sábado, 20 de janeiro de 2024

De regresso aos arquivos do Norte: procurando uma avó desconhecida




Depois da morte do meu pai, quando recebi o espólio documental da família, comecei a encontrar documentos e fotografias não só referentes à família Montalvão, mas também de ramos laterais, dos Alves e dos Morais, alguns deles datando de meados do século XIX. Numa velha caixa de papelão, daquelas em que antigamente vendiam as camisas de homem, surgiram uns quantos retratos dos Alves, que ainda consegui identificar, mas outros, mais antigos eram um mistério, como um senhor distinto de longas barbas, datado mais ou menos dos anos 70 do século XIX e uma senhora de meia-idade, também mais ou menos da época ou mais tarde, onde uma criança escreveu a lápis, minha querida avozinha. Fiquei intrigado sobre quem era esta querida avozinha e a netinha ou netinho, autores da legenda e decidi que era tempo de fazer um trabalho de sapa sobre os Alves, cruzando fotografias, cartas, ao mesmo tempo que montava uma genealogia através da consulta aos registos paroquiais.



Gente burguesa e abastada, que vivia no bairro da Madalena em Chaves, os Alves ligaram-se à família Montalvão através do casamento de José Maria Ferreira Montalvão com Ana da Conceição Alves em 1903. O meu pai já tinha deixado algumas informações sobre os pais da minha bisavó Aninhas, Francisco Luís Alves e Antónia dos Anjos Morais e como encontrei no espólio o testamento desta última, comecei o levantamento, que passo a descrever.

A Antónia dos anjos Morais nasceu 25 de Abril de 1846, em Chaves, mas os seus pais, avôs e bisavôs eram naturais de aldeias a leste dessa vila, nomeadamente Argemil da Raia, Samaiões, Paradela e Agordela, já no actual Concelho de Valpaços, à excepção de uns bisavôs, os Costa, fregueses de Noval, Soutelo, a oeste de Chaves. Mas para além da sua naturalidade, destes avós e bisavôs da Antónia dos Anos sei apenas os seus nomes e que nasceram, casaram, tiveram filhos e morreram. Os registos paroquiais nesta época fornecem poucos dados sobre as profissões ou estatuto social. Certamente que não foram fidalgos, pois nesses assentos não constam com dois apelidos, nem os nomes das mulheres são antecedidos do título dona. Casavam inevitavelmente com pessoas das aldeias próximas, que certamente conheceriam nas festas e romarias dos padroeiros locais, ou na feira dos Santos em Chaves, para encontrar a noiva ou noivo certos de aldeias um pouco mais distantes

A itálico assinalei as aldeias de onde estas famílias eram provenientes


Só tenho mais informações para os pais da minha trisavó, a Antónia dos Anjos Morais. Era filha de Vicente de Morais, nascido a 1 de Janeiro de 1799, em Samaiões e de Ana Maria da Conceição, de Argemil, nata entre 1806 e 1808. Os dois casaram na aldeia da noiva, com o poético nome de Argemil da Raia, no dia 18 de Agosto 1825. Este casal ter-se-á mudado para a Chaves, em data que eu desconheço, pois a Antónia dos Anjos nasce já nessa vila em 1846 e teriam um estabelecimento comercial no Bairro da Madalena, em Chaves. No espólio, tenho duas cartas, de 2 e 26 de Maio 1850 dirigidas a Vicente de Morais, por um tal António Xavier Lourenço da Costa, da cidade de Braga, acerca de uma encomenda de vários tipos de corda, ferro de escória e aço. 




 Carta de António Xavier Lourenço da Costa, da cidade de Braga a Vicente de Morais


Este meu tetravô, Vicente de Morais, morreu pouco tempo depois, a 4 de Março de 1851, em Chaves e no registo de óbito, consta como negociante de mercearia, morador no bairro da Madalena. A sua mulher, a Ana Maria da Conceição, continuou o negócio do marido. Três cartas de 1875, respectivamente de 19 de Março, 5 e 20 de Abril, escritas por Pedro Chasse, da Régua a esta minha antepassada tratam da remessa e transporte de umas dezenas de caixas de sabão da fábrica Roriz. Estas cartas de natureza comercial, encomendando produtos fora da região, fazem-me supor que o estabelecimento comercial destes meus tetravôs teria uma certa importância e que seriam alfabetizados. Inclusive a primeira missiva de António Xavier Lourenço da Costa, a Vicente de Morais, refere recebi a sua carta de 21 do passado.



