiz eleito da freguesia, este informou-os que se recordava da existência de uma imagem do Senhor preso à coluna, na igreja das Mercês. Contou o referido Juiz que uns galegos moradores na Rua do Carvalho tinham encontrado uma imagem emparedada na sua casa. (…). Terminada a conversa, os três militares dirigiram-se à Igreja das Mercês, mas logo perceberam que não existia qualquer imagem semelhante à que procuravam. Por essa altura, estavam lá uns pedreiros (…). Procurando nas dependências, encontraram numa arrecadação, uma imagem de Cristo preso à coluna, feito em sete bocados.

A antiga Igreja das Mercês


Depois desse achado maravilhoso, formou-se uma Arquiconfraria do Senhor Jesus do Patrocínio em 1856, com sede na antiga igreja das Mercês e cuja importância foi crescendo com o tempo, quer em número de devotos quer em património. Em 1895, a Arquiconfraria iria procurar novo templo escolhendo para isso a igreja do antigo Convento dos Caetanos. Em 1911, o Estado correu com esta irmandade, para erguer o Conservatório e a primeira mudou-se com o Senhor dos Patrocínio e outros bens para Capela dos Fiéis de Deus, na mesma rua e ali ficou até aos dias de hoje. Com o passar dos anos a Arquiconfraria perdeu popularidade e desapareceu e no momento presente Irmandade da Senhora da Ajuda é a detentora do seu vasto espólio.

Em suma, este Senhor Jesus do Patrocínio foi uma imagem de grande devoção no século XVIII na igreja das Mercês, situada na actual Rua do Século e entre 1731 e 1755, alguém encomendou a Guillaume François Laurent De Brié esta estampa, reproduzindo a escultura Em 1755, com o terramoto a escultura deve ter ficado seriamente danificada, arrumada numa arrecadação qualquer e esquecida, até que em 1856 foi redescoberta, restaurada e posta novamente ao culto na mesma igreja. Em 1895, a imagem esteve ao culto no Convento dos Caetanos e em 1911, transitou para Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na mesma rua, onde ainda se encontra hoje.

Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus,

É uma história complicada, mas creio que característica de muitas obras de arte sacra, que com o terramoto, a extinção da ordens religiosas em 1834, a Lei da separação do Estado e da Igreja de 1910, andaram de Herodes para Pilatos. Mas felizmente esta esta imagem sobreviveu a tudo e lá está ela na esquina da Travessa dos Fiéis de Deus com Rua dos Caetanos, à espera que ainda se lembrem de lhe pedir patrocínio…



Ligações consultadas:


https://www.csarmento.uminho.pt/site/s/sms/item/7287#?c=0&m=0&s=0&cv=0&xywh=-432%2C-13%2C1248%2C666


https://purl.pt/102/1/memoria/biografia/memoria_biografia_thumb_56.html


https://purl.sgmf.gov.pt/142190/1/142190_item1/index.html


https://agc.sg.mai.gov.pt/details?id=585672&ht=senhora&detailsType=Description


https://irmandade-de-nossa-senhora-da-ajuda-e-santos-fieis-de-deus.webnode.pt/arquiconfraria-do-senhor-do-patrocinio/


https://aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.com/2011/11/rua-do-seculo-xviii.html?m=1 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Uma xícara antiga da Vista Alegre


Já há muito tempo que apresentei aqui esta chávena e o respectivo pires, que comprei na feira da ladra há cerca doze anos. Embora não apresente nenhuma marca, na altura em que escrevi o texto, estava convencido de que se tratava de uma produção da Vista Alegre de meados do século XIX. A forma gomada, a decoração com florinhas e ao mesmo tempo uma certa simplicidade, pareciam características da Vista Alegre.

