quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma vela que se apaga

Descobri esta fotografia da minha mãe em casa da minha irmã, datada de 1950. Teria ela 27 anos. Era bonita. Tinha um tipo muito claro, que ela e os irmãos herdaram da mãe. Ninguém sabe onde foram buscar este ar já do Norte da Europa. Por outro lado, há uma certa tradição não confirmada de que a família descende de judeus. Depois de 1492, os Judeus formaram comunidades muito grandes nas terras de fronteira portuguesa, fugidos às perseguições de Isabel a Católica. Alguns deles mantiveram o judaísmo em segredo até muito tarde. Em meados do Século XX, alguns descendentes destes hebreus, tentaram retomar em Bragança o culto judaico organizado, mas não tiveram grande êxito.

Em todo o caso é quase impossível descobrir antepassados judeus, mesmo que os houvesse. As fontes para as genealogias familiares são os registos paroquiais de baptismo, casamento e morte e esses livros eram mantidos pela Igreja Católica e como tal nenhum Cristão-novo iria assumir a sua verdadeira fé nos actos registados pelos padres nesses livros. Mais, estas comunidades de cripto-judeus, do Distrito de Bragança, de onde a minha mãe é natural, viviam num tal medo, que no momento da morte de um dos seus, chamavam um profissional, o abafadeiro, que matava o moribundo, antes que o padre chegasse para dar a extrema-unção. Com efeito, temiam que o moribundo, nos últimos momentos de delírio, entoasse alguma ladainha judaica, que denunciasse toda a comunidade. Quem dá conta desta prática antiga é Miguel Torga nos novos Contos da montanha, se a memória não me atraiçoa.

Uma amiga, a minha mãe ao centro e do lado direito, a sua irmã, Francisca. Tirada em Vinhais

Talvez o ar claro da família da minha mãe seja um apanágio das terras frias de Vinhais e Bragança, onde se sente que o Mediterrâneo está muito longe e onde clima frio do Norte aclara a pele e o cabelo.

Quando a minha mãe chegou a Lisboa, pouco depois desta fotografia, empregou-se como educadora de infância num colégio no Estoril. As pessoas viam-na tão clara e tal elegante, que a julgavam francesa, o que na altura era um elogio muito grande, pois tudo o que se relacionava com a França era tido em grande conta.

Talvez desenterrar estas pequenas memórias e fotografias seja uma forma de aligeirar a imagem presente da minha mãe a apagar-se, com uma luz cada vez mais fraca.

A minha mãe em frente ao edifício da Câmara Municipal de Vinhais

segunda-feira, 28 de março de 2011

Relógio de C. Detouche de Paris ou o estilo Segundo Império

O Manel é um comprador compulsivo de relógios antigos. Talvez por ser engenhocas e meticuloso sinta atracção por estes mecanismos de precisão. E de facto, o nosso amigo ganha uma vida nova quando abre a caixa de um velho relógio e tem a oportunidade de desmontar tudo, voltar a montar, limpar as madeiras e voltar a pô-lo como novo.

O Manel acedeu mostrar aqui no blog um relógio da sua colecção, que pela sua elegância e distinção é um dos meus preferidos.


Está assinado no mostrador, C. Detouche, Fseur. DE S.M. L'EMPEREUR, PARIS. O que quer dizer, que foi construído por Constantin Louis Detouche (1810-1889), em Paris, fornecedor do imperador, que é obviamente Napoleão III, chefe de estado da França, entre 1852-1870.

Na máquina, apresenta outra vez a marca do fabricante, com a licença oficial e a morada. C. DETOUCHE; BREVETÉ S.G.D.G. 228-230 R. St. Martin, Paris

Por baixo um dos prémios que o fabricante deve ter ganho: "Medaille de Bronze, S. Marti et Cie


Este Constantin Louis Detouche, que aos 10 anos já trabalhava como relojoeiro, em 1825 estabeleceu-se na Rua S. Martin em Paris, onde ficou até à sua morte. Ganhou prestígio neste ofício e estabeleceu laços próximos com outros grandes mestres relojeiros do seu tempo como Jacques François Houdin e o genro deste, o famoso Jean Eugène Robert-Houdin (1805-1871), o grande construtor de autómatos.