Carta de Pedro Chasse a Ana Maria da Conceição, minha quarta avó


Este casal teve uma prole numerosa, mas por razões práticas, só me vou fixar numa das últimas filhas, a Antónia dos Anjos Morais, nascida em 1846 e que 1876 casou muito bem com o Francisco Luís Alves, em Chaves. O noivo de 31 anos é identificado no assento de casamento como proprietário, o que na linguagem destes livros quer dizer homem abastado e os padrinhos foram gente de condição, Silvino Alves Nóbrega, proprietário e sua mulher Dona Ana Maria Joaquina Rodrigues Nóbrega. Ambos os nubentes são alfabetizados e assinam o seu nome com uma caligrafia bonita.

Da família do noivo encontrei alguns dados sobre a sua condição social. Os pais já viviam em Chaves, na Madalena, pelo menos desde o seu nascimento em 22.11.1844. O pai, o Luís Alves era natural de France, freguesia de Moreiras e no seu registo de óbito de 2-10-1861, em Chaves é referido como tendo uma loja de pezo. Loja de peso, creio eu, quer dizer hoje em dia, que Luís Alves era grossista. Vendia em grandes quantidades a retalhistas. Aliás, o filho, o Francisco Luís prosseguiu o negócio do pai e no espólio existem 10 cartas datadas entre 1908 e 1919 de clientes de Castro Daire encomendando-lhe grandes quantidades de sementes. A mãe, a Maria Joaquina Alves, falecida em Chaves, em 27-4-1876 era natural de Sangunhedo, freguesia do Eiró, Concelho de Boticas, a leste de Chaves. No seu assento de óbito, foi referida como sendo proprietária e tendo morrido na sua casa na rua da ponte da Madalena. Esta casa ainda a conheceu o meu pai, pois os seus avôs, viviam os meses de Inverno nela e era grande e bonita, mesmo junto ao rio Tâmega, sendo que divisões baixas aproveitam os arcos da ponte romana. A casa já não é da família e infelizmente nunca entrei nela.

O casal Antónia dos Anjos Morais e Francisco Luís Alves viveram com muita abastança. No testamento desta minha antepassada, feito em 1903, refere que no casamento da filha, Ana da Conceição Alves como meu bisavô, o José Maria Ferreira Montalvão, doaram ao dois a quantia de cinco contos de reis em moeda corrente e cem acções do banco de Chaves, pelo que após a sua morte, desejava que os outros dois filhos, a Maria da Conceição e o Luís da Conceição recebessem igual quantia. Mas não fica por aqui. Deixava a uma irmã, a Dona Augusta de Morais, viúva e que pelos vistos estaria em dificuldades financeiras, a quantia de cem reis diários, durante dois anos, que lhe seria entregue em prestações mensais e no caso de que esta legatária tivesse falecido, seria este legado para a sua sobrinha Dona Maria da Glória Morais. Por último, deixa à criada, que se encontrasse ao seu serviço na ocasião do seu decesso, a quantia de dez mil reis.

Excerto do testamento de Antónia dos Anjos Morais


Os cinco contos de réis que receberem cada um dos seus filhos nesta altura era muito dinheiro. Recordo-me que a minha Tia Chica me contar, que no início do século XX o seu sogro ganhou na lotaria um conto de reis e que aquilo era uma fortuna. É também interessante o pormenor do dinheiro dado à criada que a assistisse no momento da morte, pois era um costume antigo na Europa. Na corte de França do século XVIII era também hábito, que um dos validos do Rei, que o assistisse na morte, pudesse levar uma peça de mobília à escolha do quarto do rei.

Quanto ao marido, o meu trisavô, Francisco Luís Alves, manteve o negócio do pai de grossista, mas foi bem mais longe, foi accionista do Banco de Chaves e segundo os escritos do meu pai, exerceu um cargo importante na sua gestão. Nas notícias do casamento da filha Ana da Conceição, em 1903, a imprensa flaviense mencionou-o como capitalista. Desempenhou um papel importante na vida pública de Chaves, sendo vereador na Câmara Municipal entre 1884 e1887 e ainda em 1889 e 1897. Em 1900 faz parte dos cidadãos ligados ao meio industrial para estabelecer as contribuições respeitantes às contas gerais do estado.

A Antónia dos Anjos e o Francisco Luís Alves tiveram quatro filhos, o Luís (1883-1887), que morreu com 6 anos e memória da sua existência apagou-se com o passar das gerações, a Maria da Conceição (1887-1956), a tia Marica que viveu um amor contrariado com um jovem que veio a ser Monsenhor Alves da Cunha, a Ana Conceição (1881-1974) e ainda o Luís da Conceição (1884-1931), estes dois últimos casaram muito bem, a primeira com um fidalgo, o José Maria Ferreira Montalvão, meu bisavô e o segundo com Alice Júlia de Macedo de Andrade Couto, de uma família rica de brasileiros de torna-viagem.

