sábado, 12 de janeiro de 2013

A Tia Lili (1902-1968)

A tia Lili. Fotografia do Estúdio Guedes, na Rua de Sta. Catarina, Porto.
A tia Lili morreu em 1968, teria eu uns cinco anos e foi o meu primeiro contacto com a morte. Tenho uma ideia muito esbatida da sua figura, uma senhora velhinha de cabelo branco e simpática com as crianças, mas esta é uma imagem tão imprecisa, que se podia aplicar a centenas de milhares de senhoras idosas, que ao longo de séculos e séculos foram bondosas com os meninos e as meninas.


Em todo o caso foi a primeira vez que me lembro de ter ouvido falar de alguém que morreu. E por isso mesmo, desde essa altura, a minha mãe, quando nos punha a rezar à noite, incluía sempre na oração uma parte qualquer sobre a alma da Tia Lili, que estava no céu. Em 1969, um ano depois morreu a minha avô materna e a reza, antes de dormir passou a incluir além da tia Lili uma oração à alma da Avozinha, de modo que, na minha cabeça infantil, o céu era uma espécie de sala, com uma camilha no centro, onde à volta estavam senhoras velhinhas sentadas a fazer renda e tricot. De facto é curioso, porque as poucas recordações que tenho da minha avó materna é precisamente sentada à volta de uma camilha, aquecendo os pés numa braseira.


Os irmãos Fernandes: A tia Lim Lim (a mais alta), o José Clemente e a Francisca. Eram filhos de Adelaide Maria, irmã do meu bisavô Clemente da Ressureição Morais e que casou com um Fernandes.

Depois, foi morrendo mais gente, os tempos começaram a ser de menos fé, a minha mãe foi-se tornando numa católica cada vez mais crítica e os meus irmãos e eu começamos a achar que o céu era assim uma coisa pirosa inventada pelas catequistas, e por consequência, acabaram as orações antes de deitar e fui esquecendo a Tia Lili.


Só voltei a pensar na Tia Lili, esta prima direita da minha avó materna, já depois de ter feito os 40 anos, quando comecei a interessar-me por história familiar, para tentar perceber o que há em mim de tantos nomes desaparecidos.

Há cerca de uns quatro anos fui visitar à minha prima Bli, que tem uma casa antiga em Vinhais, herdada da tia Lili. É uma casa com a dignidade de um solar e pertenceu ao marido da Tia Lili, um senhor da família Almendra. A Bli esteve outra vez a mostrar-me esta casa e revelou-me um pormenor com imensa graça no cimo das escadas, uma sineta antiga, que estava ligada à porta da Rua. Quando a Bli e os seus irmãos iam visitar esta tia, que se chamava Adelaide, puxavam a sineta e ouviam dlim, dlim e este som era tão característico e divertido, que a miudagem passou a conhecer a senhora por tia Lim Lim. Esse petit-nom já chegou deturpado aos meninos mais novos do meu ramo familiar, que a conhecíamos por tia Lili.



Sei que é uma pequena história sem interesse para o País, a sociedade ou a economia, mas, quando ao explorar as fotografias do velho álbum familiar, encontrei as fotografias da tia Lim Lim, não deixei de me enternecer com as imagens desta menina que eu só conheci velha.  

19 comentários:

  1. Olá Luís

    Que serenidade emana da Tia Lili (Lim Lim)!
    As poses, tão ao gosto da época, num cenário montado pelo fotógrafo. O irmão numa posição solene, foi o único que teve direito a cadeira.As meninas, com vestidos domingueiros, laçarotes nos cabelos e as correntes de ouro, em destaque,talvez para mostrarem a confortável situação económica da família.
    Fica-lhe bem lembrar.
    Bem haja por não os esquecer.
    if

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    1. cara If

      Muito obrigado pelo seu comentário.

      Sabe que ainda não consegui perceber se as pessoas se deslocavam aos bons fotográfos do Porto e Braga ou se estes se deslocavam às feiras e tinham uma espécie de estúdio ambulante com um cenário montado.

      Tenho algumas fotografias desta época, primeira década séc. XX, que presumo terem sido feitas em Feiras, pois apesar do cenário palaciano, o chão é de terra batida. Talvez os fotógrafos do Porto, Braga ou Guimarães enviassem empregados para bater o interior e depois as pessoas recebessem as fotos pelo correio.

      Neste caso, os pais dos irmãos Fernandes tinham posses para se deslocar até ao Porto e irem ao Emílio Biel, Fotógrafo da Casa Real, para fazer fotografar os seus rebentos, mas a fotografia de conjunto não tem o nome do estúdio. Só a fotografia individual da tia Lim Lim tem o nome do estúdio, o Guedes, na Rua de Sta. Catarina, no Porto.

      Mas nunca encontrei nada escrito sobre a existência ou não de fotógrafos a percorrem o interior do País nos finais do XIX, inícios do XX.