O nosso Detouche não se limitava a reproduzir o que os seus mestres lhe ensinaram e foi um profissional muito inovador, com Jean Eugène Robert-Houdin executava os autómatos concebidos por ele e os dois juntos desenvolveram um dos primeiros relógios de pulso eléctricos. Aliás Constantin Louis Detouche interessou-se particularmente pela electricidade, uma tecnologia inteiramente nova e apaixonante neste século XIX.


Em termos de datação da peça, O Manel fez um estudo minucioso. Pelo tipo de escape (a roda dentada que se vê), é posterior a 1849/50, período em que Achille Brocot apresentou pela primeira vez esta peça.

Como se refere ao imperador, Napoleão III, terá que ser datado obrigatoriamente entre 1852-1870.Por último, no relógio refere-se uma Medaille de Bronze, S. Marti et Cie. Ora sabendo nós que o Detouche ganhou duas medalhas de Ouro, uma Besançon em 1860 e outra em Londres em 1862. Então o relógio é logicamente anterior a 1860, pois o nosso Detouche não iria omitir os galardões em ouro se os já tivesse ganho na altura. Em suma esta peça foi executada muito seguramente entre 1852-1860

Estes relógios franceses em pedra negra estavam muito na moda na época e destinavam-se a ser colocados em cima duma chaminé de um quarto, juntamente com outros bibelots, normalmente formando um número impar. Por exemplo, um esquema do género, um relógio ao centro, ladeado por dois castiçais e duas jarras. Para os fogões das salas de receber normalmente preferiam-se relógios mais espaventosos que este, com muitos dourados e estatuetas alegóricas.


Vista de um salão segundo Império por Gustave Mureau
Com um tique-taque e umas badaladas muito distintos, este relógio faz parte de um estilo que ficou emblemático em França e naturalmente no resto do mundo, pois no século XIX, Paris ditava as modas. É o chamado estilo Napoleão III ou Segundo Império, que designa de uma forma genérica as modas de decoração de interiores da segunda metade do século XIX.



Apartamentos de Napoleão III

É um período de grande riqueza industrial para a França. A grande burguesia guindou-se para o lugar da antiga aristocracia. Faltava-lhes é certo o gosto refinado desta última, mas tinham imaginação sem limites, prazer em viver e um gosto muito ecléctico. Todos os estilos estavam na moda. Mandavam-se executar mobílias de jantar à moda da Renascença. As cadeiras góticas eram o máximo e a Imperatriz Eugénia de Montijo popularizou por toda a França os móveis Luís XVI, que adorava, em particular as versões mais femininas do Petit Trianon, que encomendas pela própria Maria Antonieta.


O Salão da Imperatriz Eugénia em Saint-Cloud
No entanto, este gosto pelo passado, não era um coleccionismo de antiguidades, que se traduzia na procura de originais de época. As pessoas queriam cópias dos móveis antigos, mas modernizados e muitas vezes na mesma peça misturavam um e outro estilo sem qualquer pejo. Há uma proliferação de móveis de todos os estilos históricos, mas são cópias sem grande respeito, até porque já são feitas segundo processos mais mecanizados.


Indiscret
Os salões Segundo Império caracterizavam-se por serem são opulentos, muítissimo ornamentados, mas ao mesmo tempo confortáveis, onde se sentam as grandes cortesãs, que faziam fortunas incalculáveis, fazendo-se amantes dos soberanos e homens ricos da Europa, que vinham a Paris distrair-se dos seus afazeres. Sempre decorados com muitas franjas e galões, os sofás são capitonnés e por vezes tomam nomes deliciosos como indiscrets, les confidents ou les vous-et-mois.
Interior do Palácio Nacional da Pena
Quem quiser conhecer este estilo sedutor e confortável, poderá encontrar conjuntos inteiros nos Palácios da Pena e da Ajuda. Embora o meu gosto seja mais eclesiástico, não consigo resistir às franjas e aos capitonnés do estilo Segundo Império.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Avec un ciel si gris qu'il faut lui pardonner

Comprei esta velha estampa na Feira-da-ladra. O vendedor esfregou as mãos de contente por se ter visto livre de uma coisa tão suja e estragada por cinco euros e eu voltei todo contente para casa com uma estampa, que embora não apresentasse data, era seguramente do século XVIII.

