sexta-feira, 9 de julho de 2021

Heloísa no Monte Paracleto: um relógio francês da primeira metade do século XIX



Como já aqui contei, o meu amigo é um comprador apaixonado de relógios de pêndulo, esses mecanismos que antigamente existiam em todas as casas ricas ou burguesas. Já no século XX, mesmo aqueles que viviam remediadamente ambicionavam ter um e poupavam os seus tostões para adquirir um relógio da Boa Reguladora.

Este relógio que o Manuel comprou na Feira de Estremoz foi concebido para estar no topo de uma chaminé ou de uma cómoda. Desde logo nos pareceu que seria uma coisa do século XIX e obviamente francesa, já que nesse período a França dominava o mercado da produção de relógios de luxo de parede ou chaminé. E este é realmente um relógio luxuoso, todo feito em bronze, num magnífico dourado.



Contudo não apresentava qualquer marca e o próprio significado da dama elegantemente vestida, que se agarrava a uma cruz não era claro. Poderia eventualmente ser uma Maria Madalena arrependida, mas no século XIX os fabricantes de relógios franceses e o público, que os comprava, evitavam os temas declaradamente religiosos. Se pesquisarmos no google por pendule francaise XIX siécle vamos a ter a toda uma série de páginas de antiquários e leilões e os relógios à venda são inevitavelmente decorados com temas da mitologia greco-romana, alegorias igualmente de inspiração clássica ou então cenas galantes ao gosto de Watteau. Lembrei-me que poderia ser uma alegoria de uma das virtudes teologais, mais exactamente a fé, que costuma ser representada por uma senhora como a cruz. E com efeito encontrei um ou outro relógio com representações das virtudes cardeais ou alguma das sete virtudes, mas normalmente a dama, que simboliza a fé não aparece representada em trajes de corte e falta-lhe o livro, representando a Bíblia.

Relógio à venda na https://www.piguet.com/en/lots/1071806


Embora não entenda nada da parte mecânica dos relógios, como objectos decorativos encantam-me e por essa razão lancei-me à procura nos sites de venda on-line de um relógio que representasse uma dama abraçada a uma cruz e de facto encontrei modelos quase idênticos. O primeiro no leiloeiro Piguet, Hôtel des Ventes, de Genebra, marcado no mostrador como sendo de Claude Barthele , de Grenoble, mas esta marca, poderá reportar-se ao esmaltador, ou mais provavelmente à ourivesaria, que o comercializou. Segundo este leiloeiro, o movimento do relógio, ou melhor o mecanismo foi feito em Paris, no Grange et Bétout à Paris, e apresenta também a seguinte inscrição Medaille d'or Pons 1827. No entanto, é mais provável que o Grange et Bétout tenha sido o ebanista, que executou os embutidos da base em madeira e o Pons, deve referir-se certamente ao reputado relojoeiro Honoré Pons, 1773–51, que chegou a receber a legião de honra em 1819 bem vários outros prémios pelo seu trabalho. O referido leiloeiro não esclarece quem representa a dama agarrada à cruz e data do relógio do período da restauração (1814-1830)

Enfim, começava a acreditar que o relógio do Manel seria do prestigiado Relojoeiro Honoré Pons e continuei à minha procura na net e encontrei mais outro relógio semelhante no e-bay, mas sem qualquer marca e também sem nenhuma identificação acerca da dama piedosa.

Madame de Sevigné, relógio de Monteil, Toulouse


Achei então que já tinha esgotado a informação disponível na internet e passei à procura de informações mais sérias e consistentes nos livros e na encontrei a obra La pendule française : des origines a nos jours / Tardy ; H. Levasseur. - Paris : Tardy, 1969 na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga, que me esclareceu mais alguns aspectos sobre este relógio. Na página 454, do segundo volume desta obra, encontrei outro relógio semelhante a este, com o mecanismo assinado pelo relojoeiro Encely de Toulouse, datado do período da Monarquia de Julho, o chamado estilo Luís Filipe (1830 a 1848) mas desta vez a jovem elegante e piedosa, que se agarra à cruz é identificada como Heloísa, no Monte Paracleto. Além dos temas da antiguidade clássica a partir de mais ou menos 1830, a relojoaria francesa assimilou os valores do movimento romântico, introduzindo assuntos históricos inspirados na idade média e na literatura. Apareceram então relógios neogóticos, representações em vulto da escritora Madame de Sevigné, da Rainha da Escócia, Maria Stuart, das figuras do romance Paulo e Virgínia e ainda desta Heloísa, que com o seu amado Abelardo viveram no século XII um dos romances mais famosos da história. 

Heloísa no Monte Paracleto, assinado por Encely,  Toulouse

Não consegui exactamente perceber que momento da vida de Heloísa este relógio representa, mas encontrei uma estampa num libreto de uma ópera de Donizetti, que não anda muito longe desta cena em bronze.



Sabendo então, que este relógio representava o desespero da pobre Heloísa fiz mais uma busca pela internet e encontrei outro relógio semelhante à venda no Canadá, nas Antiquités Bolduc, mas desta vez com o mecanismo assinado pelos Japy Freres, uma das grandes casas de relojoaria francesa.