      Um abraço

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  2. Olá Luís
    Era um mundo em que no mundo das pessoas, as crianças tinham o seu mundo alimentado com muito fantasia.
    Hoje, qualquer criança não imagina o céu uma sala com uma camilha. No mundo das certezas terá o cérebro cheio de imagens nítidas do mundo de hoje, qual delas a mais horrível onde o ruído não deixa ouvir o mais simples dlim,dlim da sineta.

    Um abraço

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    1. Caro Joaquim

      Não sou propriamente o género de pessoas que se queixa das gerações mais novas, mas o seu comentário sobre o ruído é infelizmente acertado.

      Este Verão, estive em Vinhais com os meus filhos e a minha sobrinha mais velha e não havia televisão, pois ninguém se lembrou de instalar DDT numa casa, que é aberta uma vez por ano. O único ruído que existia na sala era o do velho relógio da Reguladora, que dei corda e pus a trabalhar.

      Pois, imagine que a minha sobrinha mais velha estava com dificuldades em estudar sem a barulheira da Tv, e queixava-se que havia demasiado silêncio e que o tic-tac do relógio a punha doida.

      De facto, estes miúdos precisam de ruído, um televisor, um i-pod, uns phones ou qualquer outra coisa electrónica que faça estardalhaço.

      Talvez só com a maturidade se passe a apreciar o silêncio.

      Um abraço

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  3. A história poderá não ter interesse para a economia do país... mas tem para a felicidade dos leitores. :)

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    1. Cara Luisa

      Muito obrigado pelo seu comentário tão simpático!!!!!!!

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  4. Olá,luis
    É nestas fotos que vemos como a mocidade passa tão rápido...
    E a tristeza toma conta da nossa alma
    Antes umas meninas lindas,agora velhinhas com cabelos alvos...
    Se toda a gente fosse como eu...não me acredito nessa História de Céu
    O Inferno estamos nós a viver agora,aqui na terra
    Com todos os problemas que temos,crianças sem infância etc
    Ah as fotos são tão lindas .Uma ternura.
    Bem-haja,Luís , por preservar a lembrança dessas meninas e meninos de outrora
    Um abraço

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    1. cara Grace

      Já há muita décadas que não acredito no céu, mas quando descobri estas fotografias lembrei-me de imediato das orações da meninice, onde num momento qualquer rezavamos pela alma da tia Lim Lim. Este post é o relembrar de um episódio da minha infância, numa altura em que tinha mais ou menos a idade da com que tia Lim Lim aparece na primeira fotografia.

      Um abraço

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  5. É sempre bom quando não se esquecem aqueles de quem mais fácil é esquecermo-nos: os que desapareceram.
    E todas as formas de os manter no posto que lhes compete são válidas, sobretudo pessoas por quem nutrimos laços fortes, ou com quem partilhámos momentos significativos ou então, muito simplesmente, em determinado momento da nossa vida, não nos foram indiferentes.
    E são estas pequenas histórias que lhes conferem a "vida" necessária para que com elas tomemos conhecimento, ainda que nada nos ligue a elas; é, no entanto a semelhança das situações que torna este facto importante, é que todos temos pessoas que, gostaríamos, continuassem "vivas" na memória coletiva.
    As tuas palavras dão voz, através de uma reação que poderia denominar de "osmose", à nossa vontade de trazer ao coletivo as pessoas que nos foram igualmente importantes.

    Quanto às fotografias, a minha avó contava que em todas as feiras existiam sempre fotógrafos itinerantes, com estúdios ambulantes, e que serviam a população remediada ou mesmo pobre.
    Não creio, no entanto, que os fotógrafos de maior importância recorressem a este expediente, pois deveriam ter uma clientela burguesa e abastada que lhes deveria dar bastante trabalho e, consequentemente, conforto económico.
    Até que, possivelmente, alguns, por exemplo, denominados de "fotógrafos da casa real", deveriam considerar abaixo da sua importância fazer este tipo de trabalho itinerante, e tão pouco me parece que tivessem pessoas a trabalhar para eles, que fizessem o percurso destas feiras populares.
    Algumas fotos antigas que tenho foram produzidas de forma primorosa, com aguarelas e fundos esbatidos fantásticos, o que não estaria ao alcance de qualquer bolsa.
    Noutras, de feira, nota-se o tal pavimento coberto com palha e as pessoas sentadas ou ao lado de uma cadeira mais charmosa, com o tal cenário de papel pintado com uma balaustrada ou um cortinado de veludo apanhado, por detrás.
    Sejam elas como forem, continuam a ser um charme, e gosto muito de as ver, pois fazem-me sonhar com pessoas e histórias idas.
    Manel