Agradou-me logo esta Petite vue de Flandres, representado um céu cinzento, tão cinzento qu'il faut lui pardonner, como dizia canção do Brel, escrita acerca do seu país natal, a Flandres, que é tão plano, que só tem catedrais por únicas montanhas.

E de facto não me enganei muito sobre esta minha primeira impressão da Flandres do céu cinzento.

Ao investigar um pouco sobre esta estampa, descobri, que foi gravada a partir da obra de um pintor flamengo, David Teniers, o Jovem, (1610-1690), filho de David Teniers e genro de Jan Bruegel o antigo, dito o de veludo. Além destas influências familiares de peso, a sua obra foi também inspirada por Rubens e Adam Elsheimer.


Era um pintor simples. Um simples casebre e umas árvores em redor de um caminho serviam-lhe perfeitamente para fazer as suas composições, porque o que este artista procurava, eram sobretudo os efeitos da luz. Gostava de representar paisagens campestres ao crepúsculo, ao luar ou em tempo de neve. E as suas melhores obras são precisamente aquelas em que o artista esquece os pormenores pitorescos, como as figuras humanas e apresenta paisagens despojadas, onde só a luz interessa e que transmitem uma ideia de solidão.

Esta estampa foi executada muito mais tarde por Jacques-Philippe Le Bas (1707-1783), impressor gravador parisiense e um dos mais famosos do seu tempo. Tornou-se membro da Academia Real das Artes em 1743 e em 1750 recebeu o título de gravador real e a sua oficina era procurada por aprendizes vindos de toda a Europa.

Gravura sobre as destruições do grande sismo de Lisboa por Le Bas
Este senhor, Jacques-Philippe Le Bas, executou também gravuras das destruições do terramoto de Lisboa, que se tornaram célebres em toda a Europa, especialmente em Portugal. O Museu da Cidade tem uns quantos exemplares de estampas deste gravador.


L'Arc-En-Ciel. Seconde Vue De Flandres. Grave d'apres le Tableau Original de Teniers, de meme grandeur Tire du Cabinet du Chevalier de la Roque
D. Teniers pinx. Le Bas Sculp.
A Paris chez Le Bas Graveur du Roy au bas de la rue de la Harpe vis a vis la rue Percee chez un Fayancier. 1740.

Não sei exactamente a data da minha estampa, porque a zona dos dados da impressão está cortada. Só consigo ler o local de impressão, Paris. Mas, descobri no Google, que ela fazia parte de uma colecção de vistas da Flandres, executadas segundo obras de Teniers. Há uma Seconde Vue De Flandres, datada de 1740, que será a sequela da Petite Vue e que me leva a crer que a minha gravura tenha a mesma data

A gravura apresenta também uma espécie de adágio final, acerca das virtudes dos camponeses em comparação com as dos cortesãos.

Deixo-vos com o plat pays qui est le mien, que deve ser a banda sonora recomendada para acompanhar esta gravura.



quarta-feira, 23 de março de 2011

Pequeno bule oferecido por uma amiga que não tem netas

Talvez por não ter netas, ou mais certamente porque tem uma natureza generosa, a irmã do Manel deu à minha filha um conjunto de pequenas loiças, restos de antigos serviços de bonecas. Entre as várias peças, estava este pequeno bule, com uma marca usada pela Vista Alegre entre 1881 e 1921, que me pareceu absolutamente delicioso pelas suas dimensões reduzidas.


Na verdade, é uma versão que penso ser destinada às crianças, de um modelo que a Vista Alegre produziu durante dezenas de anos a fio, todos brancos como este, ou pintados com variadíssimas decorações. É mais uma peça que mostra o conservadorismo da produção da Vista Alegre.


