quarta-feira, 30 de junho de 2021

No Palácio do Governador, Cidade da Praia, Cabo Verde, 1931


Há pouco tempo redescobri em minha casa esta fotografia dos meus avôs paternos em Cabo Verde, que já teve exposta em minha casa, mas como não gostava da moldura, desencaixilhei-a e arrumei-a numa gaveta. É uma cópia de uma fotografia antiga, que está em casa do meu pai e que mandei reproduzir há cerca de uns 10 anos. Na altura fui cuidadoso e no verso da fotografia transcrevi a caneta, a legenda original da fotografia Cidade da Praia, Cabo Verde, Agosto de 1931

O original desta fotografia estava exposto em casa da minha avó Mimi e recordo-me de a ouvir falar dela. Quando a minha irmã e eu crescemos e atingimos à idade da razão, a minha avó gostava de nos mostrar a casa, os seus tesouros, as suas pratas e os seus móveis e hoje agradeço essas explicações, pois alguns desses objectos estão hoje na minha posse, além de que contribuiu para formar o meu gosto. Outros desses tesouros foram parar a outras pessoas da família, como o anel, com uma enorme pedra preciosa, que a Rainha Maria Pia, um dia ofereceu ao meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, mas ainda assim fiquei com uma imagem precisa deles na memória. De alguma forma, em minha casa reproduzo esse gosto quase eclesiástico pelos damascos vermelhos e móveis de estilo, com que a Mimi decorava a sua casa.


Mas voltando à fotografia, lembro-me de quando a vi, tendo por cenário uma vegetação quase luxuriante ao fundo, comentei com a minha avó, como era possível esta fotografia ter sido tirada em Cabo Verde, sendo aquele arquipélago tão seco. Minha avó Mimi, que era uma mulher um bocadinho dada às snobeiras, explicou-me com orgulho a que fotografia tinha sido tirada no jardim do Palácio do Governador, para onde os dois tinham sido convidados. E de facto, os meus avôs estavam muito elegantes naquele dia. O avô Silvino com um traje claro e um chapéu colonial nas mãos e a Mimi com um vestido de um tecido levezinho, relativamente curto e sem mangas e uns sapatos com uma tira em cima, como era moda na época. Nem sei se o meu avô Silvino viu com bons olhos este vestido tão desafogado. Recordo-me ainda de ouvir contar na família, que um dia rasgou um vestido à minha avô por acha-lo demasiado transparente ou curto ou decotado, já nem me lembro exactamente por qual dos motivos. Não que minha Mimi fosse uma mulher ousada nas suas toilettes, mas gostava de ouvir galanteios masculinos e meu avó Silvino era um homem conservador. Ainda há pouco tempo uma prima minha de Chaves contou-me que o avô Silvino esmurrou um homem em Chaves, por ter proferido galanteios à sua mulher, talvez demasia ousados para a época.

Mas neste dia do mês de Agosto de 1931 os dois parecem muito felizes neste jardim do Palácio do Governador, na cidade da Praia. Tentei reconstituir exactamente onde esta fotografia foi tirada. O Palácio do Governador ainda existe, é o actual Palácio Presidencial de Cabo Verde e parece estar bem conservado, mas claro, não fui capaz de identificar o sítio do jardim.

O Palácio do Governador, na cidade da Praia, Cabo Verde. Imagem retirada de http://culturaciliar.blogspot.com

Os meus avôs partiram para Cabo Verde nos últimos dias de Novembro de 1930, logo depois do seu casamento, conforme noticiou o Jornal de Chaves, a 30 de Novembro desse ano Acompanhado da sua Exma. esposa, partiu na passada terça feira para Lisboa, donde no próximo 1 de Dezembro, segue para Cabo Verde, o nosso amigo Sr. Dr. Silvino da Cunha, que para aquela província foi requisitado pelo respectivo governador.

O meu avô era médico e calculo que para um jovem em início de carreira, uma comissão de serviço numa das colónias ter-lhe-á parecido uma boa oportunidade.

Sei pouco do que passou nesses três anos que estiveram em Cabo Verde. Nesse período, tiveram uma filha, a Maria Emília, que nasceu a 5 de Maio de 1932 e morreu dois dias depois. Lembro-me de a minha avô nos mostrar a chave do caixão, guardada numa caixinha preciosamente forrada com seda pelo meu avô Silvino. Parece que quando regressaram à metrópole, tentaram ainda trasladar o corpo, mas com o clima local já não restava nada, que pudessem transportar.

Em Março de 1933, conforme relata o Jornal de Chaves, do dia 5 desse mês, já estavam de regresso a Chaves. A minha avó estava grávida da segunda filha, a Maria Helena, que viria a nascer nos finais de Abril e imagino, que estaria desejosa de ter a filha na sua terra natal, onde contava com o apoio familiar.

Sei também, que no navio, na viagem de regresso ou de ida, compraram uma colcha indiana, nuns comerciantes que se acercaram num barquito, e que veio a calhar nas partilhas à minha irmã.