É interessante observar que três destes filhos do casal, foram baptizados com um dos nomes da avó materna, Conceição, que ainda estava viva quando os pequenos nasceram, o que me faz supor que seria uma pessoa estimada. Esta avó, a Ana Maria da Conceição só veio a falecer em 9 de Setembro de 1887 e cheguei a pensar que a querida avozinha do retrato pudesse ser ela e tivesse sido um dos seus netos, talvez instruído pela mãe, a escrever aquela frase a lápis. A fotografia foi feita por um M. Olivenza, de Vila Real, do qual se sabe, que por volta de 1879, já estava no nº18 da rua das Flores, naquela cidade. O retrato será dessa altura ou já da década de 80 do referido século. Nesse período, já a Ana Maria da Conceição andaria nos seus 70 e tal anos e a senhora do retrato parece mais nova. É mais provável que seja a minha trisavô, a Antónia dos Anjos Morais, que nesse período, teria talvez os seus 40 e tais anos e nesse caso a letra do netinho ou netinha seria da minha avó Mimi, nascida em 1907 ou de um dos seus irmãos, nascidos em 1904, 1905 e 1906 e que a conheceram viva, pois só faleceu em 1913. Estas identificações são sempre um bocadinho arriscadas, em todo o caso a Senhora da fotografia apresenta os mesmos traços da tia Marica, a Maria da Conceição (1887-1956), o que realmente me leva crer que seja realmente a Antónia dos anjos Morais.

Antónia dos Anjos Morais?

Maria da Conceição Alves (1887-1956)


Acredito também que o retrato do senhor distinto de barbas, talvez da mesma época ou um bocadinho anterior, seja do Francisco Luís Alves, meu trisavô, do qual só conheço uma fotografia de 1916, já idoso e as pessoas mudam muito ao longo do tempo, mas comparando as duas imagens, encontro a mesma testa, as mesmas entradas no cabelo e um certo ar de boneco de porcelana comum aos seus dois filhos, o Luís da Conceição e Ana da Conceição, minha bisavô. Contudo, como antes referi, posso estar enganado e este cavalheiro poderá ter sido um tio.

Francisco Luís Alves?

Francisco Luís Alves em 1916

Ana Conceição (1881-1974)


Luís da Conceição (1884-1931)


Em suma estes dois retratos serviram como pretexto para tentar reconstituir a história de um dos lados da minha família, gente que até ao início do século XIX, vivia e morria em aldeias nas cercanias de Chaves e a partir de 1840 se instalaram nessa vila e tornaram-se proprietários de estabelecimentos comerciais com alguma importância no bairro da Madalena, como comprova a correspondência de carácter comercial que sobreviveu. Na geração dos meus trisavôs, indubitavelmente enriqueceram e além do comércio, dedicaram-se à finança e desempenham cargos no governo municipal de Chaves. Este texto, demasiado longo, para um blog, permitiu-me arrumar os conhecimentos sobre estes antepassados, mas ficaram ainda algumas perguntas por responder. Nas longas viagens de carro para o Norte, o meu pai contava-nos muitas vezes, que a sua avó, a Ana da Conceição se lembrava de ouvir contar à sua avó, que escondeu ou enterrou as pratas durante as invasões francesas, certamente em 1809, na segunda invasão, quando os franceses entraram por Chaves. Será que essa avó seria a Ana Maria da Conceição, cuja data de nascimento não consegui determinar com segurança? Esse assunto fica para outro post.


A genealogia dos Alves e  Morais


Bibliografia:

História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012

Narciso Alves Correia: a fotografia em Vila Real na década de 1870 / Elísio Amaral Neves. Vila Real: Museu do Som e da Imagem, 2011. – (Cadernos do som e da imagem; 8)

Fontes arquivísticas

Arquivo Distrital de Vila Real, 
Livros de baptismos de Santa Maria Maior, Chaves, 18844, 1846, 1876 (assento 30), 1878
Livros de casamentos e Santa Maria Maior, Chaves, 1876 (assento 30)
Livros de óbito e Santa Maria Maior, Chaves, 1851, 1861 (assento 133), 1876 (assento 37), 1883 (assento 283), 1887 (assento 101)
Livros de baptismos de Samoiões, 1799
Livros de casamentos de Travancas, 1825

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

O falso luxo de um talher



Como já aqui contei, resolvi completar os restos de um faqueiro de prata que herdei da minha avó. Naturalmente, desde logo, coloquei de parte a hipótese de encomendar a um ourives as peças iguais aos talheres da avó Mimi, num pesado estilo D. João V. Ficar-me-ia caríssimo e além de que seria muito mais divertido andar pelas feiras a catar velhos talheres de prata aqui e acolá, tudo a preço de ocasião. O meu objectivo tem sido desde então formar faqueiro com talheres de várias nações, que quando completo, ficará a matar na minha casa cheia de trastes e de velharias.

