terça-feira, 13 de maio de 2014

O Rei David tocando harpa

Há uns anos encontrei esta pequena estampa representando o Rei David tocando harpa. Comprei-a de imediato, pois David é uma daquelas personagens históricas com quais sempre simpatizei.  Enfim, para quem não tenha feito a catequese, David viveu mais ou menos por volta do século X antes de Cristo e era um simples pastor que ajudou na luta contra os filisteus e conseguiu derrotar o gigante Golias com o auxílio de uma simples funda. Foi o primeiro soberano de um verdadeiro estado de Israel, ao unificar os reinos de Judá e Israel e foi também esta figura bíblica, que teve uma existência histórica, quem transformou Jerusalém pela primeira vez na capital de um estado judaico. Terá sido também um homem culto, um tocador de harpa e um poeta, já que muitos dos salmos bíblicos lhe são atribuídos.

BARBIERI Giovanni Francesco. Musée du Louvre département des Arts graphiques. Joconde
Para a humanidade, David tornou-se um símbolo de que os mais fracos podem vencer os mais fortes. Claro, é também uma figura absolutamente emblemática para o povo judeu, que lutou no gueto de Varsóvia quase sem armas contra os nazis, sobreviveu ao Holocausto e depois de 1948, contra vizinhos poderosos, fundou um estado moderno, com capital em Jerusalém. Mas David é também o paradigma do soberano culto e ilustrado, que todos nós ambicionamos ter por governante, embora raramente o consigamos.

Daniele DA VOLTERRA.  David tuant Goliath. Musée national du château de Fontainebleau. Foto Joconde

Depois do acto desta compra feita por motivos afectivos veio a pergunta sacramental, de que livro foi retirada esta estampa?

Como a gravura não tem data, nome do desenhador, gravador ou impressor não tinha grandes hipóteses de descobrir de onde veio. A única pista de que disponha, era que no verso, impresso em latim, existia no rodapé a abreviatura PSALM. Como sou bibliotecário e já tratei vários fundos de livros dos séculos XVI, XVII e XVIII tinha uma vaga ideia de já ter visto algures esta representação em livros religiosos. Sabia que não deveria ter sido numa Bíblia, o que à partida até seria mais lógico, mas, como toda a gente sabe, ao contrário dos protestantes, a maioria dos católicos nunca foram muito dados ler a Bíblia, a qual sempre preteriram em favor das vidas dos santos, livros piedosos e de orações.

Tinha a ideia que a teria visto num daqueles livros de oração ou liturgia, mas são tantos! Existem os missais, os saltérios, os livros de orações, os ofícios divinos, os breviários, os flos sanctorum  e sabe-se lá que mais e depois a minha cultura religiosa é meramente superficial.

Resolvi então fazer a pesquisa pelo início e procurar no google por Bíblia / Salmos, as categorias onde uma estampa deste teor se poderia encaixar. Descobri que na Igreja Católica, os 150 salmos formam o núcleo da oração quotidiana, a chamada Liturgia das Horas, também conhecida por Ofício Divino. Consiste basicamente na oração quotidiana em diversos momentos do dia, através de Salmos e cânticos, da leitura de passagens bíblicas e da elevação de preces a Deus. O livro onde se contem estes textos necessários para o Ofício Divino designa-se por Breviário. O Breviarium Romanum é uma reunião num único documento de vários livros distintos para a celebração do ofício Divino: o Saltério (para os salmos), o Antifonário (para as antífonas), o Hinário (para os hinos), o Leccionário (para as leituras).

De todos estes livros, achei que a iconografia desta estampa se encaixava num Breviário ou no Saltério. Faltava agora verificar se essa intuição correspondia à verdade. Fiz umas quantas pesquisas na Biblioteca Nacional, mas não encontrei breviários digitalizados do século XVIII, período em que presumo, que esta estampa tenha sido impressa. 

