terça-feira, 6 de setembro de 2022

Máquinas de costura Singer: apontamentos de algumas memórias familiares






A minha tia Maria Adelaide era modista e no andar térreo da casa de Vinhais tinha o seu atelier, onde havia sempre uma grande azáfama, com as suas empregadas, a Bárbara, a Iracema e a Chica de volta das máquinas de costura, ou a alinhavar. Havia também muitos figurinos, linhas pelo chão e uma mesa grande de encostar onde a minha tia cortava as peças de tecido. Embora só passasse em Vinhais uma temporada por ano aquele ambiente sempre me inspirou. Em jovem ambicionei ser estilista e ainda hoje guardo o gosto por me vestir de uma forma criativa.

Curso Singer gratuito para o ensino de bordados e aplicação de acessórios


Talvez por isso me tenha decidido hoje a seleccionar esta foto dos arquivos da família materna, que mostra um curso das máquinas de costura Singer, que provavelmente decorreu em Vinhais. Era um curso gratuito para o ensino de bordados e aplicação de acessórios e a julgar pela indumentária e pelos penteados, deve ter ocorrido nos finais do anos 20 ou no início dos anos 30 do século XX, e a fotografia capturou um momento qualquer especial, talvez o fim do curso e foi impressa em forma de postal, de modo a que todas pudessem ficar com uma recordação e envia-la aos pais ou aos amigos. As pupilas estão todas sentadas em frente das suas máquinas de costura, de onde saem panos bordados maravilhosos. 

A minha avó materna

De pé, estão três senhoras, entre as quais a minha avó materna, facilmente reconhecível pelo carrapito e o seu queixo rabeca e ainda um homem. Presumo que as três senhoras em pé seriam as mestras e o senhor, um técnico da Singer, que estaria ali sempre pronto para desencravar uma máquina ou para resolver qualquer eventual problema mecânico Na fotografia constam também 5 meninas, que me parecem demasiado pequenas para estar ali a aprender. Imagino que algumas das senhoras tivessem dificuldade em arranjar alguém para tomar conta das crianças de modo, que as trouxeram naquele dia e constam na fotografia, servindo assim para demonstrar, que este era um curso sério destinado a mães de família, a fadas do lar.

Assinalada com uma seta, está uma das primas Fernandes, creio que a Chica


Das senhoras representadas, como já referi, só identifico a minha avó Adelaide, em pé, no canto inferior esquerdo e creio reconhecer umas das primas Fernandes, sentada, logo atrás da mesa onde está o cartaz. Creio eu que será a Chica Fernandes, madrinha da minha mãe, que ainda conheci bem.



Ao fundo da sala, há uma grande cartaz da Singer, onde se anuncia um esquema de prestações semanais para aquisição de máquinas de costura. Com efeito, nesta época uma máquina de costura era um bem extremamente valioso para uma mulher. Poderia poupar imenso dinheiro confeccionando os vestidos para si, roupas para toda a família e ainda lençóis e toalhas, como também, se por qualquer eventualidade da vida, se visse viúva ou órfã, poderia garantir o seu sustento de forma honesta, fazendo costura para fora. Foi o que aconteceu à minha tia Maria Adelaide, que após a morte do pai em 1949, teve que se tornar modista, usando a máquina de costura, como ganha-pão para si e creio eu, que para a sua mãe.

Estas máquinas de costura eram tão valiosas para uma mulher, que a minha trisavô paterna, uma fidalga rica, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, que vivia nas cercanias de Chaves, quando viu aproximar-se a morte, em 1902, fez um testamento muito completo, com os legados pios, discriminando o dinheiro paras as missas a rezar aqui e acolá, os alqueires de trigo a distribuir pelos pobres e ainda a distribuição de alguns bens, um anel de ouro para uma prima e outra jóia para não sei quem e finalmente para a Maria Rodrigues, irmã do seu companheiro de sempre, a máquina de costura!!!

Hoje em dia nunca contemplaríamos os nossos electrodomésticos num testamento, pois sabemos que o prazo de vida deles é bem curto. Mas nesses tempos uma máquina de costura era efectivamente um bem precioso para um mulher.

Esta fotografia parece também documentar a participação da minha avô Adelaide nestas actividades femininas da vida de Vinhais, com um carácter sem dúvida cívico. Aliás, recordo-me de ouvir a minha mãe contar, de uma forma mais ou menos comprometida, pois era de esquerda, que minha avó Adelaide tinha recebido um prémio qualquer de Salazar. Não me me lembro em que termos ou em que contexto recebeu esse prémio, talvez no âmbito da Obra das Mães ou por ser progenitora de uma prole numerosa, mas o que é certo é que no arquivo da família apareceu uma carta da Presidência do Conselho de Ministros, com carimbo datado de 1959, endereçada à minha avô, contendo um cartão do Presidente, Doutor António de Oliveira Salazar, agradecendo os amáveis cumprimentos. Pena não se conhecer exactamente os antecedentes, que estiveram na origem deste cartão de Salazar.





Esta fotografia tirada provavelmente em Vinhais, no fim dos anos 20 ou início dos 30 ultrapassa o mero valor sentimental e documenta uma época onde a costura era uma actividade importante da vida de qualquer mulher, uma forma de economia doméstica e a ainda garantia de uma forma honesta de sustento, em caso de crise económica ou familiar.