No fundo, destes três anos que passaram em Cabo Verde, ficou apenas esta imagem de um momento feliz dos meus avós, com qualquer coisa de nostalgia dos tempos coloniais. Talvez este período das suas vidas tenha sido mais despreocupado, já que o seu casamento, que durou mais de 40 anos não foi exactamente feliz.

sábado, 26 de junho de 2021

Dois meninos e um sapo em biscuit


Os tempos de crise são sempre bons para comprar velharias e na última vez que fui à Feira de Estremoz trouxe de lá esta estatueta em biscuit por um preço bastante em conta.

Representa dois meninos assustados com um sapo e a base da estatueta foi montada num aro de latão doirado muito ao gosto francês. Infelizmente não apresenta nenhuma marca, nem sequer um número de série.


Embora a moda das estatuetas em biscuit tenha começado em França na segunda metade do Século XVIII, nos finais do século XIX e inícios do XX, os alemães dominavam o mercado das figurinhas daquele material. Essas fábricas encontravam-se no Saxe ou Saxónia e produziam milhares dessas figurinhas destinadas a ornamentar as casas burguesas do mundo inteiro e os seus temas são quase sempre os mesmos, cenas galantes ao gosto do século XVIII ou então muitos meninos, uns saem dentro de ovos, outros comem chocolate de um pote, outros ainda estão numa praia e recuam com medo de um caranguejo e finalmente há bebés, que marotos, se distratem a tirar uma meia do pé.

Biscuit E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn à venda na net
 

Neste período, em França, Sèvres continuava a fabricar biscuits, normalmente brancos e os temas eram sempre mais clássicos, inspirados na mitologia greco-romana e claro a qualidade era melhor e os preços bem mais caros, que os alemães, e em vez de latão doirado nas bases usavam bronze.

Um tema como este, dos meninos, que se agarram entre si, com medo do sapo, é de facto muito típico dos fabricantes germânicos, mas como não está marcado foi impossível atribuí-lo a um fabricante específico, apesar de ter vasculhado toda a internet, pesquisando por palavras-chave em francês, inglês e até alemão. Mas há que ter presente, que o que está na internet, representa apenas os produtos à venda on-line no momento. O que se vende em linha não é nenhum levantamento sistemático da produção alemã de biscuit. Por outro lado, não tenho acesso a nenhuma monografia exaustiva sobre biscuits alemães dos finais do século XIX, inícios do século XX.

Ainda assim, encontrei alguns biscuits fabricados pela E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn com um certo ar de família com minha estatueta, isto é, meninos travessos, em que o conjunto é quase inteiramente branco e apresenta apenas algumas pinceladas de cor. Mais a Sul, numa zona que é hoje a actual república checa, a Royal Dux Bohemia também fabricou estatuetas brancas em biscuit, com umas pinceladas de cor aqui e acolá. Mas, a minha peça não está marcada e o máximo e apenas poderei supor que é provavelmente alemã, produzida no início do século XX.


Biscuits E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn à venda na net

Estes biscuits alemães com temas infantis não eram obviamente destinados a crianças, embora certamente elas sonhassem em brincar com eles. Eram peças frágeis, delicadas, expostas numa vitrina, em cima de um piano ou numa cómoda, longe do alcance das mãos dos meninos. Além da função decorativa, estas esculturas cerâmicas tinham igualmente uma função sentimental, pois retratavam como uma câmara fotográfica um momento da infância que os pais gostavam de recordar dos filhos, agora adultos, ou um episódio qualquer da sua própria meninice. 



Lembro-me de quando era um adolescente insuportável de a minha mãe me dizer que sentia saudades de quando eu era criança, sentimento que só hoje compreendo, quando recordo o meu filho, menino, à beira do rio, sem tomar banho, com medo dos peixes, mas ao mesmo tempo fascinado, ou da minha filha, que largava a mãos da bicicleta apavorada, quando pela frente pousavam as pombas do jardim. Estes garotos da escultura trazem-me a memória um episódio da minha própria meninice, ocorrido em Vinhais, quando os meus irmãos e meus primos decidiram apanhar um sapo para trazer para o jardim da casa da família, pois tinham-nos dito, que aqueles animais eram benéficos e comiam os insectos das plantas. Como eu era o benjamim, fui encarregue de o transportar até casa, segurando-o por aquela pele viscosa e ia caminhando pela rua completamente enojado e arrepiado, até ao momento que vi uma cobra, atravessada no passeio. Desatei aos gritos, larguei o sapo, que aproveitou a ocasião para fugir para bem longe dali e eu clamei pelo socorro dos meus irmãos e dos primos. Contudo a dita cobra era um daqueles chouriços em pano, cheios de areia, que se colocam debaixo das portas para impedir, que o vento frio entre pelas casas e obviamente fui alvo da gargalhada geral dos outros miúdos.

Esta figurinha em biscuit parece representar todos esses episódios da infância, da minha, dos meus filhos ou de muitos outros seres humanos, que foram meninos há mais de 80 ou 100 anos. Talvez seja essa uma das razões do seu encanto.