quarta-feira, 31 de julho de 2013

Night and day


Ainda estou para saber como consegui encaixar tanto candeeiro numa casa com uma assoalhada e meia, nem sei ao certo o que iluminam eles, mas nunca lhes consegui resistir. Ainda hoje quando vejo aqueles enormes lustres nas casas de velharias, que já ninguém compra, pois poucos terão altura nas salas dos seus apartamentos em Carnaxide ou Benfica, fico sempre nostálgico, a apetecer-me ter mais um tecto para colocar uma daquelas coisas enormes cheias de vidrinhos, latões ou cristais e recriar o foyer do antigo cinema S. Jorge ou a sala Patino no Museu Nacional de Arte Antiga.


Este aplique comprei-o na feira-da-ladra há muitos anos. Ainda foi concebido para ser alimentado a gaz e portanto será datado entre 1844 e 1918, o período em que esse tipo de iluminação foi mais usado em Portugal. 

Em forma de tocha, os globos, já os comprei eu, numa loja de candeeiros, na Rua de S. Domingos, que é ainda uma das melhores casas do género em Lisboa. O segredo foi colocar lâmpadas amarelas e obter assim à noite, uma luz muito especial que enche de mistério as centenas de velharias, que espreitam de todos os pontos da minha casa. As casas antigas são como as velhas Senhoras, não gostam luzes claras e cruas.

domingo, 28 de julho de 2013

Cantão popular do séc. XIX: tentativa de arrumação de tipos decorativos

Uma travessa do Manel

Já há muito que tempo que andava a congeminar apresentar uma tentativa de arrumação dos tipos de cantão popular fabricados no século XIX. Enquanto que para o século XX já sabemos o nome de uns quantos fabricantes deste motivo decorativo, a Lusitânia, em Lisboa ou Coimbra, o Cavaco, em Gaia e as Louças da Pinheira, Faianças Vitória e S. Roque na zona de Aveiro, no século anterior só conhecemos Santo António do Vale da Piedade como fabricante de Cantão popular. Claro, essa fábrica nortenha não deve ter sido a única, a julgar inúmeras variantes que apresento de seguida. Presumimos que outras manufacturas na zona de Gaia e Porto e talvez também em Coimbra se tivessem dedicado igualmente à produção desta decoração, mas não temos a certeza, não temos provas. 

Neste trabalho de classificação, não vou incluir as paisagens com casario, também pintadas a azul e branco. Apenas tratarei as espécies de faiança com uma decoração derivada do Willow Pattern, isto é, o padrão do salgueiro


Tentarei aqui classificar por grupos algumas peças minhas e do Manel e estabelecer tipos e subtipos, designados por números e letras do alfabeto. Esses tipos corresponderão a fabricantes distintos ou talvez a diferentes períodos da vida de uma fábrica ou simplesmente ao pincel de diferentes artistas da mesma casa. Portanto, o que vão ler de seguida não é nenhuma classificação com pretensões a definitiva.

Para esta classificação, podia ter tomado as pastas e os vidrados como critério principal, mas como não sou químico, nem ceramista, usei a decoração para separar o trigo do joio e descobri algumas coisas engraçadas. O original Willow pattern apresenta três árvores, o salgueiro, que deu o nome ao padrão, uma árvore de fruto, cuja qualidade varia consoante a lenda (umas vezes é uma macieira, outras uma pereira e ainda outras vezes uma laranjeira) e por fim uma conífera. Os ceramistas portugueses irão representar no cantão popular o salgueiro ou a árvore de fruto ou o pinheiro. Por vezes, estes artistas anónimos derrapam completamente da representação dos motivos originais e pintam aquilo que me parece ser uma palmeira. 



1 Grupo do Salgueiro

1.A:
A este subgrupo pertencem a salva de aguardente e uma tampa de terrina do Manel e um pequeno prato que me pertence. Das três árvores representadas no willow pattern, o salgueiro, a árvore de fruto e pinheiro, só se representa a primeira. Os corações  que a Maria Isabel vê como típicos de Coimbra, mais não são que a estilização das flores do salgueiro, que estão no original padrão inglês. O topo do palácio do mandarim parece uma maçã cortada ao meio.
Salva de aguardente do Manel

Tampa de Terrina do Manel

Um dos meus pratos
1.B:
Nesta subcategoria inseri uma travessa do Manel, representando, o palácio do mandarim, o salgueiro e a ponte com as figurinhas. Esta travessa apresenta um vidrado muito brilhante e uma cercadura absolutamente invulgar no cantão popular, o que justificou a sua inclusão numa subcategoria à parte.

Travessa do Manel
1.C:
O Palácio do Mandarim parece um prédio pombalino com um andar nobre e tudo e as duas árvores são estilizações do salgueiro. O vidrado e a cercadura são semelhantes ao 1.A

Travessa do Manel

1.D:
A cercadura e o vidrado são iguais aos subgrupos 1.A e 1.C, mas são pintadas três árvores, talvez três salgueiros, e o palácio do mandarim assenta numa escarpa rochosa. Os passarinhos que simbolizam os dois amantes mortos são tratados com grande evidência.
Travessa do Manel

2 Grupo da árvore de fruto

2.A:
Aqui incluo a terrina que apareceu no catálogo do leilão da colecção de faianças António Capucho, Parte III, Abril de 2005, no Palácio do Correio Velho e que está marcada Santo António Vale da Piedade. A árvore retida do original do padrão do salgueiro foi a macieira ou pereira, que foi completamente estilizada.