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    1. Quando cheguei a Lisboa, nos inícios dos 70, havia no Campo Grande, ao pé do sítio onde entronca com a Av. do Brasil, um fotógrafo já bastante idoso, que montava banca num local próximo de um ponto de encontro de gentes e onde havia também, creio, um parque de crianças, e ali estava ele de vez em quando debaixo do pano negro a fotografar algum rabino irrequieto que teimava em remexer-se, para grande irritação do homem! Não sei como é que ele entregava as fotografias ... mas, para mim, era uma coisa do outro mundo, pois já estava habituado a ir ciclicamente ao "chato" do fotógrafo que primeiro me arrepelava os cabelos todos com um pente ranhoso que por lá andava (devia servir para todos!), insistia em me colocar a três quartos e a fazer um sorriso idiota que me colocava sempre fora de mim! "Ólh'ó passarinho" gritava ele, e eu chispava de irritação!
      Talvez seja por isso que hoje evito sempre ficar no instântaneo!
      Manel

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  6. Mais uma figura dos seus antepassados que o Luís aqui ressuscita!
    Através das imagens de infância, estas pessoas que já foram pais, mães, tias, envelheceram e morreram, cumprindo o seu ciclo de vida, mesmo não tendo connosco qualquer afinidade, suscitam uma adesão, uma simpatia imediata!
    Claro que a isso não é alheia a forma como o Luís escreve sobre elas, um dom que nem todos partilhamos, por mais que também gostássemos de falar sobre os nossos que já partiram.
    Enfim, é como diz a Grace, ao vermos estas fotografias antigas apercebemo-nos bem de como o tempo vai fugindo a qualquer de nós... o que vale é que o tempo é democrático, passa para todos da mesma maneira... ;)
    Um abraço

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  7. Manel

    Também a mim me colocavam sempre a três quartos, obrigando-me a baixar o queixinho. Como tenho o rosto comprido e estreito e na altura ainda mais do que hoje, ficava a parecer uma espécie de pepino com óculos. Julgo que as piores fotografias da minha vida foram dessa época, no tempo em que ia aos Studios Ângelo, na Estrada de Benfica. Ainda hoje, evito cuidadosamente tirar fotografias a três quartos, com o queixo baixo.

    Também me lembro desse fotógrafo no Campo Grande e também ainda vi um desses Senhores, com uma câmara antiga, em Santiago de Compostela, em meados dos anos 80.

    Tentei hoje ler qualquer coisa sobre história da fotografia em Portugal, mas não encontrei referência aos fotógrafos, que nos finais do século XIX, ínícios do XX faziam as as terras do interior do País e se esses homens eram gente destacada dos ateliers do Porto ou Braga. Sei que alguns estúdios fotográficos do Porto tinham muitos empregados. Enfim, é uma pergunta que vai ficar por responder.

    Abraço

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  8. Maria Andrade

    Tocou num ponto, que já há muito tempo andava a pairar na minha cabeça sem o conseguir definir. Há sempre qualquer coisa que nos atrai irresistivelmente nas fotografias antigas, mesmo que de estranhos. Talvez essa atracção seja consequência da capacidade que a fotografia tem de subtrair um instante ao "Tempus fugit".

    Beijos e obrigado

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  9. Luís
    as crianças estão mesmo uns amores
    No meu País as fotos são bem diferentes
    Talvez não tenhamos essa expressão espontanea
    Crianças são sempre crianças em qualquer lado,País ou região
    Cumprimentos

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  10. cara Jasmine

    Muito obrigado. A maneira de posar para as fotografias é diferente de época para época. Quando eu era menino as poses já eram diferentes do tempo da tia Lili e hoje fotografamos os meninos de forma perfeitamente natural. Julgo que noutras culturas as fotografias antigas traduziam uma forma diferente de ver a infância da europeia.

    Bjos e obrigado pelo seu comentário

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  11. Mais uma vez, contas as histórias da família de uma maneira terna e carinhosa. Saudades das camilhas com braseiras e dos lanchinhos quentes e acolhedores e em que o tempo não tinha importância. Talvez a razão pela qual a tua sobrinha mais velha (por acaso minha filha) fique doida com o tic tac do relógio ;))) e com o silêncio, que certamente a faz pensar nos fastasmas que vagueiam naquela casa. O tempo, hoje em dia, é dinheiro...

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  12. Gosto sempre muito da forma como escreve sobre a história da sua família - os pequenos pormenores ... tão bonitos.
    Muito obrigada.
    emília reis

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  13. Teresinha

    Obrigado pelo teu comentário. Talvez a forma de não ter medo dos fantasmas, seja associa-los a nós, perceber que carregamos uma herança dessas mulheres, homens e meninos mortos há muito, sem que muitas vezes se consiga definir o que é exactamente essa herança. Os fantasmas não fazem mal a ninguém, aliás melhor seria designa-los por "memórias", um dos temas recorrentes deste blog.

    Bjos

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  14. Cara Emília

    Muito obrigado pelas suas palavras.

    Um grande abraço

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