Breviarium romanum, ex Decr. Sacrosancti Conc. Trid. Restitutum; S. Pii V. Pontif. Maximi jussu editum; Clementis VIII. et Urbani VIII auctoritate recognitum.... - Olisipone : ex Typographia Regia, 1800. MNAA
Depois, lembrei-me que na biblioteca onde trabalho há uns quantos breviários dos finais do séc. XVIII, inícios do XX. Fiz uma pausa no serviço e em vez de comer um kit-kat fui espreita-los e de facto encontrei um breviário romano, editado em Lisboa, na Tipografia Régia, em 1800, com uma estampa com algumas semelhanças com à minha, antecedendo o capítulo Psalterium

Breviarium romanum, ex Decr. Sacrosancti Conc. Trid. Restitutum; S. Pii V. Pontif. Maximi jussu editum; Clementis VIII. et Urbani VIII auctoritate recognitum.... - Olisipone : ex Typographia Regia, 1800. MNAA

Em suma, confirmei a minha impressão que esta estampa com o rei David ilustrava um livro de ofício divino, mais exactamente um Breviário romano, da qual ela foi certamente retirada.

10 comentários:

  1. Caro Luís,

    Pelo que aqui escreveu, cheguei à conclusão que, a minha catequese foi mais fraca que a sua..
    Na catequese dos meus tempos da 1ª Classe, apenas me ensinaram rezas e mais rezas, e nem sequer se detinham com episódios da vida de Cristo, muito menos do Rei David.
    A sua estampa, como sempre, é um mimo.Ainda está para vir aquele dia em que eu não goste das peças ou estampas que adquire.
    Mas, de facto, conseguir saber exactamente qual o livro a que essa pertence há-de ser pior que encontrar agulha em palheiro! Ter chegado à conclusão a que chegou, já foi uma seta em África! Mas às vezes, num daqueles dias de sorte, quem sabe?

    Bjs

    Alexandra Roldão

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  2. Cara Alexandra

    Confesso que na catequese também não aprendi nada e muito menos nas aulas de religião e moral. Tenho uma vaga ideia de tudo aquilo ser uma chatice medonha. Julgo que não consegui decorar uma única oração. Ainda hoje a pior coisa que me podem fazer é obrigarem-me a assistir a uma missa.

    Claro, os meus pais educaram-me na fé católica e assimilei muitos dos princípios do Cristianismo. Apesar de ateu, tenho uma certa espiritualidade herdada do catolicismo.

    O meus fracos conhecimentos de religião adquiri-os por via do estudo da história e sobretudo da arte.

    Quanto às antiguidades e velharias temos que ter paciência ir descobrindo aos poucos aquilo que elas são. Por isso, muitas vezes volto a escrever sobre as mesmas peças, pois encontro mais dados na internet, em livros ou museus.

    Quanto a esta estampa, sei que um dia me vai passar um Breviário pela mão, em papel ou em formato digital e vou encontrar uma estampa igualita à minha.

    Bjos

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  3. Tal como a Alexandra, a catequese a que fui, um único dia da minha vida, assustou-me de morte.
    Habitava num local pequeno, rural, perdido nas planuras do sul de Moçambique, onde existia um único pároco, que, de acordo com o que me lembro, só deveria vir de vez em quando, pois raro me recordo colocar-lhe a vista em cima. Também não me fazia falta!
    No entanto, recordo de igual forma, que havia uma "irmãzinha", magra, de nariz adunco, baixa, daquelas que utilizavam uma capelina branca com asas esvoaçantes, em torno do rosto e cabeça, com hábito branco, de tal forma que me perguntava sempre como é que aquela mulher conseguia manter-se sempre imaculada, quando eu, amiúde, apanhava tareias porque nunca conseguia chegar limpo à hora de almoço!
    E era esta religiosa que ministrava a catequese. Ainda me pergunto porque carga de água os meus pais me levaram lá um dia, era eu um pirralho, pois nenhum deles era religioso, no sentido católico do termo, mas, sendo despejado no adro da igreja, não me restou mais que ser arrastado por aquela ave carraceira, a contragosto.
    A bendita mulher assustou-me de morte quando me atirou que eu iria arder todo o dia nas penas do Inferno, porque era mau e fazia o que o Jesus não queria (julgo que a razão para tal sanha deve ter sido o facto de estar distraído, a pensar em qualquer outra coisa).
    Fiquei siderado e lembro-me de ir a chorar para casa, levado a reboque pela tal religiosa, sempre na iminência de ser lançado nas chamas a qualquer momento.
    Claro que os meus pais, a partir daquele dia, nem me levaram, nem tão pouco me deixaram ir mais à catequese!
    Claro que passou o medo do fogo, mas fiquei sempre à espera que me levassem para o Inferno.
    Em jovem, frequentei a Religião e Moral, na altura obrigatória, onde nos industriavam sobre as diversas rezas, as virtudes teologais, os pecados mortais, as cores litúrgicas, o significado da missa, e não sei que mais.
    Claro que, a conselho da minha mãe, uma anti católica ferrenha, fazia de conta que aprendia, pois tinha de fazer testes (!!!), no entanto, a minha nota era sempre das piores, mas em casa ... nada me diziam ... era um descanso!
    Julgo que foi das primeiras vezes que me lembro de ter copiado uma reza qualquer, que, sabia, era sempre pedida, para que a minha nota não fosse tão má.
    Hoje os jovens, na Religião, discutem a validez das práticas do aborto, o sexo antes do casamento, a validade de outras confissões religiosas e outros tópicos que até nem me parecem tão maus ... como os tempos mudaram!