No VII Leilão da Vista Alegre. Lisboa: Estar Editora, 1998 encontrei um bule idêntico a este, mas ainda com a tampa original e que à época se vendia por 10 a 15 contos!!! Enfim, estávamos em pleno período das vacas gordas, cheios de orgulho da Expo 98 e as antiguidades tinham preços inflacionados. Hoje, por cinco euros bem regateados, vendiam a peça. Mas, não é o preço que nos motiva a conservar estas peças, é a graça e o interesse artístico.


Quanto à minha filha, Carminho, retirei-lhe esta peça da caixinha onde guardou as outras louças. Mas quando crescer o bule ficará para ela.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Algumas memória da sala de jantar do Solar de Outeiro Seco a partir dos restos de um serviço de chá

No meio desta crise com que os cidadãos portugueses são injustamente castigados, talvez pareça fútil escrever sobre velharias ou evocar acontecimentos ocorridos há muito. Contudo evocar o passado ou escrever sobre património é defender valores, que os nossos dirigentes desprezam. Escrever sobre o passado ou velharias é a minha modesta forma de resistir à gestão por objectivos, à interoperacionalidade, ao estilo IKEA, ao pensamento estratégico e outras tolices que não tenho espaço nem tempo para enumerar


Por essas razões apresento os restos de um bonito serviço de chá com florinhas românticas e decorações pintadas a ouro, do século XIX, provavelmente datado entre 1852-1869, a julgar pela marca pintada a azul de mufla.


É da Vista Alegre naturalmente e pertence a um período particularmente feliz desta fábrica, caracterizado por decorações com grinaldas deliciosas e um uso contido dos dourados.



É uma herança da minha família paterna, proveniente do solar de Outeiro Seco, onde estaria certamente no móvel renascença da sala de Jantar.

Há um inventário feito pela minha avó Mimi dos bens contidos nos armários dessa sala. Mas, é uma simples enumeração, destinada a fazer as partilhas com os seus irmãos, depois da morte do seu pai. Pouca ou nenhuma informação dá sobre as peças e nem eu consigo identificar entre os 4 serviços de chá arrolados, todos eles com florinhas, qual deles será este, cujas imagens apresento. Percebe-se que já nenhum dos serviços estava completo e às minhas mãos chegaram alguns restos de dois serviços, entre os quais este.

Em suma, o extenso inventário é pouco informativo. Percebemos que houve muitos serviços de chá, café, jantar e de copos, que se foram partindo ao longo de 100 ou 150 anos. Paralelamente, iam-se também comprando novos, mas ficavam as peças dos anteriores e o recheio à época do inventário da minha avó era uma coisa heterogénea de várias épocas e feitios.


As duas janelas da sala de jantar são a segunda e a terceira a contar da esquerda
 Do inventário da minha avó ficamos a saber que existia na sala de jantar um enorme móvel estilo renascença, que era tão grande, que após as partilhas, umas das primas do meu pai tentou leva-lo para sua casa e não consegui de modo nenhum retira-lo de lá. Havia também um aparador, uma cristaleira, uma grande mesa de sala de jantar, onde comiam pelo menos 16 pessoas, muitas cadeiras e ainda mesas de apoio, numa das quais comiam os mais jovens. A mesa era abundante ao tempo dos meus bisavós. Serviam-se sempre dois pratos.

Entre as duas janelas da sala, existia um fogão de sala, mas pouco ou nada foi usado. Na realidade, o solar era sobretudo usado como casa de Verão. O Inverno era passado numa casa que a família Montalvão possuía em Chaves, na Madalena, mesmo junto à ponte romana.

Um dos pormenores curiosos que o meu pai se recorda desta sala, era uma espécie de roda, que serviria talvez para passar comida para o quarto existente ao lado, mas na época do meu pai já estava desactivada. Confesso que já me recordei se ela não serviria para passar os alimentos ao meu tio trisavô, o Miguel Montalvão, que enlouqueceu e vivia isolado no seu quarto, cheio de livros, com uma enorme barba e que se escondia debaixo da cama quando entrava alguma criada. Talvez essa roda servisse para alimentar o pobre louco sem o perturbar, mas não tenho provas. Também é verdade que a sala de jantar é uma divisão recente na história das casas portuguesas. Começou a aparecer no século XVIII e difundiu-se pelas casas mais ricas ao longo do século XIX e por consequência é também possível que a roda seja anterior à existência da sala de jantar. Portanto a função dessa roda permanece um mistério.


