sábado, 26 de junho de 2021

Dois meninos e um sapo em biscuit


Os tempos de crise são sempre bons para comprar velharias e na última vez que fui à Feira de Estremoz trouxe de lá esta estatueta em biscuit por um preço bastante em conta.

Representa dois meninos assustados com um sapo e a base da estatueta foi montada num aro de latão doirado muito ao gosto francês. Infelizmente não apresenta nenhuma marca, nem sequer um número de série.


Embora a moda das estatuetas em biscuit tenha começado em França na segunda metade do Século XVIII, nos finais do século XIX e inícios do XX, os alemães dominavam o mercado das figurinhas daquele material. Essas fábricas encontravam-se no Saxe ou Saxónia e produziam milhares dessas figurinhas destinadas a ornamentar as casas burguesas do mundo inteiro e os seus temas são quase sempre os mesmos, cenas galantes ao gosto do século XVIII ou então muitos meninos, uns saem dentro de ovos, outros comem chocolate de um pote, outros ainda estão numa praia e recuam com medo de um caranguejo e finalmente há bebés, que marotos, se distratem a tirar uma meia do pé.

Biscuit E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn à venda na net
 

Neste período, em França, Sèvres continuava a fabricar biscuits, normalmente brancos e os temas eram sempre mais clássicos, inspirados na mitologia greco-romana e claro a qualidade era melhor e os preços bem mais caros, que os alemães, e em vez de latão doirado nas bases usavam bronze.

Um tema como este, dos meninos, que se agarram entre si, com medo do sapo, é de facto muito típico dos fabricantes germânicos, mas como não está marcado foi impossível atribuí-lo a um fabricante específico, apesar de ter vasculhado toda a internet, pesquisando por palavras-chave em francês, inglês e até alemão. Mas há que ter presente, que o que está na internet, representa apenas os produtos à venda on-line no momento. O que se vende em linha não é nenhum levantamento sistemático da produção alemã de biscuit. Por outro lado, não tenho acesso a nenhuma monografia exaustiva sobre biscuits alemães dos finais do século XIX, inícios do século XX.

Ainda assim, encontrei alguns biscuits fabricados pela E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn com um certo ar de família com minha estatueta, isto é, meninos travessos, em que o conjunto é quase inteiramente branco e apresenta apenas algumas pinceladas de cor. Mais a Sul, numa zona que é hoje a actual república checa, a Royal Dux Bohemia também fabricou estatuetas brancas em biscuit, com umas pinceladas de cor aqui e acolá. Mas, a minha peça não está marcada e o máximo e apenas poderei supor que é provavelmente alemã, produzida no início do século XX.


Biscuits E. & A. Müller, Schwarza-Saalbahn à venda na net

Estes biscuits alemães com temas infantis não eram obviamente destinados a crianças, embora certamente elas sonhassem em brincar com eles. Eram peças frágeis, delicadas, expostas numa vitrina, em cima de um piano ou numa cómoda, longe do alcance das mãos dos meninos. Além da função decorativa, estas esculturas cerâmicas tinham igualmente uma função sentimental, pois retratavam como uma câmara fotográfica um momento da infância que os pais gostavam de recordar dos filhos, agora adultos, ou um episódio qualquer da sua própria meninice. 



Lembro-me de quando era um adolescente insuportável de a minha mãe me dizer que sentia saudades de quando eu era criança, sentimento que só hoje compreendo, quando recordo o meu filho, menino, à beira do rio, sem tomar banho, com medo dos peixes, mas ao mesmo tempo fascinado, ou da minha filha, que largava a mãos da bicicleta apavorada, quando pela frente pousavam as pombas do jardim. Estes garotos da escultura trazem-me a memória um episódio da minha própria meninice, ocorrido em Vinhais, quando os meus irmãos e meus primos decidiram apanhar um sapo para trazer para o jardim da casa da família, pois tinham-nos dito, que aqueles animais eram benéficos e comiam os insectos das plantas. Como eu era o benjamim, fui encarregue de o transportar até casa, segurando-o por aquela pele viscosa e ia caminhando pela rua completamente enojado e arrepiado, até ao momento que vi uma cobra, atravessada no passeio. Desatei aos gritos, larguei o sapo, que aproveitou a ocasião para fugir para bem longe dali e eu clamei pelo socorro dos meus irmãos e dos primos. Contudo a dita cobra era um daqueles chouriços em pano, cheios de areia, que se colocam debaixo das portas para impedir, que o vento frio entre pelas casas e obviamente fui alvo da gargalhada geral dos outros miúdos.

Esta figurinha em biscuit parece representar todos esses episódios da infância, da minha, dos meus filhos ou de muitos outros seres humanos, que foram meninos há mais de 80 ou 100 anos. Talvez seja essa uma das razões do seu encanto.




11 comentários:

  1. Caro Luis, que ternura o relato da sua meninice con um sapo e uma cobra atravessada no passeio!.

    La narrativa que usted hace es tan simpática como la figurita en "biscuit" de los dos niños agarrados reculando frente al sapo, hasta el punto de que poco importa el origen de esa pieza, que en efecto tiene gracia suficiente para emocionar a cualquiera que un dia también fue niño y tuvo sus aventuras infantiles.

    Muito obrigado por su blog, de lectura siempre placentera.

    Daniel, desde Madrid.

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    1. Daniel

      Os objectos são tão importantes pelo seu valor artístico como afectivo. Não que este bibelot seja propriamente uma obra de arte, apesar de muito bem executado. Mas sem dúvida, o que talvez seja mais interessante é o episódio que parece contar, um momento qualquer da infância, que ficou lá bem para trás, mas que por qualquer razão estranha, de repente nos ocorre e nos comove.

      Um abraço lisboeta

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    1. Cara Louca por Porcelana

      Muito obrigado pelo seu comentário. Esta estatueta é de facto uma delícia.

      Um abraço

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    1. Caro António.

      Obrigado. Estes meninos remete-nos para momentos da infância, perdidos no tempo.

      Um abraço de Lisboa

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  4. A peça é bonita.
    Já te disse que o mesmo vendedor tinha outra peça que seria quase de certeza da mesma fábrica, pois era em tudo semelhante a esta que adquiriste. Faltava-lhe o aspeto caricato do sapo que quase faz saltar os pequenotes.
    Esta que o senhor vendia era mais séria, e estaria mais virada para o tema da "paternidade", no entanto continuava a verificar-se a pintura em tonalidades muito suaves, quase a fundir-se com o branco do biscuit. A base em metal, essa era exatamente igual a esta tua, por isso penso que deverão ter vindo da mesma fábrica.
    São peças muito bonitas estas, mas, sem identificação, poderão ser de qualquer sítio.
    Já conseguir identificar que poderão ser de produção alemã, já é um privilégio, quanto à fábrica ... uma agulha num palheiro.
    Manel

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    1. Manel

      Que pena ter deixado escapar essa peça.

      Nesta época, finais do XIX, inícios do XX, os alemães fabricavam biscuits de muito boa qualidade e só nesta zona do Save existiam imensas fábricas que se dedicam a e estas estatuetas. Ma maioria não estão marcados. Creio que estes fabricantes tentariam sempre que os seus produtos, passassem por peças saídas de fábricas com mais prestígio. Por outro lado, parece que os bombardeamentos da cidade de Dresda na segunda guerra mundial destruíram fábrica e arquivos destas fábricas.

      Um abraço

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  5. Gosto muito destas estatuetas e gostei da história do sapo :-) Bom dia!

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    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário. Estas figuras destes meninos sempre parecem contar uma história.

      Um abraço

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