sexta-feira, 31 de julho de 2020

Uma jarra arte nova da Volkstedt



Apresento hoje uma jarra que o meu amigo Manel comprou recentemente na Feira de Estremoz. É da conhecida marca alemã, Volksted. Contudo, ao contrário dos outros objectos dessa fábrica alemã já apresentados neste blog, que são neo-barrocos ou neo-rocaille, esta jarra é arte nova, um estilo, que começou pouco antes de 1900 e que rompeu com todos os revivalismos, que dominaram a produção das artes decorativas ao longo de todo o século XIX. Com efeito, até 1900, as chávenas eram neo-clássicas, a ourivesaria neo-barroca, as cadeiras neo-góticas e os relógios neo-renascença. Pouco antes de 1900, os artistas procuram um estilo mais livre, influenciado pelas formas da natureza, com qualquer coisa de novo, que não fosse uma mera repetição dos estilos do passado.



É o caso desta jarra, onde se vai buscar um tema da mitologia clássica, uma Nereida, uns putti, e um golfinho, mas numa composição muito fluida cheia de movimento. A técnica usada foi o que os ingleses chamam o jasperware, um biscuit, em que os elementos humanos ou florais, se destacam da peça através de uma cor diferente, normalmente mais clara que a do fundo, procurando reproduzir o efeito de um camafeu. A forma de representar a Nereida rompe de alguma forma com as convenções do classicismo. Em vez de uma virgem da estatuária greco-romana, esta dama está penteada muito à moda de 1900 e posa de uma forma lânguida sobre uma espécie de concha. Tal como as figuras dos baixos-relevos gregos ou romanos não está propriamente nua. Veste uma túnica num tecido qualquer coleante e transparente, aquilo que os franceses chamam um desabillé, revelando umas formas algo opulentas para o gosto de hoje.

As nereidas costumas ser acompanhas por golfinhos
Com efeito, cerca de 1900 as mulheres queriam-se cheias. Nesses primeiros anos do início do século XX, a modista Coco Chanel ainda não tinha conseguido impor o seu estilo de vestuário, desenhado para mulheres franzinas como ela, nem nos anos 30, a Wallis Simpson tinha dito a célebre frase nunca se é demasiado rica nem demasiado magra.

A marca da Volkstedt
Fabricada por volta de 1900, esta jarra arte nova da Volkstedt acaba por ser um testemunho histórico, de um tempo em que as mulheres não faziam areóbica, musculação, jogging e não sabiam tão pouco o que era iogurte sem lactose  ou pão sem glúten.


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Globe de mariée

 
Hoje apresento-vos a última peça que o meu amigo Manel comprou, um globe de mariée, ou globe à mariage, ou traduzido à letra, um globo de casamento. Basicamente é uma pequena estrutura em madeira e latão, onde se guardavam as recordações do casamento, bem como dos momentos mais importantes da vida de um casal, protegidos do pó por uma campânula de vidro.

Já tinha tomado conhecimento destas peças meramente por acaso, numa pesquisa que há uns anos fiz na internet sobre umas caixinhas francesas em latão e vidro e fiquei maravilhado com estes globos, tão fantásticos, quanto inúteis, mas achei, que correspondiam a um costume francês e que nunca tivesse chegado a Portugal.
 
Os globe de mariée foram muito comuns em França. Imagem retirada de https://www.objetsdhier.com/globe-de-mariee-1391

Porém há uns dois anos vi um destes globos de casamento à venda no Olx, voltei a encontrar outro na Feira de Velharias de Estremoz e ainda um terceiro, também na mesma feira, que convenci o meu amigo Manel a comprar.

Pelos vistos esta moda de encomendar estes globos por ocasião do casamento, que decorreu em França entre 1850 e 1930 acabou por chegar a Portugal. Se pensarmos bem é muito natural que isso tenha acontecido. Entre 1850 e 1930 a França era o grande centro cultural, artístico e económico da Europa e enfim, do mundo inteiro. As pessoas instruídas liam revistas e jornais em francês. Os mais abastados viajavam até Paris, a cidade da luz, iam a banhos a Biarritz, faziam uma cura de águas em Vichy ou peregrinavam até Lourdes e claro, voltariam carregados de roupas, chapéus, perfumes, livros, vinhos e talvez estes globos,para oferecer a um jovem noiva. Na época também já existiam catálogos de venda por correspondência de firmas francesas, que chegavam a Portugal. Lembro-me que o meu bisavô tinha um desses catálogos, publicado um pouco antes da guerra de 1914-1918 por ma casa comercial em St. Etienne, uma cidade muito industrial, perto de Lião. Era um catálogo fabuloso, que nós em miúdos adorávamos ler, pois vendia de tudo, desde armas a automóveis, passando por aquários, bengalas e chapéus. Portanto é bem possível, que alguns desses globos chegassem a Portugal por encomenda.
No globe de mariée apresentavam-se objectos que simbolizavam a vida do casal, como os sapatos usados pela noiva no dia do seu casamento. Imagem retirada de https://www.objetsdhier.com/globe-de-mariee-1391
Seja como for a forma como esta peça entrou em Portugal, os globes de mariée estiveram em voga em França entre 1850 e 1930 e a sua primeira função era guardar a coroa de flores da noiva ou o bouquet. Depois acrescentavam-se pequenas coisas que simbolizavam os momentos da vida casal, fotografias do casamento ou dos filhos, a madeixa do cabelo de uma criança morta demasiado cedo, o sapatinho, que a noiva usou no casamento ou o carnet de baile, onde ficou anotada a primeira dança. Deste conjunto podiam constar também medalhas benzidas ou uma condecoração de guerra.
 