A sala de jantar é o número 26 e o quarto servido por uma roda era o número 24

Não há imagens da sala de jantar. Não há uma única fotografia dela, pois antigamente nunca se tiravam instantâneos no interior das casas. Nos anos 60, o meu pai filmou os salões nobres da casa, o museu, a biblioteca e a sala de visitas, mas não se lembrou da sala de jantar. Eu lembro-me vagamente dela, de estar talvez sentado na mesa dos miúdos, mas não me consigo recordar de nenhum pormenor do mobiliário, só talvez de uma sensação geral, que nem consigo descrever. Aliás, penso por vezes que confundo as minhas lembranças com as histórias que ouvi em pequeno do meu pai, acerca daquela sala.

Hoje o chão e o tecto do que foi a sala de jantar do Solar dos Montalvões ruíram e não há qualquer vestígio do gigantesco móvel renascença que por lá existiu. A memória que ficou dela é pouco mais do que estas palavras que aqui escrevi.
O que resta da Sala de Jantar...

quinta-feira, 17 de março de 2011

Alegorias em casas oitocentistas de Sousel e Vidigueira

Prédio em Sousel
Esta pequena comunidade de bloguistas, tomou como desafio andar com olhos nos beirais e no alto dos edifícios a fotografar telhas pintadas, urnas, pinhas e estatuetas e os resultados tem sido muito engraçados. Além de aprendermos a trabalhar com o zoom da máquina, temos descoberto pequenos tesouros.

Pela, minha parte, andei pelo Alentejo, em Sousel e na Vidigueira, onde registei as imagens de mais algumas figuras que enfeitam o alto das casas novecentistas portuguesas

Primeira figura a contar da direita
Em Sousel, descobri no centro da povoação este prédio do Século XIX, que já conheceu melhores dias e que ostenta uma balaustrada em faiança e quatro estatuetas femininas. Segundo o Manuel, quem tem mais olho que eu, estas figuras serão feitas de terracota pintada e não em faiança, ao contrário da balaustrada.

Segunda figura a contar da direita

As duas figuras da direita estão muito danificadas e perderam os atributos e portanto apesar de bonitas, são impossíveis de se identificar, a não ser que em Sousel exista algum arquivo de fotografias antigas, onde apareça esta casa, que ao tempo da sua construção, terá espantado os pacóvios, com os seus ares parisienses, importados via Manaus.

Primeira figura a contar do lado esquerdo
A primeira figura do lado esquerdo, é sem dúvida uma alegoria ao comércio, pois ostenta o caduceu, que é o bordão à volta do qual se enrola uma serpente, um chapéu com as asas de Mercúrio e ainda uma bolsa, que representa obviamente o lucro. Estes atributos são os do Deus Mercúrio, mas como no século XIX estavam na moda estas alegorias às actividades económicas, às virtudes, às estações do ano ou aos continentes, usou-se uma figura feminina em vez do próprio Mercúrio ou Hermes

O caduceu poderá ser facilmente confundido com o bordão de Esculápio, símbolo da medicina, mas o pormenor da bolsa foi determinante para classificar esta figura como a uma alegoria ao comércio.

Segunda figura a contar do lado esquerdo

A segunda figura a contar da esquerda é de mais complicada identificação. Quando a fotografei pareceu-me que tinha um saco em forma de cornucópia, um símbolo da abundância e seria por isso uma alegoria à fertilidade, isto é, à agricultura, mas quando andei a trabalhar a fotografia, para a centrar e cortar fios eléctricos (as minhas fotos só são aceitáveis porque as trabalho previamente, pois falta-me o talento da Maria Paula) perdi a certeza que se trata de uma cornucópia. A figura teve na mão ainda outro atributo, que perdeu entretanto, talvez uma foice.