Umas das compras que fiz nesse sentido foi uma faca num estilo neo-Luís XV, muito ao gosto dos finais do século XIX e inícios do século XX. Apresenta um monograma e em tempos deve ter feito parte de um grande faqueiro, em que um burguês rico e orgulhoso, mandou gravar as iniciais do seu nome. Embora saiba pouco ou nada de prataria, não me pareceu que fosse prata de lei, mas sim aquilo que às vezes no mercado de velharias se chama prata francesa, isto é, um liga de metal com uma percentagem baixa em prata, que a célebre marca francesa Christofle celebrizou com os seus elegantes talheres.




Aliás, fiquei com desde logo com a ideia que seria uma peça francesa, talvez até da Christofle. A lâmina da faca está marcada Muller-Ott Mulhouse, uma célebre casa de cutelaria da Alsácia Lorena e o cabo apresenta duas marcas de punção, que tentei identificar em listas de fabricantes franceses de pratas, casquinhas, alpacas e ligas com percentagens baixas de prata. Em França, nestes finais do século XIX e inícios do século XX, a Lei determinava que os materiais imitando a prata apresentassem o punção do ourives em formato rectangular ou quadrado e que também existisse um número, indicando a gramagem de prata usada em cada conjunto de 12 talheres, neste caso, 18. 


A lâmina da faca está marcada Muller-Ott Mulhouse, uma célebre casa de cutelaria da Alsácia Lorena



O punção do ourives



A gramagem de prata


Enfim, tudo indicava que esta faca fosse francesa, naquilo que os franceses designam por métal argenté. Porém, a marca do ourives propriamente dito, que parecia representar uma balança ou uma âncora não constava de nenhum reportório de marcas francesas. Coloquei até esta questão no http://placedelours.superforum.fr, houve alguns participantes que me deram algumas pistas, mas nada.


Esqueci a questão, limpei a faca, colocando-a logo a uso, mas há uns tempos, lembrei-me que a Alsácia Lorena entre 1870 e 1918 pertenceu à Alemanha e que em Mulhouse, a cidade onde a lâmina foi fabricada, flutuava nos mastros dos edifícios públicos a bandeira do Reich alemão. Como a faca me pareceu precisamente coisa dos finais do século XIX, inícios do XX, talvez o fabricante do cabo em liga de prata fosse alemão e procurei então em Alemanha, num dicionário especializado em marcas, https://www.silvercollection.it e descobri, que a marca do cabo da faca correspondia à da Clarfeld & Springmeyer, da cidade alemã de Hemer. Fundada em 1858, esta empresa foi até à primeira Guerra mundial o segundo maior fabricante alemão de cutelaria e dedicou-se precisamente a produzir materiais a imitar prata ou em ligas com baixa percentagem de prata. 


Marcas da Clarfeld & Springmeyer,


Alguns dos seus talheres, em estilo secessão ou arte nova são até muito apreciados pelos coleccionadores e fazem parte do acervo de museus, mas não exactamente objectos como esta faca, em estilo revivalista Luís XV, pois o gosto contemporâneo não está muito virado para estas coisas arrebicadas.

Um conjunto da Clarfeld  & Springmeyer em estilo Secessão da colecção do British Museum 


Em suma, a lâmina desta faca foi fabricada pela Muller-Ott, de Mulhouse e o cabo pela Clarfeld & Springmeyer, entre os finais do século XIX e os inícios do Século XX, num tempo em que a Alsácia Lorena era alemã. É um objecto feito numa liga com uma baixa gramagem de prata, arrebicado, decididamente fora de moda, mas que faz um vistaço na mesa. Estes talheres aliás foram concebidos para os burgueses abastados sentirem que estavam a jantar com um faqueiro da realeza, de um duque ou príncipe, mas com um preço ao alcance das suas bolsas. Os avanços da tecnologia e a da indústria no século XIX permitiram esse fenômeno, de colocar boas imitações de produtos de luxo no mercado a preços ao alcance de um sector maior da população.




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