domingo, 14 de dezembro de 2014

Uma estampa com 413 anos

a Vita et miracula S.P. Dominici praedicatorii ordinis primi institutoris
Apesar de imaginar que os seguidores deste bolg já devem andar fartos da beatice toda que tenho postado ultimamente, hoje volto à carga com mais uma estampa religiosa. Mas este assunto de identificar velhas folhas de papel arrancadas de livros é para mim um conjunto de charadas, que me dão um prazer louco resolver e para as quais uso a minha experiência profissional de pesquisa em catálogos de bibliotecas europeias e americanas.

O canivet de S. Filipe o Apóstolo, que mostrei a semana passada, comprei-o  juntamente com uma estampa representando uma Santa Bárbara, assinada por um tal C. Galle e percebi desde logo que não era portuguesa, pois parecendo que não vou conhecendo o estilo dos gravadores nacionais e por consequente parti para o google, fazendo uma pesquisa combinada por "C. Galle" "engraving" e "S. Barbara". Rapidamente percebi que se devia tratar de uma obra de um tal Cornelius Galle, o antigo, (1576-1650), um senhor natural da cidade Anvers, ou Antuérpia como é conhecida a cidade em Português e que pertencia a uma dinastia de gravadores flamengos, activos no século XVII.
À medida que ia virando as páginas do livro digitalizado, comecei a achar o que reconhecia o estilo daquelas estampas, bem com o tipo de letra das legendas

Com estes dados continuei a fazer mais pesquisas na net e fui ter a um desses repositórios digitais, o http://catalog.hathitrust.org/Record/010658048, mais propriamente a uma obra dos inícios do Séc. XVII, a Vita et miracula S.P. Dominici praedicatorii ordinis primi institutoris, que foi integralmente digitalizada pela Universidade da Califórnia. Como na descrição sumária mencionavam-se gravuras da família Galle, resolvi encher-me de pachorra e folhear a obra toda, pois podia ser que lá no meio houvesse uma Santa Bárbara qualquer. À medida que ia virando as páginas do livro digitalizado, comecei a achar o que reconhecia o estilo daquelas estampas, bem com o tipo de letra das legendas e pensei que se talvez tivesse sido daquela obra, que foi recortada a minha gravura, representando o São Domingos de Gusmão, a ser perturbado nos seus estudos, por uns diabozinhos antipáticos. E realmente lá para o final do livro, que é uma obra, quase sem texto e com muitas imagens, encontro uma estampa, igualita ao meu São Domingos de Gusmão. Foi uma enorme surpresa, pois apesar de em 2011 ter conseguido identificar o santo e o tema da gravura, nunca tinha chegado a descortinar a que livro ela tinha pertencido.
A estampa igual à minha
Se estava desvendado o mistério de que livro provinha a minha estampa, a ficha do repositório digital, http://catalog.hathitrust.org/Record/010658048, não atribuía uma data certa para a publicação da obra. Indicava que o livro teria sido editado entre 1640 e 1659. Não fiquei contente com estes dados e resolvi e dar uma volta a outras paragens, nomeadamente à Biblioteca Nacional de França, que dava o livro como publicado em 1611 e ainda dei um salto à rede nacional das bibliotecas italianas, onde encontrei outro exemplar, cujo registo catalográfico, confirmou o ano de 1611 como data de publicação e ainda discriminava claramente os autores da obra. As legendas escreveu-as o Senhor Jean Nys, Theodor Galle (1751-1633) imprimiu e gravou as estampas, segundo um desenho de Pieter Jode (1570-1634), outro artista também natural da Flandres.

Em suma, esta minha estampa representando São Domingos de Gusmão é flamenga e datada do ano 1611, e portanto deve ser sem dúvida a gravura mais antiga da minha colecção, pois completou este ano exactamente 413 anos.