O formoso Deus na Vidigueira

Finalmente deixo-vos com um escultural Deus de um bela casa burguesa do Século XIX, situada na Vidigueira.

A casa burguesa da Vidigueira

quarta-feira, 16 de março de 2011

Peixes

A nossa segunda seguidora misteriosa enviou-me por e-mail mais um conjunto de faiança coimbrã, datada entre o século XVIII e XIX, dedicada a um único tema, os peixes. Por coincidência, ou por qualquer entendimento telepático entre amantes das belas artes, a nossa primeira seguidora misteriosa enviou-me pouco tempo depois outro prato subordinado ao mesmo tema, que remata em beleza esta pequena exposição de faiança de Coimbra dedicada aos peixes.

Os peixes são vulgares em toda a arte do Mediterrâneo. Creta, Grécia e Roma usaram-nos. O Cristianismo tornou-os um símbolo da sua fé. Em Portugal, o Peixe, ou melhor a pesca foi uma fonte de riqueza inesgotável desde o período romano. As costas portuguesas, desde Lisboa ao Algarve, estão cheias de vestígios de cetárias, os tanques onde os romanos produziam o garum, a célebre pasta de peixe, que era destas paragens exportado para todo o império. E por toda a nossa história a pesca permaneceu uma actividade essencial na vida portuguesa. Só agora com a União Europeia, abatemos quase por completo a nossa frota pesqueira. Portanto, é natural que este tema apareça com pujança na loiça portuguesa. Aliás é curioso, que a Maria Andrade há uns tempos apresentou uma travessa inglesa do Século XIX, com cavidades para o molho escorrer, que os britânicos usavam para servir a carne assada. Mais ou mesmo no mesmo período, Miragaia fabricou travessas com formas em tudo semelhantes às travessas inglesas, mas chamadas peixeiras, porque de facto em Portugal comer-se-ia muito mais peixe do que em Inglaterra.

Segundo as próprias palavras da segunda proprietária misteriosa, o primeiro prato apresenta uma borda que me encanta, julgo que como é hábito algum artista coimbrão resolveu fazer uma interpretação pessoal do motivo rendas do século XVII/XVIII. É sem dúvida uma peça de início de XVIII, de carácter sacro em que julgo ter-se tentado explorar também o motivo peixe na sua acepção religiosa!


De facto, o motivo é indubitavelmente de significado religioso. No topo está o Sagrado Coração de Jesus, uma devoção católica iniciada por Santa Margarida Maria Alacoque. Entre 1673 e 1675, Cristo terá aparecido a esta santa e terá prometido a todos os que comungarem nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, a graça na penitência final e o Seu Divino Coração como refúgio na hora da morte.

À volta do coração de Jesus, aparecem os peixes, um símbolo cristão. O peixe, como toda a gente que já viu os filmes Quo Vadis, A Túnica ou Ben-Hur sabe, era um símbolo secreto para os primeiros cristãos se identificarem entre si. A palavra grega para peixe, transcrita em latim, Ichthus, tem cinco letras, que dispostas verticalmente, são as primeiras palavras das frases Jesus Cristo Filho de Deus Salvador, conforme se pode ver no esquema que retirei da wikipedia francesa :

I (I, Iota): ΙΗΣΟΥΣ (Iêsoûs) Jesus;

Χ (KH, Khi): ΧΡΙΣΤΟΣ (Khristòs) Cristo;

Θ (TH, Thêta): ΘΕΟΥ (Theoû) Deus;

Υ (U, Upsilon): ΥΙΟΣ (Huiòs) Filho;

Σ (S, Sigma): ΣΩΤΗΡ (Sôtếr) Salvador.


Depois, na continuação directa deste prato, e avançando um século na produção coimbrã, a nossa segunda misteriosa, apresentou-nos um ratinho, com um motivo que eu nunca tinha visto nesta loiça, um peixe, talvez uma garoupa, segundo a Maria Andrade, envolto naquilo que me parecem ser as flores do linho.

Deste prato, passamos para outro exemplar ratinho, também com um motivo central do peixe, um ruivo (segundo a Maria Andrade), mas desta vez propriedade da nossa primeira seguidora.