9 comentários:

  1. Acho, ou melhor, tenho a certeza, que a minha mãe nunca recebeu nenhum comunicado emanado do gabinete do chefe do governo ... e ainda bem, pois não sei muito bem o que lhe diriam ...
    Manel

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  2. Adorei, Luís! Essas lembranças onde entram costuras e bordados eu adoro. Minha avó Ascenção Barosa, portuguesa de Leiria e vinda muito menina para o Brasil, fez o curso da Singer. Mas o gosto dela era pelos bordados, costurar só muito pouco. Quando ficou viúva, o que segurou a barra dela durante anos foi o bordado aprendido na Singer quando mocinha solteira.
    Curiosamente a máquina que eu me lembro quando criança não era uma Singer e sim, uma Vigorelli dos anos 50 e que só se acabou porque ficou sem uso depois que ela morreu e trataram de dar um fim.
    Anos depois eu comprei uma Pfaff porque não consigo ficar muito tempo sem ouvir o som do pedal, som que eu ouvi durante toda a minha infância e adolescência que vinha do vai e vem das pernas de minha avó no pedal.
    Eu ficava tardes inteiras olhando ela bordar, ajudava fazendo os debuxos, tirando riscos para o tecido e colando os panos para os bordados onde tinha aplicação.
    Do que ela fez só restou um pano de cobrir fogão, um coelho levando um carrinho cheio de cenouras.
    Muita saudade de minha avó.
    Tenho guardado comigo 3 livros de bordados da Singer e uma caixa com as amostras bordadas bem feitíssimas que ganhei de presente de uma senhora. Beleza!
    Um abraço com muitas linhas e agulhas ao som de máquina de pedal.

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    1. Caro Jorge.

      Sentia falta dos teus comentários. Eu também tenho publicado pouco, pois ando cheio de trabalho, embora nunca me faltem ideias.

      Obrigado por partilhares as tuas recordações deste mundo da costura. Com efeito, no passado uma mulher, que tivesse uma máquina de coser poderia garantir o seu sustento, na eventualidade de qualquer desgraça.

      Em Vinhais, creio que chegaram a existir três máquinas de costura, duas manuais e uma já eléctrica e aquele barulho característico, recorda-me sempre a infância. Ainda para mais, nós íamos para Vinhais, no Verão, época dos casamentos e o período em que minha tia e as empregadas tinham mais trabalho. E depois existia uma colecção de figurinos fantásticos dos anos 60 e 70. Havia também um cheiro característico, resultante da mistura de vários tecidos e do pó, que tudo aquilo levantava. Mas o cheiro, nunca se consegue transmitir.

      Um abraço lisboeta

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  3. Manel
    É sempre impressionante a falta de jeito da tua mãe para as prendas domésticas e os trabalhos manuais e o desembaraço e perfeição dos seus dois filhos.

    Esta fotografia sempre me encantou pelo mundo que nos revela e que já desapareceu. Por outro lado, recorda-me sempre a sala da costura em Vinhais, que era um sítio que nós os miúdos adoravámos. As empregadas das minhas tias, que eram amorosas, faziam roupa para os bonecos e chegaram mesmo a fazer-me um casal de bonecos de trapos. Esta fotografia enche-me de nostalgia.

    Quanto ao cartão do Salazar foi pena não o ter conseguido contextualizar. Conhecer exactamente porque é que ele aparece no espólio familiar. Creio que será por causa desse prémio, que a minha avó teve, como mãe de família. No entanto, um dos seus filhos, esteve preso pela PIDE no Porto e talvez esse cartão pudesse ter aparecido no contexto de um apelo que a minha avó fez para o libertar. Mas tenho ideia, que o meu tio esteve preso nos anos 60. Fica o mistério.

    Um abraço


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  4. Acabei de salvar as fotos do final do curso Singer. Tenho dois amigos loucos por tudo que é Singer. Breve postarei no Antiguinho, ok?
    Um abraço.
    Sim, os tecidos tinham uma goma cheirosa, era outra coisa o algodão daquela época. E o cheiro do óleo, e as latas lindas. Outro dia me perguntaram se eu não tinha uma lata de óleo antigo...kkk infelizmente, não.

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  5. É interessante. Eu também me interessei por moda e cheguei a fazer o curso do IADE, mas nunca exerci a profissão de designer de moda. Afastei-me do assunto, mas há uns dias tenho andado a pensar que poderia ser útil fazer um curso de costura. Bom dia!

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    1. Margarida

      Desculpe só agora lhe responder ao seu comentário, que ficou aqui esquecido.

      Nunca aprendi a costurar, mas como durante anos mandei fazer roupa, tenho uma certa noção dos cortes e dos efeitos que se conseguem com um casaco ou umas calças concebidas por nós. Ainda hoje tenho um certo gosto por um vestuário mais personalizado,

      Um abraço

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  6. Boa tarde
    Tenho seguido o seu blog e pedia que me ajudasse numa coisa. Tenho uma terrina redonda muito antiga ou muito velha, toda gateada e ficava muito grata se me ajudasse a identificar. Não sei como posso enviar foto

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    1. Pode enviar fotos para o meu e-mail pessoal. montalvao.luis@gmail.com

      Um abraço

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