19 comentários:

  1. Luís
    Vejo que tem andado de novo embrenhado num empolgante trabalho de detetive. E como se movimenta bem nesses meandros da pesquisa bibliográfica, real e virtual! Não é de admirar dada a sua vasta experiência nesta área, mas eu fico sempre deslumbrada com as suas descobertas.
    Então conta já 413 anos o seu S. Domingos de Gusmão? Assim vai conseguindo completar o BI dos seus "santinhos" e acrescentar valor a esta peculiar coleção que eu tanto aprecio!
    E agora tenho que ir ver a "Visita Guiada" :)
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Obrigado pelo seu comentário. De facto fiquei muito contente por ter conseguido finalmente terminar o processo de identificação desta estampa que está comigo há pelos menos uns 14 anos.

      Foi uma descoberta quase por acaso, mas significou uma pequena vitória. São aliás pequenos e insignificantes acontecimentos como este que transformam um dia cinzento em qualquer coisa de especial e nos melhoram a disposição.

      Terei muito prazer em recebe-la em minha casa. Talvez possa ficar é desapontada porque tudo tem uma escala de miniatura. Tenho é que fazer uma limpeza antes, porque ao contrário do Manel, que tem tudo imaculado, na minha casa o pó vai-se acumulando com alguma liberdade.

      Bjos

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    2. Meu caro Luís,
      Ri-me sozinha com a interpretação que deu às minhas últimas palavras. Eu estava a referir-me mesmo ao programa "Visita Guiada" que dá à segunda-feira à noite na RTP 2... :)
      E até já tive visita guiada à sua casa em programas de televisão, por isso...

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    3. Já percebi o equívoco.

      Em todo o caso terei muito prazer em recebe-la a si e ao seu marido na minha casa.

      Bjos

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    4. Muito obrigada, Luís. Quando surgir a oportunidade, teremos muito gosto!

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  2. Luisa

    Obrigado. De facto 400 anos para um pedaço de papel, são qualquer coisa de especial.

    Um abraço

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  3. Eu acho que mesmo tratando-se de beatices, como diz o Luís, não consegue saturar os seus seguidores pois o seu trabalho de pesquisa é fantástico. Chegar à origem desta estampa com 413 anos é obra!!
    Beijos

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    1. Maria Paula

      Muito obrigado pelas palavras encorajadoras.

      Julgo que tenho uma certa necessidade de partilhar estas minhas pesquisas com outras pessoas. Também é verdade que estes trabalhos de identificação de gravuras só são possíveis porque muitas bibliotecas por esse mundo fora digitalizaram numa escala colossal as suas colecções de livro antigo e disponibilizaram-nas on-line. No fundo a investigação começa agora a ser acessível ao cidadão comum a partir do seu computador pessoal.

      Um abraço

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  4. É essa a verdadeira diferença, pois antes desta era cibernética e virtual, seria praticamente impossível ao normal dos cidadãos fazer tal pesquisa, sentado à sua mesa de trabalho.
    Normalmente teria de se especializar, quiçá viajar, visitar bibliotecas, conhecer pessoas do ramo que lhe indicassem leituras e pistas possíveis, enfim, um sem número de tarefas que, para uma pessoa com um trabalho e um de horário de função pública, seria absolutamente impensável.
    Fico feliz porque agora podes fazer esta pesquisa sem sair da tua mesa, e vais descobrindo coisas notáveis sobre coisas que há alguns tempos atrás nos eram vedadas.
    Quantas vezes pensei que gostaria de saber algo mais sobre esta ou aquela imagem, e agora ... está ao alcance de um dedo.
    Não qualquer dedo, pois o meu não serve lá para muito, mas àqueles que já dominam a arte da pesquisa.
    Ainda fico admirado como um bocado de papel com quase meio milénio ainda existe e em bom estado, o que é realmente notável!
    Manel

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    1. Manel

      Creio que a digitalização massiva das colecções das bibliotecas e arquivos realizada nos últimos anos tem sido um passo decisivo na democratização da cultura.

      De facto a minha experiência profissional dá-me algum há vontade nesta área, mas o que faço resume-se a pesquisas combinadas no Google em várias línguas, português, francês, inglês ou espanhol e claro alguma paciência.