Finalmente, a segunda seguidora, mostra outro ratinho com um sorridente peixe no meio, que a nossa Maria Andrade identificou como um Atum, mas sem certeza


Segundo a classificação apresentada para esta faiança Cerâmica de Coimbra: do Século XVI – XX / de Alexandre Nobre Pais, João Coroado, António Pacheco. Lisboa: Edições Inapa, 2007, estes pratos pertencem ao tipo zoomórfico e pelos vistos a um subtipo muito específico, os peixes

O mais curioso disto tudo é que estes peixes representados nos ratinhos, parecem representações naturalistas de espécies existentes. Infelizmente, não percebo nada de ictiologia e não os consigo identificar, mas os meus leitores e seguidores deram-me já uma ajuda e continuo aberto a mais opiniões.


Por mim, vou ficar a contemplar estes maravilhosos peixes, que parecem ter saltado de algum fresco cretense para a louça ratinha de Coimbra e despeço-me com mais um prato da nosa primeira seguidora com mais um ratinho representando...um pescador.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Jonas e a Baleia: azulejos na Igreja da Misericórdia de Sousel

Em Portugal existe uma rede portuguesa de Museus, da qual fazem parte todos os museus públicos ou privados, que o Ministério da Cultura considerou terem níveis mínimos de qualidade, para merecerem essa designação.

No entanto, em cada aldeia, em cada vila, ou cidade de província existem muitos mais museus do que os dessa rede oficial, tratam-se das igrejas ou capelas, em cujo interior há inevitavelmente colecções estupendas de azulejaria, imaginária religiosa da melhor qualidade, talha, cantarias lavradas, móveis de sacristia em pau santo, cadeiras antigas, para não falar das alfaias, missais, registos e por aí fora.

Por essas razões e embora não seja crente, sempre que vejo uma igreja, entro nela, se estão fechadas vou pedir à velha beata ou à cuidadora a chave e descubro sempre coisas deslumbrantes. Foi o que me aconteceu o fim-de-semana passado, na igreja da Misericórdia de Sousel, no Alentejo, que está muito bem restaurada. Toda a nave principal da igreja está revestida a azulejos historiados, com cenas do Antigo Testamento. Se não fossem os painéis do altar-mor com algumas cenas da vida de Cristo, diríamos que estávamos num templo concebido para os cristãos novos se sentirem em casa. Mas, enfim, muito pouco se pode afirmar com segurança sobre os cristãos-novos, pois o cripto-judaísmo como o próprio nome indica, caracteriza-se pelo segredo, por uma existência dupla que levava os judeus convertidos à força, a não deixar testemunhos de qualquer espécie da religião praticada em segredo ou das suas íntimas convições.

Mas voltando aos azulejos, que são datados da primeira metade do século XVIII, portanto do chamado “ciclo dos grandes mestres”, o que me chamou a mais a atenção, foi o painel com Jonas e a Baleia. Achei-o tão curioso, tão estranho que fui procurar alguma informação sobre este personagem.


Jonas é um dos livros do Antigo Testamento e faz parte da chamada categoria dos Livros Proféticos.

Jonas foi encarregue por Deus de se dirigir à cidade de Niníve, para convidar os seus habitantes a arrependerem-se. Para os menos familiarizados com a história, esta cidade situava-se no Norte da Mesopotâmia, numa zona que está no actual Iraque e segundo a Bíblia os seus habitantes eram uma gente horrível, famosa pela sua crueldade. Jonas teve medo de se tornar uma vítima de gente tão má e resolveu fugir, apanhou um barco perto da actual cidade de Tel-Aviv em direcção à Tarsis (talvez Tartessos, em Espanha).

Tarsis
O navio em que seguia foi apanhado numa terrível tempestade e os marinheiros resolveram jogar à sorte, para descobrir quem era o causador da desgraça. As más sortes designaram Jonas, que fui pura e simplesmente lançado ao mar, que de facto se acalmou. Jonas foi então engolido por um grande peixe durante 3 dias e três noites. 
O navio
A tradição transformou este grande peixe em Baleia, embora hoje se pense que poderia ter sido um, cachalote, que na época abundava no mediterrâneo. Os cachalotes transportam por vezes as suas crias doentes na boca e há um relato de um marinheiro inglês salvo por um destes cetáceos, durante a primeira guerra mundial, ao largo das ilhas Malvinas.


