domingo, 9 de junho de 2024

Uma menina em biscuit dos anos 20 ou a história de uns sapatinhos de verniz



Ultimamente, tenho escrito por aqui pouco. Não que me faltem temas, mas neste mês parece que ando num campo minado e cada vez que dou um passo para um lado ou para o outro, para traz ou para frente rebenta uma chatice ou um problema qualquer. Por essas razões resolvi escrever sobre um assunto, que nunca me dá muito trabalho, uma figurinha em biscuit. Estas estatuetas em biscuit são normalmente de origem alemã, fabricadas nos finais do século XIX, inícios do século XX, algures na Turíngia ou no Saxe e raras vezes estão marcadas e por essa razão é difícil encontrar informações na net, a não ser que por um acaso da sorte, haja um vendedor nos Estados Unidos, na Alemanha ou França, que esteja a vender uma exactamente igual, mas marcada. Mas os alemães fabricaram tantos destes bonequinhos em biscuit que é essa probabilidade é quase impossível. Assim, sendo, muitas vezes, resta-me escrever sobre os sentimentos que me despertam.


Esta menina sentada já a namorava há quase dois anos na banca de um vendedor na Feira de Estremoz. O senhor de vez em quando trazia-a, eu namorava-a à distância, porque normalmente o dono não costuma fazer preços acessíveis, depois desaparecia e eu pensava que já tivesse sido vendida, reaparecia novamente até que acabei por compra-la por um preço muito simpático.

Os meus irmãos e e eu vestidos com roupa de ir ver a Deus. Sou o mais pequenino.

Achei-lhe muita graça pois parecia que estava sentada, exibindo os seus sapatinhos novos. Recordo-me que por volta dos meus cinco anos tive uns sapatinhos de verniz, daqueles que só se usavam em ocasiões especiais, como se costuma dizer, para ir à Madrinha ou ir ver a Deus. Aliás, há uma fotografia dos meus irmãos e eu, no baptizado de um primo, o Tozé, em que tenho esses sapatinhos calçados, embora já um bocadinho cambados, pois era muito irrequieto. Nessa fotografia tirada talvez por volta de 1968 ou 1969, os meus irmãos estão em ponto branco, enquanto eu estou prestes a desfraldar-me e as meias estão todas enrodilhadas no fundo. Mas gostava tanto daqueles sapatinhos de verniz e tive tanta pena de deixar de os calçar, pois em três tempos deixaram-me de me servir. Quando há uns 16 ou 17 anos voltaram-se a usar-se os sapatos muito bicudos e apeteceu-me imenso comprar um desses modelos em verniz, mas fui ameaçado por amigos e filhos, de que não sairiam à rua comigo com esses sapatos calçados.

Mas voltando à figurinha em biscuit, ela foi-me vendida como paliteiro, embora não acredite muito nisso. Os paliteiros em louça são coisas muito portuguesas. Quanto muito será uma fosforeira, ou muito mais provavelmente um bibelot.

Além do pormenor dos sapatinhos, achei muita graça ao chapéu e vestido da menina que me parecem já dos anos 20, de um período em que a costureira Jeanne Lanvin (1867-1946) já tinha revolucionado a moda infantil, ao começar a desenhar os modelos para a sua própria filha, Marguerite, todos eles muito mais simples práticos, do que a chamada moda fin-de-siècle.

Como a própria Jeanne Lavin recordava no tempo da minha infância as meninas eram vestidas de forma lamentável, como sacos de bombons, marujas de catálogo ou pior ainda como damas de meia idade anãs.

A menina usa polainas nas pernas

E com efeito a menina de biscuit não usa laçarotes complicados nem uma profusão de rendas e folhos. Tem um chapéu discreto na cabeça e um vestido simples alargando para baixo, com as golas e as mangas em amarelo. Podia ser quase um traje contemporâneo, não fosse um pormenor, que esse sim, caiu definitivamente em desuso, umas polainas. Com efeito, consultando na net antigas revistas de moda doa anos 20 encontra-se ainda figurinos com muitos meninos e meninas usando polainas nas pernas.

Um figurino do início dos anos 20


Bem sei que menina em biscuit fabricada nos anos 20 do século passado na Alemanha, não é uma obra de arte, embora a peça tenha sido muito bem executada e pintada. Mas o que me agrada nela sobretudo é recordar-me aqueles sapatinhos de verniz, que tive em criança.



Alguns links consultados 

6 comentários:

  1. O que tem interesse neste post é a ligação familiar que fizeste, juntando uma fotografia.
    Este facto dá-lhe um ar mais intimista e agradável.
    Realmente o uso de "polainitos", como eram denominados, será uma forma de datação possível da peça.
    Estes polainitos serviam para manter os pés secos e os sapatos menos sujos em climas mais rigorosos que o nosso.
    É uma peça de vestuário que desapareceu do dia-a-dia das pessoas, apesar de ainda se verem à venda na net.
    Mas davam um ar muito janota!
    Manel

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    1. Manel

      Como andava sem cabeça para escrever um texto que envolvesse investigação prévia, resolvi fazer este post mais sentimental e intimista, ligando esta peça a uma recordação da meninice, aos sapatinhos de verniz de que tanto gostava..

      Um abraço

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  2. Caro Luis......belo texto......afinal, o que somos nós senão o espelho da nossa formação na meninice......certos objectos têm a capacidade de nos abrir portas de outros tempos...portas fechadas porque vamos ficando velhos.....mas é tão bom abrir essas portas e sentir que a nossa felicidade não se mede apenas ao dia de hoje....abraço vitor pires

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    1. Vítor

      Como tem razão!
      À medida, que envelhecemos, estas pequenas memórias da infância, que nos surgem numa noite de insónias, ao folhear um livro ou na presença de um objecto, como esta figurinha, tornam-se particularmente emotivas. O tempo passou demasiado depressa, muita gente morreu e sobram as recordações de uns sapatinhos de verniz, que gravámos, sabe-se lá porque razão.

      Um grande abraço

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