domingo, 12 de fevereiro de 2023

Senhor do Jesus do Patrocínio: uma estampa do século XVIII ou as andanças de uma imagem




Comprei já alguns anos este registo, representando o Senhor do Jesus do Patrocínio, na feira dos alfarrabistas da Rua da Anchieta, em Lisboa. É um sítio estupendo para comprar estes santinhos a preços de ocasião, pois poucos parecem dar valor a estas imagens. Vivemos numa sociedade descristianizada e hoje em dia os jovens gostam é de objectos de design dos anos 60 e 70 do século XX e para os mais velhos, estes santos e imagens piedosas despertam-lhe más recordações, dos tempos dos colégios de freiras ou da catequese, em que as criancinhas eram ameaçadas com o inferno ou edificadas com imagens piegas de cristos loiros e de olhos azuis. Eu como já recebi uma educação religiosa deficiente e logo na adolescência me tornei descrente adoro estes registos de santos, sobretudo os do século XVIII, como este, rodeado de uma cercadura preciosamente elaborada.

Este registo já não está no estado original, foi recortado, provavelmente com a intenção de o encaixilhar numa moldura feitos de restos de paninhos ricos, decorada com missangas, bordados a prata e passamanaria. Mas a Senhora que o recortou, deve ter morrido entretanto, sem ter tempo de o emoldurar e assim ficou. Como os dados referentes ao impressor, que normalmente, constavam do rodapé da imagem foram também cortados, abri o site da Sociedade Martins Sarmento, que disponibilizou em linha toda colecção de registos de Santos. Com efeito, com alguns minutos de pesquisa, encontrei uma estampa igual à minha, mas com os dados completos do impressor. Foi gravada, por Debrie, isto é, Guilherme Francisco Lourenço Debrie, um impressor francês, que veio para Portugal em 1731. Deste gravador, também designado por Guillaume François Laurent De Brié, sabe-se muito pouco, embora sua obra seja extensa, na produção de estampas para livros, como também nestes registos de santos. Este Debrie terá morrido em 1755, segundo se diz no terramoto ocorrido nesse ano.

Imagem da Casa de Martins Sarmento. No canto inferior esquerdo, está identificação do gravador, Debrie

Portanto, esta gravura foi concebida entre 1731 e 1755, embora seja possível, de ter continuado a ser reimpressa depois da morte do seu autor.

Contudo, as minhas pesquisas não ficaram por aqui. Como já tenho alguma experiência neste assunto, sei que estas estampas representavam muitas vezes imagens verdadeiras, expostas ao culto numa igreja ou num convento e que estas simples folhinhas em papel era uma forma de as pessoas beneficiarem nas suas casas da protecção de uma qualquer invocação de Maria ou de um Santo ou muitas vezes compravam-nas em cumprimento de um voto.
S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.


Neste momento comecei a trabalhar a legenda da imagem. S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.

Presumi que este Cristo preso a coluna, estivesse ao culto na igreja das Mercês, em Lisboa. Mas a sede desta paróquia só se transferiu para o actual edifício, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, depois da extinção das ordens religiosas, depois de 1834. A velha igreja paroquial situava-se na antiga Rua Formosa (actual Rua de 0 Século), ficou muito arruinada com o terramoto de 1755. Esteve assim instalada dois anos na Ermida da Ascenção de Cristo, na Calçada do Combro. Findas as obras de recuperação, voltou à Rua do Século, até 1835. ano em que passaria para a igreja do Convento de Jesus, onde se encontra até hoje. Enfim, era natural, que esta imagem do senhor Jesus do Patrocínio, que deveria ser objecto de muita devoção, conforme testemunha esta estampa, tivesse sido transportada por todos estes sítios. Contudo, nas descrições e fotografias actuais da igreja das Mercês não encontrei nenhum Jesus do Patrocínio Amarrado à coluna. Talvez a imagem tivesse sido destruída durante o terramoto de 1755.

Fiz mais umas pesquisas e encontrei no arquivo digital do Ministério das Finanças o processo de Arrolamento dos bens culturais da freguesia de Mercês, distrito de Lisboa, Concelho de Lisboa. Deste processo que decorreu entre 1912 e 1924, acerca dos bens do extinto Convento de Jesus, um dos intervenientes foi a Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio. Esta referência mostrou-me que estava no caminho correcto. Existiu um culto ao Senhor Jesus do Patrocínio na freguesia das Mercês em Lisboa, conforme atesta a existência duma irmandade com esse nome. Mas nesse arrolamento de bens não constava nenhuma imagem da referida imagem de Jesus. Recomecei as minhas buscas no google pelo nome da Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio e no arquivo da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna encontrei um registo relativo à Irmandade do Senhor Jesus do Patrocínio, datado entre 1911 e 1913, onde se refere que estava provisoriamente instada na Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, localizada na Rua dos Caetanos, na freguesia de Mercês, no concelho de Lisboa.


Parti então à procura da Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos e o google levou-me a página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, que ocupa aquele templo e depois de vasculhar um pouco a galeria de fotos encontrei a imagem do Senhor Jesus do Patrocínio, que inspirou a minha gravura e que afinal sobreviveu à grande cataclismo de 1755. Na estampa a imagem está invertida como é costume e a coluna está no centro, mas é sem dúvida a escultura, que inspirou o gravador Debrie, antes de 1755.

Senhor do Jesus do Patrocínio na sua actual localização, Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos. Imagem da página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus

Contudo, continuava a achar estranho a imagem não estar na sede da paróquia, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, cuja igreja é tão grande e resolvi explorar a página oficial da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, cuja história está muito bem escrita e fundamentada. E com efeito, encontrei a história desta escultura, que transcrevo resumidamente.

