sábado, 26 de maio de 2012

Velho aplique a gás


Há já muito tempo existia um velhote na Feira-da-Ladra, que deveria andar a vender os restos de uma loja de cortinados e decoração, talvez uma daquelas muitas casas, que faliram na Baixa e cujo recheio foi apodrecendo ao longo de muitos e muitos anos num primeiro andar de um prédio pombalino, à espera da decisão de um qualquer tribunal. O Senhor vendia botões em osso antigo, suportes fabulosos para pendurar cortinados, imitando os estilos franceses do século de ouro e toda uma panóplia de produtos em latão, que uma pessoa não sabia exactamente para que serviam, mas que nos apetecia comprar e levar para casa. Foi o que eu fiz com este aplique, que não me fazia falta em casa, mas que era um crime deixa-lo lá, até pelo preço irrisório que o velhinho fazia.

Quando, cheguei a casa olhei melhor para o candeeiro e percebi que originalmente foi concebido para ser alimentado a gás, pois apresentava uma espécie de manípulo para regular a intensidade da luz.
O manípulo para regular a iluminação
Este pormenor levou-me à procura das datas limites em que a iluminação a gás se fez em Portugal, para tentar de alguma maneira situar o candeeiro num espaço temporal mais preciso.

A iluminação a gás começou a usar-se em Paris, Londres e Bruxelas na segunda década do século XIX e foi-se vulgarizando pela Europa e Estados Unidos ao longo do século XIX. Em Portugal, neste período, vivíamos uma situação complicada, com a ocupação inglesa, a independência do Brasil e a guerra entre Liberais e Miguelistas, de modo que as primeiras tentativas para iluminar a gás a cidade de Lisboa começaram-se só em 1844. O sistema foi crescendo por toda a cidade ao longo da segunda metade do século XIX.

Cerca de 1880, a electricidade apareceu nos Estados Unidos e na Europa. E depois dessa data, o gaz cedeu progressivamente lugar à electricidade. No nosso País, os primeiros ensaios de iluminação eléctrica também tiveram em lugar nessa década, mais precisamente em 1882 e 1886, primeiro na Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, evento que deu origem ao Museu Nacional de Arte Antiga e depois no Teatro S. Carlos. Contudo, só depois da guerra de 1914-18, o uso da electricidade penetrou de um modo generalizado nos lares lisboetas, destronando definitivamente o gás.

Em jeito de conclusão, este meu aplique terá sido fabricado no período que medeia os anos de 1844 e 1918, o que não é uma informação propriamente exacta, mas ajuda-me a enquadra-lo num período da história portuguesa e a imaginar-lhe um cenário, talvez  iluminando uma daquelas boas lojas da Baixa, com um nome francês ou alusivo aquele País, como Paris em Lisboa, atelier de reliure, ou o Bonheur des Dames, tal como se chamava aquela perfumaria muito bonita, que existia ali da Rua do Carmo.

Este texto usou como fonte principal:

Serrão, Joel
Iluminação pública e privada
In

Dicionário de história de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais , s. d.

9 comentários:

  1. Este blogue é deveras educativo, além de lermos sobre coisas de que gostamos e daí vem a vertente lúdica, aprendemos ainda (para além de variadíssimas outras coisas) a fazer uma bibliografia como deve ser.
    às vezes sinto-me completamente burra, iletrada, ignorante mesmo,mas depois... pensando bem, sinto uma alegria imensa por comprovar um dos lemas da minha vida que é "o saber não ocupa lugar" e "aprender até morrer". Sinto-me priveligeada por ter vencido a minha aversão às "máquinas e às electrónicas" e ter descoberto as maravilhas da informação e da comunicação quase que em tempo real. E por arrasto, ter descoberto esta comunidade de bloguistas que tem os mesmos gostos e os mesmos interesses que eu e me têm dado alento para aprender mais e mais! Bem hajam!!!
    Boa semana de trabalho.
    Ana Silva

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    1. Cara Ana

      Muito agradeço as suas palavras simpáticas. Este é um blog para amadores de velharias, sem pretensões cientifícas de grande monta.

      Mas, em todo o caso, uns aos outros empurramo-nos a ir um pouco mais além nas nossas buscas e isso é muito divertido.

      abraços

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  2. Olá Luís.

    Este seu post lembrou-me uma factura/recibo de gás do mês de novembro de 1860, que encontrei nos papéis velhos do arquivo do Solar de Vilartão.
    A explicação é simples, o avô do Dr. Armando Morais Soares,o anterior senhor do Solar de Vilartão, era neto do administrador da "Companhia Lisbonense D`Illuminação A Gaz"de Lisboa.
    Nota final: os metros cúbicos de "Gaz" não me pareceram nada que fossem baratos, para além do "aluguel" do contador e limpeza das torneiras.
    O que o Luís faz vir à memória com a sua escrita apaixonante!