      A sobrevivência destas estampas também se deve à excelente qualidade do papel antigo.

      Um abraço

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  5. Caro Luis

    Sei o que é ter nas mãos uma gravura centenária...é uma responsabilidade e uma ligação à mesma muito forte e intima....as estampas eram a banda desenhada da época para quem não sabia ler..e eram muitos..infelizmente...governava-se melhor com ignorância do povo...e hoje ainda somos assim..Tenho em mãos 2 livros de gravuras, um do Kussell Melchior(Augsburg) 1622-1683 (57 gravuras )e outro do Visscher (Cornelis) 1620-1670 Amsterdam (29 gravuras) tremem-me as mãos sempre que os desfolho...é um pequeno tesouro que simplesmente me foi oferecido ...
    Bom trabalho de pesquisa e desenvolvimento como sempre.
    Um abraço
    Vitor Pires

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    1. Caro Vítor Pires

      Conheço as estampas de Augsburg. São lindíssimas e tiveram no século XVIII um papel importante na difusão dos ornamentos rocaille na arte portuguesa. Tenho uma dessas estampas de Augsburg representado S. Agostinho de Hipona, que já aqui mostrei.

      Um abraço e muito obrigado pelas palavras simpáticas

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  6. Olá, Luís, vc já postou a estampa de sta. bárbara? Gostaria de ver.Tenho uma de Leiber ou da Leiber, aliás, nunca sei se o nome é uma casa impressora ou alguém que assinava Leiber. Se puder, tire minha dúvida. Abraços.
    Em tempo: adoro os santos já sem devoção, esquecidos, que ninguém mais sabe que existiram, que ninguém acende mais uma vela...
    Outro dia li a vida de sta. cristina, a que voava...kkkkk Será que existem devotos de sta. cristina por aí??? A santa até que é bem atual, muito doida por aí à voar. kkk

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    1. Jorge

      A Santa Bárbara ficará para outra altura. Não posso mostrar tudo de uma única vez. Também ainda não estou ainda inteiramente certo da sua data, pois houve reimpressões sucessivas das estampas religiosas de Cornelius Galle. Terei que pesquisar mais um pouco, embora me pareça que será do XVII ou pelo menos do XVIII.

      Quanto ao Leiber pareceu-me que será o nome de uma casa impressora de estampas religiosas dos finais do XIX inícios do XX, mas só vendo uma imagem da estampa.

      Também acho muita graça a estes relatos da vida dos santos, que fazem muitas vezes eco de antigas tradições pagãs. Como sabe, quando o Cristianismo começou a evangelização da Europa, sobretudo nas áreas rurais, os padres e monges baptizaram antigos santuários de divindades locais e os santos católicos adquiriram com os tempo as características dos antigos deuses.

      No Brasil esse fenómeno não é visível, mas aqui na velha Europa, sobretudo nas regiões rurais a continuidade entre as divindades ancestrais e os cultos católicos é muito notória, quer através das lendas, quer através dos locais de culto, pois as igrejas cristãs foram erguidas em antigos santuários pagãos ou sobre velhas mesquitas islâmicas, conforme tem demonstrado escavações arqueológicas.

      Um abraço

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  7. Aguardamos com vivo entusiasmo seu post de Natal.

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    1. Caro Anónimo ou Anónima

      Bem, sabe que eu não sou muito dado a efemérides ou à redacção de textos alusivos a quadras festivas. Desde a instrução primária, que funciono mal com temas impostos. Normalmente, o que faço, escrevo ou desenho sai-me melhor se funcionar com um tema livre.

      Em todo o caso, tenho já preparado um post novo, que muito embora não seja um tema natalício, servirá como prenda aqueles que tem a pachorra de me ler.

      Um abraço

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  8. Luís,
    São uma maravilha estes seus registos pela informação que nos dá, pelo tempo que têm e pela beleza do trabalho impresso.
    Um abraço e Feliz Natal. :))

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