Desde há uns tempos para cá tenho publicado as minhas pequenas aventuras para completar o faqueiro de prata da minha avó Mimi, estilo D. João V, que foi dividido pela família. Assim, tenho vindo a juntar peças de várias épocas e estilos, portuguesas na sua maioria, uma outra francesa e até uma alemã e um belo dia darei um jantar para a família, com um faqueiro em prata.
Estes meus textos impressionaram a irmã do Manel, a Manuela, que resolveu oferecer-me um grande conjunto de talheres soltos, uns de prata, outros de alpaca e outros ainda de metal com baixa percentagem de prata, a chamada prata francesa. Alguns em mau estado, outros a precisar apenas de uma limpeza profunda Em todo o caso, isto não foi uma prenda, foi um prendão, se é que o termo existe em português.
O primeiro trabalho foi separar por material, prata, alpaca e metal prateado e depois por serviço e destaquei um conjunto ainda grande de 17 talheres, muito simples e bonitos, que em tempos terão formado um faqueiro, que iria à mesa nos jantares e almoços dos dias de festa. Desse faqueiro, sobraram as colheres de sopa, em número de 7 e as de doce, em número de 10.
As colheres de doce |
Aparentemente é um conjunto coeso, um faqueiro, qualquer coisa que se ofereceu a uma menina família no dia do seu casamento, mas à medida que o ia limpando, fui encontrando marcas de diferentes ourives, cidades e épocas.
As marcas de prata são um assunto complicado de deslindar. Existem as marcas, que atestavam se a prata tinha a percentagem definida por lei, feitas pelos ensaiadores até 1887 e depois dessa data, pelas contrastarias e ainda as marcas dos ourives. Finalmente, para dificultar tudo isto, as marcas são minúsculas e encontram-se desgastadas pelas limpezas sucessivas,
JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado, |
A chamada bicha |
Do conjunto das colheres de doce, nove apresentam marca de um ensaiador de Lisboa, a letra L maiúscula coroada e as iniciais do ourives, JCA. Além disso, apresentam o ziguezague característico, vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal. Tradicionalmente este ziguezague é conhecido pela marca da bicha e o seu uso desapareceu década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias.
Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 |
Segundo o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado, sócio da Associação dos Ourives e Artes Anexas, citado em 1887 e que aparece associado as marcas de ensaiador L-46.0 e L-52.0. A marca do ensaiador destes talheres corresponde à L-46.0, datável entre 1870-1879. Portanto, 9 das colheres de doce terão sido fabricadas entre 1870 e 1879.
Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 |
Mas estas 9 colheres apresentam ainda uma terceira marca, a chamada cabeça de velho. Após as reformas da década de 80 do século XIX, que passaram as competências dos ensaiadores municipais para o governo central, a partir de 1887, foi usada esta marca para certificar as pratas antigas ou pura e simplesmente sem marca
A cabeça do velho |
Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal |
Esta Cabeça de velho apresentada uma forma usada em Lisboa, e creio que foi usada até aos anos 30 do século XX. Talvez por ocasião de umas partilhas, em que se tenha mandado fazer uma avaliação, alguém tenha pedido este contraste.
Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal |
A última colher de doce apresenta a marca de garantia de prata Javali, usada na contrastaria de Lisboa, entre 1887 e 1938 e a marca é do ourives de Lisboa, António José da Costa, registada em 1887 e cancelada em 1925. Portanto a colher terá sido fabricada entre 1887 e 1925 e é posterior ao restante conjunto.
As colheres de sopa mais antigas |
Das 7 colheres de sopa, quatro apresentam a marca de um ensaiador de Lisboa, com a letra L maiúscula, encimada por uma coroa. Parece-me a marca igual ao dos talheres de doce, L-46.0, do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, datável ente mais ou menos 1870-1879.
Marca do ensaiador de Lisboa. Não consegui ler a marca do ourives |
Contudo a marca de ourives é diferente e não a consegui ler. As sucessivas limpezas da prata e as lavagens desgastaram a marca.
Na colher da direita, a mais antiga, cabo foi soldado à concha. As colheres da esquerda, mais recentes, foram feitas numa só peça |
Enquanto estas 4 colheres, apresentam um sistema de fabrico, em que o cabo é soldado à concha, as restantes três colheres foram feitas numa só peça e são mais recentes também. O contraste é o javali, marca de garantia da contrastaria do Porto, usada entre 1887 e 1938 e o ourives foi Joaquim Pinto de Magalhães, que registou a marca em 1922. As duas colheres de sopa terão sido fabricadas em 1922 e 1938.
Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal |
Em suma, este conjunto de talheres do mesmo serviço terá sido adquirido progressivamente entre 1870 e 1938 pela família da sogra da irmã do Manel. Sendo que Senhora nasceu em 1909, esta terá comprado as peças mais recentes, completando um serviço já grande, iniciado pela sua mãe, ou mais certamente por uma avó. No fundo deve corresponder a três gerações. Naturalmente seria muito maior do que é actualmente. Dele fariam parte as facas, os garfos, os talheres de servir e colheres de chá, mas foi desaparecendo com as vicissitudes do tempo, que sempre afectam todas as famílias, por vezes de forma infeliz.
É um serviço muito simples e esta característica torna-o intemporal, ficando bem numa mesa em qualquer estilo, moderno ou clássico.
Bibliografia:
História das marcas e contrastes : metais nobres em Portugal,1401-2003 / Maria Nogueira Pinto ; rev. Benedita Rolo. - Lisboa : Mediatexto,2003.
Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018
Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal ; anotações de Fernando Moitinho de Almeida. - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974
Um agradecimento especial ao André Afonso pela identificação de algumas marcas e à Teresa Lança por conseguir fotografar e ampliar as minúsculas sinalefas dos ourives.
Grande trabalho nesta identificação, que claramente se tornou mais difícil, dado o desgaste provocado por sucessivas limpezas das pratas.
ResponderEliminarMas ainda bem que foi feito, pois o conhecimento das peças reconstitui a história das peças, que, doutra forma, iriam jazer no fundo de uma gaveta até ao final dos tempos.
Parabéns pela análise e publicação deste texto
Manel
Manel
EliminarAs pratas são um assunto novo para mim, do qual até há pouco tempo não sabia nada e as marcas são muito complicadas de se ler. Tenho que arranjar um mecanismo qualquer para as ler e fotografar no telemóvel. Mas é um trabalho interessante, porque até certo ponto permite ver como estes faqueiros iam sendo comprados ao longo de duas e três gerações. E depois a prata em si é um metal fascinante. Depois de limpas, fico a admira-las e demoro sempre uns quantos dias, a arruma-las, para poder gozar como deve ser.
Por fim, esta prenda da tua irmã, foi uma coisa fabulosa,
Um abraço