    Do rei David ... nada! Só soube muito mais tarde, quando finalmente comecei a perceber algo de história e da arte, e, nesta altura, também este personagem bíblico de transformou em alguém com quem simpatizei.
    Perante o David da Galeria dos Uffizi ... bem, fiquei completamente rendido, pois não é para menos, ficar-se boquiaberto perante tamanho génio criativo! E ele, simples como todos os génios, disse que no bloco de mármore já estava tudo, tinha-se limitado a retirar-lhe o supérfluo!
    Manel

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    1. Manel

      Claro, colocar aqui no blog uma imagem do David do Miguel Ângelo ficaria sempre bem. Aquela estátua é dos momentos sublimes da arte, mas se colocasse aqui uma imagem dela, a minha pobre estampa ficaria completamente apagada. Este David tocando harpa pertenceria a uma edição mais ou menos barata de um Breviário, que um convento ou mosteiro de dimensões e posses modestas poderia adquirir. A fotografia aqui colocada corresponde mais ou menos às suas dimensões reais. Seria uma espécie de breviário de bolso, se me perdoas o anacronismo.

      A minha irmã, que foi educada num colégio de freiras, passou a meninice toda com um medo desgraçado do fim do mundo, à conta das tolices que as manas lhe enfiaram na cabeça.

      Um abraço

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  4. Caro Manel,

    Fiquei rendida a estas suas memórias de infância passados em Moçambique!
    O curioso é que, (embora geograficamente muito distantes) no que à catequese diz respeito, temos lembranças muito idênticas.
    Tal como o Manel, frequentei a catequese por curto espaço de tempo...
    Aqui no burgo, também eram as freiras quem tinha essa função...mas a vocação pedagógica das ditas era zero...
    Recordo claramente, os Sábados ao fim da manhã (ao tempo havia aulas da parte da manhã) em que seguíamos pelo passeio fora, em fila indiana , de braços cruzados, até à esquina seguinte, aonde se entrava para outra zona do mesmo edifício, pertença da paróquia, e aonde se subia uma enorme escadaria de madeira que desembocava num corredor sem fim, todo ladeado por portas e mais portas, cada uma delas era uma divisão. Era nesses quartos com janela para um laranjal que as irmãs ministravam a "doutrina"...
    Ladainhas e mais ladainhas, até que um dia me enchi de coragem e disse para a minha mãe que as irmãs não me ensinavam nada! Gostava de catequese, apenas e só, quando era dada pelo Padre Manuel, e que em casa aprendia mais do que lá...
    E foi assim que me vi livre daquele martírio!!!
    Mais tarde, na 4ªClasse, foi a vez da então nossa Professora, a D. Isaltina dos Anjos Cardoso, ficar siderada ao verificar que nenhuma das suas 42 alunas tinha feiro a 1ª Comunhão...
    Todas sabíamos a razão, mas ninguém abriu a boca, pelo que a Professora,sendo senhora muito religiosa resolveu pedir autorização ao Padre da altura e, com o seu consentimento preparou-nos para a 1ª Comunhão, a qual se concretizou em tempos conturbados de pós Revolução do 25 de Abril .
    Actualmente continuo de costas viradas para as ladainhas,muito embora seja uma acérrima defensora de todo o património artístico que as nossas igrejas encerram.
    Considero-me Cristã, mas não Católica...enfim..este tema dava pano para mangas, e por hoje já me alonguei em demasia ..