    Abraços

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  3. Caro Joaquim.

    Imagino que o gás só chegaria a casa dos burgueses abastados e dos aristocratas. A maioria usaria candeias a azeite ou candeeiros a petróleo. Também na província usar-se-iam estes métodos de iluminação mais rústicos, pois o gás nunca aí chegou.

    A minha mãe, que vivia em Vinhais, sede de Concelho, lembrava-se da chegada da electricidade nos finais dos 30 e que no início funcionava apenas uma hora por dia. progressivamente esse tempo foi aumentando, mas perto da meia noite ou ás 11 h fechava definitivamente.

    Abraços e obrigado

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  4. Olá Luís!

    Corrigindo a gralha.

    "Este seu post lembrou-me uma factura/recibo de gás do mês de novembro de 1860, que encontrei nos papéis velhos do arquivo do Solar de Vilartão.
    A explicação é simples, o avô do Dr. Armando Morais Soares, foi administrador da "Companhia Lisbonense D`Illuminação A Gaz"de Lisboa.
    Nota final: os metros cúbicos de "Gaz" não me pareceram nada que fossem baratos, para além do "aluguel" do contador e limpeza das torneiras.
    O que o Luís faz vir à memória com a sua escrita apaixonante!"

    Abraços

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  5. Bem, iluminação a gás foi coisa que nunca entrou em casa da minha família aqui em Portugal, e mesmo a eletricidade só lá chegou bem nos finais dos anos 70 do século XX.
    Em casa dos meus pais, perdida nos confins do centro sul de Moçambique, o frigorífico era a petróleo e a eletricidade era feita funcionar das 21 às 22 horas, por uma velho gerador ronceiro, barulhento e mal cheiroso, e era necessário que ele estivesse de feição, pois não raras vezes ele teimava e .... não havia quem o colocasse a andar!
    Eletricidade a sério, disponível 24 horas por dia, só muito depois, já nos finais dos anos sessenta, mas os apagões eram cíclicos e frequentes.
    O aparelho de rádio, um portento volumétrico e um produtor de calor fantástico, funcionava com ajuda de uma bateria de automóvel.
    Lembro as noites em que eu e a minha mãe nos colocávamos ao fresco, na varanda protegida com rede mosquiteira, a ouvir a rúbrica "Teatro em sua casa" (creio que era este o nome), um acontecimento que sucedia uma vez por semana, e que nos dava grande prazer, apesar de eu adormecer embalado pelas vozes que, por vezes, se sumiam e pelo ruído de estática (?) do aparelho de rádio.
    Ferros de engomar eram só a carvão e as fagulhas, quando se soprava ou quando estalavam, deixavam os tecidos cheios de buraquinhos, que se passajavam ao serão.
    Uma amiga minha, quando lhe falei recentemente sobre estas minhas memórias, dizia-me "mas tu és um dinossauro ..." (com amigas destas ninguém necessita de inimigos ... risos)
    Assim, este teu aplique nada me faz recordar do gás e tudo sobre outras formas mais básicas de produção de energia.
    São as memórias evocadas a partir de um vazio
    Manel

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  6. É impressionante como o Luís consegue desencantar assuntos de interesse nas mais diversas áreas!
    Esta história da iluminação, quer pública, quer privada, faz-nos recordar como a vida das pessoas, até há bem pouco tempo - pode-se dizer até ontem se pensarmos em termos de história humana - dependia muito mais da luz do sol, havendo necessariamente tarefas impensáveis no inverno ou à noite.
    A iluminação a gás já é um grande avanço, mas eu felizmente já nasci num tempo e numa terra com eletricidade todo o dia, o que era raro em localidades mais pequenas, quando a tinham...
    O seu candeeiro é muito bonito e essa particularidade do manípulo para regular a chama torna-o num objeto muito mais interessante, com história, como aqui ficou bem demonstrado com o seu texto.
    Um abraço

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  7. Manel
    Obrigado por partilhares as tuas memórias.

    Só me recordo de uma casa sem luz eléctrica, o Solar de Outeiro Seco e do medo que eu e os meus irmãos sentíamos em percorrer aqueles corredores à noite, onde circulavam morcegos. Agarrávamo-nos à Maria Antónia, uma rapariga que tomava conta de nós e lá íamos para os nossos quartos aLumiados por candeeiros a petróleo.

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  8. Maria Andrade

    As velharias permitem-nos reconstituir em nossa casa aspectos parcelares da vida do quotidiano de há cerca de 100 ou 150 anos atrás. É a chamada petit histoire, que é contada vezes sem conta neste blog, até porque o formato de um post não permite grandes ensaios, nem as pessoas tem pachorra para ler relambórios na internet.

    Beijos e obrigado pelas suas palavras

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