quarta-feira, 25 de maio de 2016

Bule de chá da Vista Alegre (1870-1880) e a acumulação de objectos


Por vezes julgo que sou um acumulador, aquelas pessoas com uma doença psicológica, que as leva a acumular coisas em casa, algumas sem qualquer préstimo, a tal ponto, que a certa altura não conseguem circular no corredor, ou começam a dormir na sala, porque o quarto está definitivamente ocupado por roupas velhas, caixas vazias de sapatos ou embalagens já usadas de margarina. Conheci o caso de uma senhora que durante mais de 30 anos acumulou os pneus velhos do seu automóvel no sótão da casa, pensando que talvez um dia lhes pudesse dar bom uso.

Parece que esses acumuladores de objectos, desinteressam-se do presente, por vezes até da higiene da casa e as peças que coleccionam indiscriminadamente servem-lhes para construir uma muralha à sua volta, onde se defendem das agressões do mundo exterior.

Reconheço em mim algumas das características dos acumuladores e as velharias que juntei no meu minúsculo apartamento de uma meia assoalhada criaram um mundo próprio, talvez esteticamente bem conseguido, mas fechado sobre si próprio e sem dúvida pouco prático. 

Todas estas preocupações vêm a propósito de ter comprado mais um bule da Vista Alegre, de cerca de 1870-1880. Realmente não preciso de bules para nada. Terei já pelos menos uns cinco bules antigos em casa, que obviamente não estão a uso. Mas como pude eu resistir a este bule do século XIX, que me puseram na mão por 15 euros?

Na altura, pareceu-me quase pecado não o comprar. É certo que o bico está ligeiramente partido e a tampa não é original. Foi reaproveitada de um bule mais pequeno. Mas que importa tudo isso? 
As duas tampas. A primeira já a tinha em casa há muito. A segunda, embora corresponda à decoração do bule, foi reaproveitada de um bule mais pequeno.

Além de tudo o mais, quando cheguei a casa, lembrei-me que tinha uma tampa de um bule de chá antiga, que veio com umas quantas peças da Vista Alegre, que herdei de família, corri a experimenta-la e serviu na perfeição, embora o motivo decorativo não seja exactamente o mesmo. Aliás, há tantas variantes destes motivos das florinhas, com pequenos toques de dourado, produzidas pela Vista Alegre, na segunda metade do século XIX, que estou cada vez mais convencido que deveria ser uma prática comum na época encomendar serviços de chá, jantar ou café com decorações personalizadas. Pouco ou nada tenho encontrado escrito sobre esse assunto, a não ser para louça brasonada, isto é, encomendas de excepção, mas tenho a intuição que a possibilidade de encomendar serviços personalizados estava ao alcance de uma burguesia desafogada economicamente. 

O bule não apresenta nenhuma marca. Na época, era comum não marcarem todas as peças de um serviço. Presumo que corresponda ao período entre 1870-1880, pois tenho muitas peças marcadas dessa época, com estas decorações de florezinhas salpicadas com dourados e julgo que mais ano, menos ano, a bule deve ter sido fabricado por volta dessa década.
 
 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Journal des demoiselles e o Petit courrier des dames

Estampa extraída de Petit courrier des dames, revista publicada em Paris, entre 1822 e 1868
Para quem aprecia coisas antigas e não dispõe de muito dinheiro, as estampas retiradas das antigas revistas de modas francesas do século XIX são uma belíssima opção, pois compram-se a preços muito razoáveis e são fáceis de encontrar em feiras de velharias e alfarrabistas. Não são obras-primas e ninguém vos vais roubar a casa por causa delas, mas são peças que dão o tal toque de dignidade histórica a um apartamento, como se tivéssemos em casa uma simples colherzinha de café em prata, sobrevivente única, de um faqueiro pertencente à família durante várias gerações e que as várias crises económicas e sucessivas partilhas levaram aos poucos.

Estas duas estampas comprei-as na feira de Estremoz, já emolduradas e por muito preço. Destinam-se a ser oferecidas, uma à minha irmã e outra à minha filha. Creio que são boas prendas para oferecer às senhoras ou jovens raparigas.

As estampas foram retiradas de antigas revistas de moda do séc. XIX, publicações antepassadas da Elle ou da Marie-Claire dos nossos dias. Enfim, nunca poderemos chegar a saber quem desmembrou essas revistas, se os alfarrabistas para venderem as estampas à unidade e fazerem mais dinheiro do que vendendo um número inteiro, ou se no passado, no tempo em que as senhoras de Lisboa, Berlim ou Rio de Janeiro recebiam estas revistas e recortavam as estampas para as levar à modista, que reproduziam os modelos de Paris.
Journal des demoiselles, publicação periódica editada em Paris entre 1833 e 1922
A primeira estampa foi extraída do Petit courrier des dames, uma revista que se publicou em Paris, entre 1822 e 1868, com uma periodicidade semanal, conforme o registo catalográfico da Biblioteca Nacional de França.

Embora não esteja datada, a imagem corresponderá mais ou menos ao chamado II Império (1852-1870), período em que Napoleão III governava a França e que em termos de indumentária se identifica facilmente pelas saias muitíssimo rodadas, que as mulheres envergavam.