2.B:
Subgrupo constituído por representações da árvore de fruto muito estilizadas, que quase se assemelham a composições feitas de apóstrofes. As cercaduras são típicas do cantão popular.
Uma das minhas terrinas

Uma travessa do Manel

Outra travessa do Manel

 2.C:
Subgrupo constituído por representações da árvore de fruto também muito estilizadas, mas dos ramos pendem pequenas esferas. Não sei se serão todos do mesmo fabricante. Na terrina, que me pertence o palácio do Mandarim tem um coroamento em forma de metade de uma maça, como o 1.A
Terrina do Luís

Travessa do Luís
3 Grupo da Conífera


3.A:
A conífera é representada quase como um pinheiro nórdico, como neste bule.


 
3.B:

A conífera é pintada como se fosse um paraquedas e o azul do cantão popular ganha cor aqui e acolá.  
Terrina do Manel


3.C

Tal como o anterior, a árvore conífera é pintada com um paraquedas. A disposição dos motivos irá ser usada até à exaustação no século XX. Cercaduras características do cantão popular imitando uma corda.
Prato do Luís

Prato do Luís

Prato do Manel


4 Grupo da Palmeira

Algum pintor, artista ou ceramista mais criativo aborreceu-se com os salgueiros, árvores de frutos e coníferas e muito criativamente resolveu pintar uma palmeira estilizada, como nesta terrina do Manel.
Terrina do Manel


Esta foi a sistematização possível. É natural que regresse a este assunto, criando novos grupos e eliminando outros, à medida que apareceram mais pratos, terrinas ou travessas. Por último, espero, que me perdoem por ter apresentado tantas peças de uma assentada. Temo que tenham ficado a pensar, que este post parece um daqueles estendais da Feira-da-Ladra, em que se vende tudo a um Euro.

domingo, 21 de julho de 2013

Salva de aguardente em cantão popular


O sortudo do meu amigo Manuel conseguiu a proeza de comprar uma peça relativamente rara na Feira de Estremoz, uma salva de aguardente. Esta salva é composta por duas partes, uma taça com furinhos e um suporte oco, que sozinho pode ser confundido com uma jarra ou outro objecto qualquer. Há uns três anos atrás, uma seguidora deste blog, a Maria Isabel, comprou numa feira um destes suportes e apresentou-o e foi a maior das confusões pois ninguém conseguia identificar a peça. Uns opinavam que seria um oveiro, outros, uma jarra e outros ainda, um escarrador. Julgo que só não disseram que se tratava de um OVNI. O mistério só foi resolvido e se descobriu a verdadeira função da peça, quando outra seguidora, a Maria Paula, apresentou o conjunto completo, salva e pé.

Objecto caído hoje em desuso, na salva de aguardente colocavam-se vários copinhos pequenos, próprios para servir este líquido, que eram cheios mesmo até cima. O líquido que transbordava, caia na taça e escorria pelos orifícios para a parte inferior da peça, onde era novamente reaproveitado. Por esta razão a salva de aguardente era feita em duas peças.

De facto até há bem pouco tempo existia o hábito de servir a aguardente ou bagaço em copos muito pequenos e enche-los mesmo até ao topo, ao ponto de escorrerem. Lembro-me bem de, em miúdo, o meu pai me mandar a uma tasca nauseabunda, perto de casa, comprar cigarros e de reparar no tasqueiro a servir os copinhos até transbordarem. Nunca percebi a razão deste hábito.


Quanto ao fabricante desta peça de Cantão popular, muito bem pintada, não vou arriscar nada em definitivo. É sem dúvida uma peça do século XIX e as únicas faianças marcadas que se conhecem deste período são Santo António Vale da Piedade. Mas, houve certamente várias fábricas ao longo do século XIX a fabricar este motivo, pois quem está familiarizado com este motivo decorativo, já viu umas poucas variantes feitas na centúria de oitocentos.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Um canivet do Século XVIII: Santa Cecília

Já tinha mostrado aqui no blog alguns registos de santos com as margens recortadas, imitando delicados bordados, as images pieuses. Normalmente são estampas francesas do século XIX cujo trabalho de recorte e picotagem foi feito mecanicamente. Quando procurei informações para escrever sobre esses registos recortados, li que este trabalho, conhecido por canivet, tinha já uma grande tradição na Europa, muito antes do séc. XIX. Nos séculos XVII e XVIII essas imagens de santinhos eram feitas manualmente, usando um instrumento cortante, uma agulha ou um canivete para fazer o rendilhado ou o picotado. Fiquei intrigado, supondo como seriam bonitas essas estampas religiosas desse período, mas fiquei-me pela imaginação, até à semana passada, quando a nossa amiga Alexandra Roldão me enviou um genuíno canivet feito à mão, datado muito seguramente do século XVIII. Encontrou-o por acaso, no meio das páginas de um missal do Séc. XIX, que um comerciante de velharias lhe ofereceu.