A 10 de Fevereiro de 1856, na Mouraria, (…) o Cabo João Maria de Sousa foi inspirado divinamente de que na Igreja das Mercês existiria uma imagem de Cristo, preso à coluna, e que se lhe deveria criar uma Irmandade e um "Montepio" para assistência aos mais pobres. Decidiu então com dois amigos também miliares procurar a veracidade da existência da referida imagem. Chegados à freguesia das Mercês, procuraram a pessoa mais velha da freguesia, para a questionar acerca disto. Falando com o Juiz eleito da freguesia, este informou-os que se recordava da existência de uma imagem do Senhor preso à coluna, na igreja das Mercês. Contou o referido Juiz que uns galegos moradores na Rua do Carvalho tinham encontrado uma imagem emparedada na sua casa. (…). Terminada a conversa, os três militares dirigiram-se à Igreja das Mercês, mas logo perceberam que não existia qualquer imagem semelhante à que procuravam. Por essa altura, estavam lá uns pedreiros (…). Procurando nas dependências, encontraram numa arrecadação, uma imagem de Cristo preso à coluna, feito em sete bocados.

A antiga Igreja das Mercês


Depois desse achado maravilhoso, formou-se uma Arquiconfraria do Senhor Jesus do Patrocínio em 1856, com sede na antiga igreja das Mercês e cuja importância foi crescendo com o tempo, quer em número de devotos quer em património. Em 1895, a Arquiconfraria iria procurar novo templo escolhendo para isso a igreja do antigo Convento dos Caetanos. Em 1911, o Estado correu com esta irmandade, para erguer o Conservatório e a primeira mudou-se com o Senhor dos Patrocínio e outros bens para Capela dos Fiéis de Deus, na mesma rua e ali ficou até aos dias de hoje. Com o passar dos anos a Arquiconfraria perdeu popularidade e desapareceu e no momento presente Irmandade da Senhora da Ajuda é a detentora do seu vasto espólio.

Em suma, este Senhor Jesus do Patrocínio foi uma imagem de grande devoção no século XVIII na igreja das Mercês, situada na actual Rua do Século e entre 1731 e 1755, alguém encomendou a Guillaume François Laurent De Brié esta estampa, reproduzindo a escultura Em 1755, com o terramoto a escultura deve ter ficado seriamente danificada, arrumada numa arrecadação qualquer e esquecida, até que em 1856 foi redescoberta, restaurada e posta novamente ao culto na mesma igreja. Em 1895, a imagem esteve ao culto no Convento dos Caetanos e em 1911, transitou para Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na mesma rua, onde ainda se encontra hoje.

Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus,

É uma história complicada, mas creio que característica de muitas obras de arte sacra, que com o terramoto, a extinção da ordens religiosas em 1834, a Lei da separação do Estado e da Igreja de 1910, andaram de Herodes para Pilatos. Mas felizmente esta esta imagem sobreviveu a tudo e lá está ela na esquina da Travessa dos Fiéis de Deus com Rua dos Caetanos, à espera que ainda se lembrem de lhe pedir patrocínio…



Ligações consultadas:


https://www.csarmento.uminho.pt/site/s/sms/item/7287#?c=0&m=0&s=0&cv=0&xywh=-432%2C-13%2C1248%2C666


https://purl.pt/102/1/memoria/biografia/memoria_biografia_thumb_56.html


https://purl.sgmf.gov.pt/142190/1/142190_item1/index.html


https://agc.sg.mai.gov.pt/details?id=585672&ht=senhora&detailsType=Description


https://irmandade-de-nossa-senhora-da-ajuda-e-santos-fieis-de-deus.webnode.pt/arquiconfraria-do-senhor-do-patrocinio/


https://aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.com/2011/11/rua-do-seculo-xviii.html?m=1 

6 comentários:

  1. Mas que história rocambolesca.
    Não fora a tua paciência, destreza e conhecimento, ninguém se daria ao trabalho de fazer este trabalho de investigação, que é digno de um Poirot.
    Nem a mim, tão pouco, me lembraria de fazer este trabalho, pois também não me lembraria que esta imagem desenhada corresponde afinal a uma escultura real, que afinal já existe desde há séculos atrás.
    Muitas vezes penso que estas imagens de pagelas/registos são inventadas ou recreadas a bel prazer do artista, e, tal como esta, e uma outra que possuo, tal não é bem a situação.
    São reais e algumas, como esta, ainda existem.
    Vou ficar com mais atenção, pois esta história é muito interessante, porquanto estabelece uma ponte entre uma antiguidade vetusta e um real quotidiano ainda existente.
    Os parabéns por toda esta história fantástica
    Manel

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    1. Manel

      Estres trabalhos dão-me muito gozo e faço-os com relativa destreza, pois sou bibliotecário arquivista e como as estampas são material impresso, elas fazem parte do meu campo de acção.

      Se alguns destes registos são meros objectos de devoção, outros, para além disso, são retratos de imagens que existiram nesta capela ou naquele convento, representando as esculturas com fidelidade, inclusive os mantos ou até as joias de uma qualquer nossa senhora. Nos últimos tempos tornei-me mais atento a este aspecto e tento sempre realizar a ligação da estampa com a escultura devocional e neste caso, consegui-o fazer com sucesso.

      Um abraço

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    1. Caro(a) Anónimo(a)
      Muito obrigado e ainda bem que gostou!!

      Um abraço

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  3. António.

    O gozo disto tudo é a partir de pequenos fragmentos montar uma história. É como fazer puzzles.

    Um abraço de Lisboa

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  4. Engraçado que os rapazes de hoje em dia procuram o catolicismo mais do que o modernismo, a geração anterior tentou destruir a existência de Deus e os jovens sentem a falta de uma ordem e propósito.

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