A segunda gravura foi recortada da revista Journal des demoiselles, editada em Paris entre 1833 e 1922. Segundo a Biblioteca Nacional de França, O Journal des demoiselles absorveu o Petit courrier des dames em 1868 e passaram a então a constituir um único título a partir dessa data. 
A imperatriz Eugénia de Montijo rodeada pelas suas damas, por Winterhalter. Foto wikipédia

A estampa do Journal des demoiselles está datada, de Janeiro de 1860 e corresponde exactamente ao mesmo período da primeira gravura, o segundo Império, época em que a Imperatriz Eugénia de Montijo, a Princesa Pauline de Metternich e outras elegantes de Paris, ditaram esta moda das saias de amplitude desmesurada, que os caricaturistas não se cansaram de ridicularizar. Estas saias gigantescas eram suportadas por uma estrutura em crinolina, uma saia de baixo engomada e forrada com crina de cavalo. A crinolina não parou de evoluir para acompanhar a loucura das saias cada vez mais rodadas e transformou-se numa estrutura com aros, que dispensava o uso de outras saias para fazer volume e permitia às mulheres carregar com um pouco menos de peso.

A estrutura que servia de base às saias de roda do II Império. Foto Wikipedia
Nos finais da década de 60, por influência do costureiro Worth, a loucura da crinolina atenua-se com a tornure, em que o volume é transferido para a traseira, transformando a roda da saia, numa massa oval, capaz de passar com muito mais facilidade pelas portas e desaparecerá completamente na década de 90 do século XIX, quando a moda das saias travadas se generalizou.

Alguma bibliografia:

A moda: 5000 anos de elegância / Mila Contini. Lisboa: Verbo, [197?]

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Um piano baby da Gebruder Heubach


O vício das velharias é uma coisa terrível e por vezes não é preciso andar nas feiras de velharias ou antiquários, para gastarmos dinheiro e fazer mais compras. Basta estar à frente do computador e abrir um desses sites de venda on-line e pimba, de repente tinha comprado mais um piano baby.
Embora no blog já tenha escrito várias vezes sobre estes bonequinhos, para quem não saiba, volto a explicar que os pianos babies são figurinhas em biscuit, representando um bebé ou um menino, bibelots destinados a colocar em cima dos pianos, o que explica esta designação por que se tornaram conhecidos nos mercados de velharias.

Fabricadas na Alemanha entre finais do século XIX e o início da Iº Guerra Mundial, estas figurinhas eram modeladas e pintadas com uma qualidade excepcional, cheias de pormenores deliciosos, como um menino que tira uma meia do pé, ou de outro que come chocolate do pote e suja-se todo. No fundo, estes bibelots de um gosto burguês são herdeiros da antiga tradição alemã de manufactura de figurinhas de porcelana, de que Meissen é o expoente máximo.
Nas costas, a marca da Gebrüder Heubach. Na base ostenta ainda um número, o 13 
Eu já tinha em casa um destes piano babies”, que pertenceu a uma das minhas bisavós paternas, sobre o qual fiz um dos primeiros posts deste blog, mas apesar da sua qualidade excelente, o bonequinho não está marcado, embora saiba que é alemão e do princípio do século XX. Desta vez consegui comprar um exemplar, mas marcado e nada menos nada mais do que com a marca da célebre Gebrüder Heubach (1843-1938), um fábrica alemã, que se notabilizou pela qualidade das suas figurinhas em biscuit, mas também das bonecas para as meninas brincarem. Quer as bonecas com cabeças em biscuit quer os pianos babies desta fábrica são objecto de um coleccionismo intenso e nos Estados Unidos atingem preços altíssimos e até mesmo em França, onde vi um à venda por 520 Euros!!. O nome Heubach é quase um mito no mercado de velharias A qualidade das suas criações tinha a ver com a existência de uma escola de arte nas cercanias da fábrica, à qual a firma alemã ia buscar escultores e pintores para conceberem e pintarem cabeças de bonecas e figurinhas em biscuit, que depois de prontas revelavam expressões e sentimentos de um realismo e detalhe, que ainda hoje nos espantam. Eram verdadeiros retratos de crianças
Os pormenores são de uma qualidade excepcional. Repara-se não só na expressão, como no rigor com é representado o fitilho.
Holwein, Krieger, Niemeyer, Wera vonBartels, Zeiller and Zitzmann são os nomes de alguns desses artistas que trabalharam na Heubach e as suas iniciais poderão ser encontradas nalgumas peças. 
 
A Gebrüder Heubach notabilizou-se pelas suas bonecas com "expressão", que hoje são muito procuradas pelos colecionadores. Foto de www.rubylane.com
Claro que nos apartamentos de hoje em dia, minimalistas, pintados de preto e decorados com móveis de linhas direitas, com muito inox à mistura, estes bonequinhos de biscuit não fazem muito sentido. Os pianos babies foram feitos para uma época em que a decoração era pesada e todas as meninas tocavam piano e falavam francês. Aliás, quando olho para este boneco, imagino sempre que durante a lição de piano, uma destas meninas terá suspirado muitas vezes, pensando que lhe apetecia muito mais brincar com este bebé de porcelana do que martelar às escalas. Certamente estaria determinantemente proibitiva de o fazer e como menina obediente que era acatou as ordens e este piano baby sobreviveu até aos nossos dias, apenas com uma falha aqui e ali.