Cachalote ou Baleia, o que é certo é que Jonas se arrependeu da sua covardia e dirigiu-se a Niníve, para convidar os seus habitantes a penitenciarem-se dos seus pecados, ameaçando-os com a destruição da cidade, caso assim não o fizessem.

Para grande espanto de Jonas, os habitantes de Niníve arrependeram-se e Deus não destruiu a cidade. Jonas ficou espantado e irritado com a clemência divina e Deus repreendeu-o.

Este último pormenor, o perdão de Deus, concedido aos que se arrependem, mesmo sendo estrangeiros, destaca o livro de Jonas de todos os outros livros proféticos, que normalmente transportam uma certa mensagem de ódio às nações pagãs. A ideia principal do livro de Jonas é a que o Deus de Israel é afinal um Deus de todas as nações e demonstra quer a dificuldade do povo hebreu em aceitar que Deus possa perdoar aqueles que os perseguiram, quer a necessidade de Israel não voltar as costas às outras nações.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Registo com S. João Nepomuceno ou a vida silênciosa das mulheres


Já aqui falei da minha paixão por registos de santos, sejam eles em forma de simples estampas, ou assim, como este, emoldurados em cartão e decorados com pedaços de tecido, galões e florinhas de papel. Estes objectos de devoção doméstica foram executados por Senhoras, que se encontravam em conventos, recolhimentos e outras casas religiosas ou então, que por lá tinham sido educadas. Foram feitos num tempo em que se acreditava que as mulheres não podiam estar ociosas. Uma senhora séria deveria ter sempre as mãos ocupadas, com um crochet, uma renda, um bordado ou aplicar missangas e passamanes à volta do registo de um santinho da sua devoção.
S. João Nepomuceno
No finais do século XIX, período em que presumivelmente este registo terá sido executado, as manhãs e as tardes das mulheres de condição deveriam ser passadas quase integralmente nestes lavores domésticos, enchendo os baús de pele, com enxovais compostos por colchas, lençóis bordados e naperons, naperons e muito mais naperons. Julgo que um historiador mais sensível às questões humanas e menos preso a formalismos académicos poderia traçar a história da vida feminina no século XIX a partir das toalhas de linho bordadas, das saquinhas de guardanapo com ponto de cruz. Cada uma dessas obras de arte dos lavores domésticos traduz pensamentos, aspirações e um modo de vida fechado nas quatro paredes de uma casa, com muitas orações, terços e leituras de vidas piedosas. Eram também os únicos meios por onde as mulheres poderiam manifestar alguma individualidade e criatividade. Por exemplo, na família da minha mãe, elas distinguiam o ponto uma das outras. A Francisca tinha um ponto mais apertado, a Teresa era mais perfeita, mas a Maria Adelaide era mais criativa.É um mundo feminino que hoje já nos escapa.

Costureiras trabalhando/ Marques de Oliveira. Museu Nacional de Soares dos Reis

Há uns tempos vi um belíssimo filme francês, les Brodeuses, realizado por Eléonore Faucher, que mostra como duas mulheres desenvolvem uma amizade executando um bordado complicado e luxuoso para uma das grandes casas de alta costura de Paris, julgo eu que para o Christian Lacroix. Uma é a mestra e a outra a aprendiz, uma adolescente que está grávida e pretende abortar. Ao mesmo tempo que vemos um maravilhoso bordado nascer como uma teia, as duas vão se tornando silenciosamente amigas e no final, tal com as Parcas de quem escrevemos há pouco, a mais nova decide não retirar a vida ao seu bebé, tendo para isso o apoio da mestra, enlutada pela morte recente de um filho adulto.

É um filme de silêncio, como só os franceses o sabem fazer, mas penso que este mundo feminino do século XIX, passado em volta de toalhas de renda, petit point e malhas, também seria um mundo  interiorizado e silencioso.