Relógio de Japy Freres à venda nas Antiquités Bolduc


Em suma, é quase impossível atribuir este relógio do Manel a este ou aquele fabricante. Nesta época, algures no segundo quartel do século XIX, para montar um relógio concorriam vários mestres ou fábricas. Em primeiro lugar o fabricante do mecanismo que executava o relógio propriamente dito e em segundo o fabricante da caixa do relógio. Se esta fosse de cerâmica poderia ser uma encomenda a Sèvres ou um fabricante de porcelana da cidade de Paris. Se o relógio estivesse numa estrutura em madeira, o autor desta seria uma oficina de ebanistas, que realizaria embutidos preciosos. Finalmente, se fosse em bronze, encomendava-se as esculturas a uma metalurgia, que a partir de um molde, fundiria a peça e faria os acabamentos à mão, mediante o uso de um cinzel. Creio que relógios inteiramente feitos numa fábrica só irão fazer a sua aparição na segunda metade do XIX. Ainda assim, recordo-me de há pouco tempo visitar uma das lojas de ferragens mais antigas de Lisboa, a Casa Achilles, na Rua de São Marçal e tinham ainda à venda estruturas de relógios neobarrocos, numa liga qualquer de latão, prontos para serem vendidos a qualquer relojoeiro ou ourives, que nele quisesse instalar um mecanismo.

Em suma, o mais natural, é que no segundo quartel do século XIX tenha havido uma metalurgia qualquer em França, que executava com grande qualidade estas esculturas em bronze, que eram depois vendidas para vários relojoeiros, como os Japy Freres, o Encely de Toulouse, Honoré Pons ou ainda outros e o público burguês abastado, apreciaria ter nas suas cómodas ou chaminés estas representações de um momento dos amores de Heloisa e Abelardo.



Alguma bibliografia e links consultados:

La pendule française : des origines a nos jours / Tardy ; H. Levasseur. - Paris : Tardy, 1969



4 comentários:

  1. Este relógio adquirido há praticamente um ano atrás, veio com um mecanismo em muito mau estado, pois os tambores das cordas estavam partidos, assim como os respetivos veios se encontravam torcidos e partidos porque alguém, no passado, os forçou.
    Faltava-lhe o mecanismo de suspensão do pêndulo, assim como a chave para dar corda, e toda a máquina se encontrava completamente negra de sujidade, e haveria seguramente muitas dezenas de anos que não funcionava.
    Como excedia as minhas capacidades de conseguir arranjá-lo, agarrei nele e mandei-o para o Museu do Relógio em Serpa, para que me restaurassem o mecanismo.
    Também não tinha a certeza que o conseguissem fazer, pois, em relojoaria, nem tudo é possível recuperar.
    No entanto, cerca de um ano volvido, telefonaram a informar-me que se encontrava arranjado.
    Lá fui eu buscá-lo, todo feliz, pois finalmente tinha mais um "tic-tac" em casa.
    Veio com uma chave de dar corda bastante moderna, nada consentânea com a época do relógio, mas, por milagre, mesmo à minha frente, apareceu-me uma muito antiga, mais de acordo.
    Agora só falta encontrar-lhe uma base e uma campânula em vidro para proteger o mecanismo e os dourados do tempo, do pó e sujidades em geral.
    Mas encontrar ambos não será fácil. Lá terei de percorrer a net e vasculhar mais, para conseguir encontrar os artigos corretos. Não será fácil.
    No entanto, depois da pesquisa que levaste a cabo, e que me encantou, fiquei mais convencido em tentar arranjar o que falta.
    Confesso que não tenho qualquer encanto especial por uma senhora ignota, que terá vivido no século XII, só a curiosidade atendida, de quem percebeu melhor aquilo que comprou.
    Obrigado pela pesquisa, que foi notável.
    Manel

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    1. Manel

      Este teu relógio é uma peça fantástica e ficará lindamente numa redoma, além que de que ficará igualmente resguardado do pó.

      A relojoaria francesa desta época é de muito boa qualidade e eu próprio fiquei surpreendido com esta moda de figuram personagens da literatura nos relógios. Mas de facto, quando este relógio foi executado a Idade Média estava na moda e a escolha do tema, a pobre Heloísa, estava perfeitamente de acordo com a época.

      Um abraço e ainda bem que vais comprando estas peças, proporcionando-me sempre novos temas para o blog

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  2. Caro Luis
    Um relógio empoeirado ressuscitou a Heloísa e Abelardo dos mortos. Os relógios continuam a marcar as horas dos que já partiram e a horas dos que restam. Como sempre, um objecto é diferente de todos os outros quando se estima e envolve com respeito….Há simples objectos que perduram mais que alguns homens. Bom trabalho como sempre!!!!
    Cumprimentos Vitor Pires

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    1. Caro Vítor Pires

      Um instrumento que mede o tempo proporciona-se a todas as alegorias, talvez mais do que qualquer objecto. O relógio pode representar as vãs vaidades do mundo ou à espera pelo regresso da pessoa amada.

      Um grande abraço

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