quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Delicada e sem afectação: a pintura da Vista Alegre



Volto hoje a apresentar mais uma peça Vista Alegre com os motivos das florinhas, fabricado muito provavelmente durante o 4º período, 1870-1880, ou talvez ainda numa época mais antiga. Não está marcada com o tradicional VA. Apresenta apenas o número 18, pintado a doirado. Este suposto número com um ponto final levanta-me algumas dúvidas. Estes caracteres não serão as siglas VA esborratadas ou com o dourado esmorecido?

Número 18?

Mas é mais provável que seja o número da decoração ou uma marca do artista.


Mas apesar de não estar marcada com o típico VA, é óbvio que é Vista Alegre. Basta compara-la com outra cafeteira, que também tenho com a mesma forma e uma decoração semelhante, embora não tão requintada, mas que se apresenta marcada.

As duas cafeteiras: um bom exemplo da delicadeza, sem debilidade, nem afectação

Este motivo das florinhas desperta-me uma paixão tão grande há tanto tempo que procurei saber mais sobre ele e fui consultar a obra Vista Alegre: porcelanas. – Lisboa: INAPA, 1989. Encontrei um texto muito bem escrito, por uma senhora, Maria de Azevedo Coutinho, intitulado A pintura: imagem da Vista Alegre, que me ajudou a perceber melhor este estilo floral delicado.


Como toda a gente sabe as manufacturas de porcelana europeia surgiram no século XVIII, inteiramente dependentes do patrocínio de casas reais e produziam peças luxuosas, pintadas com o maior requinte por artistas conceituados da época. Os exemplos mais paradigmáticos são Meissen, dependente do Duque do Saxe e Sêvres da Casa Real francesa.


Depois da Revolução francesa e das guerras que se lhe seguiram, o patrocínio real acabou, as encomendas sumptuosas também diminuíram e apareceram fábricas privadas que produziram peças mais baratas e em maior número para satisfazer a procura da burguesia abastada. A nossa Vista Alegre surge precisamente neste período e neste contexto, muito embora em Portugal, nunca tivesse existido no século XVIII uma fábrica de porcelana real, pois como através da nossa rede comercial marítima tínhamos um acesso privilegiado à porcelana da China, a melhor do mundo, nunca sentimos necessidade de a fabricar.


As novas fábricas europeias de porcelana do século XIX com orçamentos mais reduzidos tentaram reproduzir os faustos do século anterior, mas sobretudo através das formas e a grande pintura ficou confinada a pequenas reservas.


Em Portugal, no século XIX, a Vista Alegre não dispõe de tecnologia para moldes arrevesados, nem de dinheiro para contratar grandes pintores. O gosto dos proprietários da fábrica e do público português são também limitados. Por isso a sua produção é caracterizada por formas mais simples e por uma pintura que revela igualmente grande simplicidade.



Esta simplicidade e lirismo tem também a ver com o ambiente familiar e quase campestre da escola de pintura que se foi desenvolvendo na Fábrica. Longe do Porto, Coimbra ou de Lisboa, a serenidade que se vivia em Ílhavo influenciou a estética das suas obras. Criou-se ali uma escola e uma tradição de pintura, que não era muito eficaz nas cenas mitológicas ou temas rocaille à moda de Fragonard, mas ganhou uma grande mestria nos motivos florais. Esta escola, afastada dos centros urbanos é algo conservadora. Mantem-se sempre nas mãos da mesma família, os Pinto Bastos, que se orgulham da qualidade da pintura na Fábrica e acarinham sempre esta arte

Não gosto de concluir nada, porque a vida nunca é linear e nem os desenlaces são perfeitos, mas posso adiantar que uma certa limitação de meios jogou a favor da Vista Alegre, que produziu na época desta cafeteira peças de uma notável delicadeza, mas sem afectação.

10 comentários:

  1. Ola Luis, mais um post "dos que eu gosto" :-)
    Tambem eu sou uma apixonada por estas florinhas simples e belas da V.A. que de me transportam para uma melodia bem suave e leve e me fazem querer ter o dom de as saber pintar nos meus tecidos (isso é outra história, sou uma negação mas faz me bem a alma)...
    E que belo par de cafeteiras, curiosamente nunca me passou pelas mão uma cafeteira deste formato, teria certamente ficado cá por casa. Gosto muito...