    Um abraço

    Alexandra

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    1. Alexandra

      Percebo o que quer dizer. No fundo acerta as suas contas directamente com Deus sem necessitar de intermediários ou mediadores.

      Não tenho qualquer crença, mas a minha cultura ou mesmo a minha ética formou-se no catolicismo e depois, tal como a Alexandra, tenho uma grande paixão pela arte sacra.

      Bjos

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  5. Luís,
    Um registo maravilhoso que me encanta muitíssimo.
    Achei graça pela coincidência com um vídeo que escolhi.
    O seu David é belo para o propósito a que serviu e serve.
    Obrigada por esta partilha.
    Abraço. :))

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  6. Ana

    Julgo que temos uma certa tendência por nos rodearmos de fotografias de pessoas de que gostamos ou de imagens de personagens históricos com os quais simpatizamos. Claro, nem sempre é possível concretizar essa ambição. Não encontramos à mão de semear nos mercados de velharias estampas, pinturas ou esculturas a bom preço daqueles heróis da história, que desde pequeninos gostamos.

    O Rei David foi das poucas figuras da catequese com que sempre simpatizei. Tudo aquilo que simboliza vai de encontro aos meus valores.

    Um abraço

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  7. Ilustre Luis,

    Estas gravuras retiradas de livros evocam episódios, que também são recortes de vida de sua história e de tantos.
    Mas não pensemos que tudo tenha sido vão ou mesquinho em nossas Catequeses. E além disso, se retomarmos outros diversos setores de nossa formação, veremos que alguns métodos, mesmo em ambientes dissociados da Religião (como era o caso aqui da Educação do Estado nos anos 70) para além de chatices e amedrontadores, constituíam até torturas..Até físicas. Ajoelhar em milho...ficar de pé voltado para a parede...
    Mas prefiro ficar com as mãos da mesma professora que segurava junto a minha e o lápis nas primeiras linhas... Só não tinha maçã sobre a mesa. Aliás, nem temos maçãs (acho que no Sul tem).

    Quanto a Davi, embora seja o grande tipo de Cristo da economia primitiva, não sinto logo uma simpatia por ele. O episódio que mesclou tantos crimes, traições e pecados que antecedeu e motivou o Salmo 50 (até hoje, Penitencial por excelência) o marcou profunda e negativante... Como homem de fé ou descrente, nobre ou plebeu.

    Quanto à sua gravura é incrível a semelhança com a do livro, mesmo com a inversão do sentido. O que mais difere é o lugar da partitura (mas ele não estava compondo ainda?).

    De uns tempos para cá também passei a interessar-me por gravuras. Pelos temas primeiramente pois não tenho bastante cultura nessa Arte. E também ressalvo que aqui não te imito, embora seja um grande iluminador destas e de tantas outras velharias...

    Ainda estou com um post de uma gravura da S. Família que chegou recentemente.
    Atraiu até um comentário do raríssimo e ilustre Manel (que disse parecer um heterônimo seu...) Mas não pela gravura (prefere as do XVIII) e sim por um oratoriozinho mineiro que abriga uma S. Família baiana. Acabei recortando para emoldurar, mas penso que seja um papel simples, belo pelo tema, se souber qualquer coisa ou quiser dizer o que acha, seria um prazer. Estou para postar uma outra gravura que chegou (do XVIII). É como o Manel disse, ultimamente estão esquecidas... Ainda bem.

    Um abração.

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  8. Amarildo

    Os impressores e gravadores copiavam muito as gravuras uns dos outros. Já apanhei um caso em que uma estampa é o negativo da outra http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2013/01/uma-ultima-ceia-de-francois-poilly-1622.html.

    Em outros casos, os impressores/ gravadores usavam a mesma imagem mas alteravam a cercadura, colocando uns ornatos mais à moda.

    No fundo, há uma sucessão de cópias sobre cópias, até ao ponto em que a a cópia já está completamente diferente do modelo original.

    Quanto à catequese, era de facto uma chatice. Só me recordo com carinho de um catequista que era muito simpático e adorava os meus desenhos, que representavam a Nossa Senhora vestida à moda do início dos anos 70, com cabelos escorridos soltos, túnicas e muitos colares e pulseiras. Enfim, uma verdadeira hippie.

    Um abraço

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