Nunca pensei que fossem tão bonitos e parti à procura de mais informações sobre estes Canivets.

Crucifixus Est. Canivet de origem conventual alemã. http://www.ermannoraio.it/
Os canivets do século XVIII são estampas aguarelas ou pinturas, feitas em pergaminho ou papel e cuja orla é preciosamente recortada, imitando uma renda. Normalmente eram feitos em conventos, por senhoras, cujos nomes permanecem irremediavelmente anónimos. Representam inevitavelmente santinhos ou então a Virgem Maria ou Cristo. Quanto à proveniência, encontrei muitos destes registos nos sites de venda italianos e franceses e ainda numa espécie de museu on-line, descobri uma grande colecção de canivets executados em conventos alemães ou flamengos e todos eles são parecidos entre si. De tal forma, que cheguei a pensar que estas imagens religiosas recortadas poderiam ser estrangeiras e trazidas para cá, como provas de peregrinações efectuadas ao estrangeiro, a Roma por exemplo.

Papel recortado por freiras portuguesas para enfeitar bolos
No entanto, recordava-me de ter lido algures que as monjas portuguesas do século XVIII eram exímias nos trabalhos de recorte de papel. Consultei a obra de Emanuel Ribeiro, Arte do Papel recortado em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933 e a o artigo Arte do Papel de Eugénio Andrea da Cunha e Freitas in Arte Popular em Portugal. Lisboa: Verbo, [s. d.] e confirmei que as freiras portuguesas fizeram trabalhos maravilhosos em papel para decorar os doces conventuais, que são de todos aqueles que realizaram os mais conhecidos, mas também manufacturam verdadeiras rendas em papel para enfeitar castiçais, prateleiras, lanternas e ainda registos de santos.

Trabalho conventual português para decoração de castiçal
 A primeira obra refere que o Museu de Lamego possui um relicário muito curioso, formado por dozes destes registos, cada um deles contendo uma relíquia e o artigo Arte do Papel de Eugénio Andrea da Cunha e Freitas reproduz um santinho muito semelhante ao da Alexandra Roldão e atribuindo a sua manufactura a Estremoz, embora não perceba muito bem em que critério se baseia para tal.

Trabalho de recorte em papel de origem portuguesa reproduzido na obra Arte Popular em Portugal. Lisboa: Verbo, [s. d.]
Em todo o caso fiquei com a ideia que este trabalho de canivet foi vulgar por toda a Europa, ao longo do Século XVIII, nas casas religiosas femininas e que é possível que a Santa Cecília, pertencente à nossa amiga Alexandra seja um trabalho português e muito seguramente dessa época.

Para terminar e a título de curiosidade, em França, o termo canivet ficou de tal forma associado aos registos de santos, que a actividade de coleccionar estas imagens é conhecida por canivetie e um coleccionador de santinhos é designado por canivettiste.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Registo do séc. XVIII com Nossa Senhora do Carmo


Recentemente, entusiasmei-me por um pequeno registo, encaixilhado numa moldura de cobre e comprei-o, apesar de não ter sido tão barato como isso. Mas, estas representações barrocas com anjinhos, tão típicas do século XVIII fazem as minhas delícias. Decididamente, tenho um gosto eclesiástico.


No início, olhei para esta Nossa Senhora no meio de uma nuvem, rodeada de anjos e não consegui identifica-la. Há tantas invocações marianas, muitas delas com anjinhos, que esta poderia ser uma das centenas delas. Aliás, seria interessante fazer um levantamento sistemático das senhoras adoradas por todo o País. Recentemente numa das minhas navegações pela net, descobri no site da Sociedade Martins Sarmento um registo com a Nossa Senhora das Barracas!


Mostra que es may é tradução portuguesa de monstra te esse matrem, o primeiro verso da quarta estrofe do hino medieval, de data e autor discutidos, Ave maris stella, isto é, Salve, estrela do mar. Informação prestada por Jonas da Silveira
No entanto, observando atentamente a imagem, reparei em dois anjos segurando escapulários, o que me fez logo pensar que seria Nossa Senhora do Carmo. Depois na parte inferior do registo, há umas criaturas em atitude de oração, como que pedindo a sua salvação. Serão certamente as alminhas do purgatório à espera de serem resgatadas. Normalmente o culto de Nossa Senhora do Carmo anda sempre associado ao Culto das Alminhas.


Relativamente à proveniência, não sei se esta estampa foi arrancada de um livro. Talvez fosse uma vinheta a ilustrar o início do capítulo de algum livro de orações. Mas, também poderá ter sido uma estampa vendida separadamente, destinada a ser ornamentada com galões, missangas e contas por senhoras devotas ou irmãzinhas piedosas. Quem sabe?


Independentemente do destino para que a estampa foi pensada, é um trabalho bem feito e minucioso, sobretudo se atendermos a que não excede a meia dúzia de centímetros.