    Um abraço Luis

    Marília Marques

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  2. Eu sei que realmente és muito sensível a este tipo de decoração, talvez por, inicialmente, terem sido, algumas delas, peças herdadas, depois porque, finalmente, lhes deves ter encontrado uma graça infinita, pois não há duas flores iguais, visto sairem directamente do pincel do pintor/decorador/artesão.
    E é nesta espontaneidade, neste acaso, na reinterpretação, ainda que modesta, que reside a beleza da pintura em cerâmica/porcelana no nosso país.
    Gosto imenso, como sabes, das peças de faiança saídas das fábricas novecentistas, sobretudo inglesas (ainda que esta produção se espalhasse um pouco por toda a Europa), pela beleza dos desenhos e pela imensa diversidade imaginativa de motivos, mas possuem algo que não abona a favor delas ... não nos surpreendem, não há alterações, tudo é feito de forma industrial, democraticamente iguais (para atender a uma população de um país dotado de uma economia crescente) - duas peças do mesmo motivo apresentam exactamente o mesmo desenho ...
    É nisto que a nossa pequenês, fora de todos os percursos principais civilizacionais, jogou a nosso favor!
    A nossa cerâmica/porcelana da época é dotada de uma vitalidade espantosa, ainda que pouco ou nada conhecida fora de portas ... e ainda bem, senão vinham encarecer o que, não sendo muito barato, tornar-se-ia exorbitante!
    Pena que essa vitalidade se tenha transformado na "pinderiquice" e mau gosto que vemos hoje à venda nas lojas ditas de artesanato e "souvenirs" espalhadas um pouco por este país à beira-mar "prantado"
    Manel

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  3. Olá Luís,
    Sabe que ando há anos para encontrar uma cafeteirinha destas isolada e ainda não consegui? Só as tenho visto em conjuntos, caríssimos...
    Também não tenho nenhuma leiteira deste modelo "facetas", em branco só tenho lisa, mas a cafeteira com aquele biquinho é que faz as minhas delícias. Ainda por cima decoradas como estas estão ficam uma loucura!
    Quanto à marca, também já estive a ver se aquilo poderá ser um VA mais rebuscado, desenhado por alguém que não soubesse escrever e se limitasse a copiar o desenho das letras, mas mesmo assim é difícil ver ali um V.A.. De qualquer forma para mim não há dúvidas de que é esse o fabrico.
    Gostei muito de todo o texto que enquadra muito bem a produção da Vista Alegre no contexto europeu de fabrico de porcelana.
    Um abraço

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  4. Cara Marília

    De facto apetece saber pintar, depois de observar peças delicadas como estas. Os pintores da VA deviam experimentar muito prazer quando decoravam a porcelana.

    Abraços

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  5. Concordo contigo Manel.

    O facto de a VA ter mantido um certo nível artesanal e familiar, sobretudo na escola de pintura, jogou a seu favor e o resultado foi uma multiplicidade de motivos decorativos, que não nos deixa de supreender.

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  6. Maria Andrade

    Cá pelo Sul vai-se encontrando peças destas com um preço aceitável. Os negociantes pedem mais dinheiro pela faiança do que pela porcelana portuguesa.

    Esta Cafeteira estava incluída num serviço. Ainda o vi inteiro. Mas, o vendedor deve ter percebido que ninguém tinha dinheiro para lhe comprar o conjunto todo e decidiu vende-lo às peças. E eu que não tenho muito espaço nem dinheiro aproveitei para me lançar sobre a cafeteira.

    Abraços

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  7. Parabéns, Luis. Venham mais dois!
    Abraço.

    BR9

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  8. Bem vindo ao meu blog, BR9.

    Espero poder contar mais vezes com os seus comentários.

    abraços

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  9. Gosto muito da Vista Alegre. Tenho um conjunto de chávenas de chá com essa decoração

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  10. Ana Maria

    Muito obrigado pelo seu comentário. Esta decoração é particularmente feliz.

    Um abraço

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