A ornamentação era carregada de simbolismos.
Os globes de mariée apresentam formas variadas, pois correspondiam muitas vezes a uma encomenda personalizada e ao longo do tempo foram sendo adaptados pela família, mas normalmente são constituídos por uma base em madeira, uma estrutura em latão dourado artisticamente trabalhado, espelhinhos e um pequeno coxim em veludo ou seda vermelha. Muitos destes elementos tem um significado simbólico, por exemplo os espelhos serviam para devolver o mau-olhado de volta, as folhas de vinha em latão representavam a fecundidade. Todos eles têm em comum serem protegidos do por uma campânula em vidro muito fininho.

Normalmente os globos de casamento eram colocados em cima da cómoda do quarto do casal, sobre a chaminé da sala de visitas ou noutro ponto qualquer de destaque da casa.
 
O Globe de Mariée do meu amigo Manel foi usado para mostrar uma colecção de antigos alfinetes de chapéu

Quanto a peça do Manel, não apresenta os objectos típicos do Globe de Mariée. Não sabemos se com o tempo alguém se lembrou de retirar todos esses objectos, que recordavam a vida de um casal, morto e esquecido há muito, ou se quem o recebeu como oferta no dia do casamento não lhe deu a utilização devida, pois nem todas as pessoas tem feitio ou vocação, para coleccionar recordações. Na prática, ó último proprietário usou esta peça para mostrar uma colecção de antigos alfinetes de chapéu, que também tem o seu encanto.

Em suma, este globe de mariée terá sido muito provavelmente feito em França na segunda metade do século XIX ou nos primeiros trinta anos do séc. XX, destinado a guardar as pequenas relíquias familiares de um casamento, mas estas desapareceram com o tempo ou nunca lhe foi dada essa função. É um objecto frágil, precioso nos seus detalhes, inútil, mas absolutamente irresistível.
 
 
 

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Desesperadamente procurando…a Imperatriz dos Anjos


Hoje apresento-vos uma fotografia, que acho perfeitamente deliciosa e que se encontra num dos velhos álbuns fotográficos da família Montalvão, que há uns tempos recebi de uma prima minha. Trata-se do retrato de uma senhora e de uma jovem, provavelmente mãe e filha, a julgar pela posse das mãos, cuidadosamente encenada pelo fotógrafo e que se encontra dedicada ao meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão (1878-1965), apesar de se encontrar no álbum o mais antigo formado pelo meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio.
 
 
Da dedicatória, consta o seguinte, Offerece ao Exmo. Dr. Montalvão em testemunho de muita amizade e consideração Imperatriz dos Anjos. Na última linha, há um gatafunho, que eventualmente poderá ser o apelido da Senhora, talvez Vaz, mas a letra não me parece igual ao restante texto.

Não sei quem era a Imperatriz dos Anjos, se a mãe se a rapariguinha, nem tão pouco consegui descobrir nada destas duas personagens, se eram gente de Chaves, ou do Porto, já que o estúdio Fotografia Moderna funcionava naquela última cidade. Mas isso também não quer dizer nada, esta jovem mãe e a sua filha adolescente poderiam ter viajado até ao Porto e aproveitaram a ocasião para se fazer fotografar ou então os artistas da Fotografia Moderna deslocaram-se Chaves, por ocasião das festas do padroeiro ou padroeira, para executar retratos da sociedade local.
 
 

Mas o mais engraçado, talvez seja o contraste entre o nome muito piedoso da senhora que dedica a fotografia, a Imperatriz dos Anjos e a garridice das duas personagens femininas. Poder-se-ia até usar o termo francês coquetterie para adjectiva-las se não houvesse aqui uma certa ingenuidade burguesa de quem vestiu as suas melhores roupinhas, para parecer bem na fotografia. A rapariguinha usa um chapeuzinho enfeitado por fita terminando com um laço artisticamente executado, uns brinquinhos com pérolas, uma espécie de estola em pele e na gola uma estrela, talvez em prata, muito à moda da Imperatriz Sissi.
 
 
A senhora, que eu presumo ser a mãe, também veste a sua melhor blusa com um folho de renda e um alfinete de ouro ou em prata. Para rematar o conjunto, o fotógrafo escolheu como um adereço uma cadeira estilo Segundo Império, com o apoio estofado e enfeitado de borlas. Se pensarmos que uma das retratadas é a Imperatriz dos Anjos, uma das designações de Nossa Senhora então tudo nesta fotografia se torna ainda mais deliciosamente frívolo.
 
 

Quanto à data, a Imperatriz dos Anjos trata o meu bisavô por Doutor. Se o meu bisavô se formou em Direito no ano de 1902 e se a Fotografia Moderna terminou a sua actividade em 1905, este retrato foi certamente tirado entre essas duas datas. Não sei que relação manteve a Imperatriz dos Anjos com o meu bisavô. Talvez tenha querido casar a sua jovem filha com o meu antepassado ou o meu bisavô resolveu-lhe algum imbróglio jurídico relacionado com partilhas ou a venda de uma propriedade e esta fotografia foi uma prova da gratidão da Imperatriz dos Anjos.

Segundo Paulo Artur Ribeiro Baptista na obra a Casa Biel e as suas edições fotográficas no Portugal de Oitocentos, a Fotografia moderna foi um estúdio fotográfico fundado em 1883, no Porto, na Rua da Picaria, nº 1 e que esteve activo até 1905. Por vezes aparece designado por Leopoldo Cirne & C.ª
 
Se aí, do outro lado do monitor se encontrar algum trineto ou bisneto da Imperatriz dos Anjos, muito agradeço que me indique quem foram a senhora e a jovem do retrato. Até lá a Imperatriz dos Anjos permanece um mistério cheio de graça e com o seu je ne sais quoi de frívolo.