Não há qualquer marca no pires ou na chávena

Mas, um dia, recebi em casa uns amigos franceses, que gostam de coisas antigas e quando lhe mostrei o louceiro onde arrumo os açucareiros, os bules, os pratos e as chávenas da Vista Alegre, disseram-me sem margem para duvidas, que esta chávena era francesa, produção de Paris e a dúvida armazenou-se na minha cabeça. Com efeito, o largo filete dourado que corre ao longo da orla das peças corresponde um pouco ao gosto pronunciado pelos dourados da porcelana francesa do século XIX

Posteriormente, jantei em casa de um amigo, que tem coisas antigas e além disso é também um genealogista. Na sala de jantar, tem um prato com o mesmo motivo decorativo pendurado na parede. Virei-o, não apresentava marca, mas o meu amigo Alfredo disse-me que era uma peça herdada e que na família sempre se disse que era Vista Alegre. Foi pena não ter tirado uma fotografia do prato, mas na altura ainda tinha um telemóvel pré-histórico e contentei-me em grava-lo na memória.

Como tenho muita louça da Vista Alegre, ando sempre a rever as publicações, que foram saindo sobre o assunto, na esperança de encontrar sempre uma informação, que me tenha passado desapercebida. Infelizmente, essas obras repetem o conteúdo umas das outras e não tem sido editado nenhum estudo inovador, que compare as produções da Vista Alegre, com as outras fábricas européias, sobretudo com as francesas. Isto pelo menos para o século XIX, que é o período da Vista Alegre que me interessa mais. Também não existe um catálogo sistemático das formas e decorações dessa fábrica de Ílhavo. Ultimamente ando a convencer-me que o melhor livro que saiu sobre esta marca, continua a ser “A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924”. Só é pena ter poucas ilustrações e de fraca qualidade. Mas para 1924, o ano da sua publicação, tudo aquilo era um verdadeiro luxo editorial.


Ao folhear essa obra mais uma vez, encontrei na estampa XVIII a reprodução de um serviço que parece apresentar o mesmo motivo decorativo que a minha xícara. Na página 32, da mesma obra, indica-se, que se trata de um serviço de chá polícromo, do Exmo Sr. Dr. Egas Moniz, Lisboa; e peças iguais do Exmo. Sr. Marques Gomes, Aveiro, 1840-1852 VA a ouro. É certo, que as asas das chávenas deste serviço são diferentes da minha, que se apresenta no chamado formato London shape, mas a Vista Alegre fabricou neste período xícaras com esse formato.



Em suma, a minha chávena e pires parecem ter sido produzidos entre 1840-1852 pela Vista Alegre.

Serviço de café de porcelana de Paris. Foto retirada de https://www.pamono.eu/antique-porcelain-tea-service-paris-set-of-14

Contudo, as minhas dúvidas persistem. Numa simples pesquisa por imagens no Google, num site de vendas on-line francês encontrei um serviço de café de porcelana de Paris com uma decoração quase igual. Mas a porcelana francesa tem sempre um brilho mais vítreo que a portuguesa.

Ambas as chávenas assentam ligeiramente inclinadas para a direita.

Por outro lado, esta xícara tem também uma particularidade. Se a assentarmos no pires fica ligeiramente inclinada para a direita. Eu até tenho que pôr um papelinho dobrado por debaixo para ficar direita no louceiro. No início, achei que era um defeito de fabrico, mas tenho outra chávena, decorada com flores e um passarinho, que tem exactamente a mesma característica de assentar ligeiramente inclinada. E essa está belissimamente pintada e não pode ser um defeito de fabrico. Aliás, é outra peça sobre as quais tenho dúvidas se é Vista Alegre ou porcelana de Paris. Creio que esta inclinação era intencional e terá a ver com qualquer razão ergonómica, talvez para ser mais fácil beber o chá ou para verter os restinhos do chá para a taça de pingos, quando as pessoas se queriam servir de mais.

Enfim, esta minha chávena parece ser da Vista Alegre, executada entre 1840-1852 e creio que demonstra bem as fortes influências da porcelana francesa nas produções da fábrica de Ílhavo.



Bibliografia e ligações consultadas:

A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924