Já muitas vezes contei aqui no blog que descendo de uma relação amorosa entre um padre e uma fidalga, os meus trisavós, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935). Ela era uma mulher bonita de uma antiga família das cercanias de Chaves e ele de Montalegre, de meios relativamente obscuros, que construiu uma carreira sólida de pregador, formou-se já homem maduro em teologia e direito, foi coleccionador de objectos arqueológicos, numismata e ainda colaborador assíduo da imprensa flaviense. Desta relação nasceram dois filhos o José Maria, meu bisavô e o João, que morreu bebé.
Recentemente, depois da morte do meu pai, descobri que o espólio da família se tinha conservado em grande parte e que não tinha desaparecido com a venda da biblioteca do Solar da família Montalvão, aquela casa, que foi um dos cenários desta história amorosa. São centenas de cartas, documentos notariais, recortes de imprensa e manuscritos, que acondicionei em 23 caixas francesas debaixo de uma cama.
Iniciei o inventário da primeira caixa e a leitura das cartas de quem viveu há mais de 100 ou 150 anos, revela e faz renascer um mundo morto. Normalmente, temos uma ideia abstracta dos nossos antepassados mais remotos, formada a partir dos secos assentos paroquiais de baptismo, casamento ou óbito, de recortes de imprensa, de nomeações no boletim oficial do governo, ou ainda de histórias que sobreviveram na tradição familiar. E temos tendência a moldar essa ideia abstracta à nossa própria personalidade, atribuindo a esses antepassados qualidades, que a nossa imaginação romântica aspira para eles. Sempre imaginei que estes meus trisavôs tivessem vivido uma intensa paixão camiliana, desafiando os costumes do seu tempo como o fizeram Ana Plácido e Camilo Castelo Branco.
As caixas francesas |
Porém ao iniciar a leitura destas cartas, escritas entre 1876 e 1900, o que me apareceu, foi a verdadeira personalidade destas pessoas, o seu discurso, as suas preocupações quotidianas como se estivessem ainda vivos. É quase como que a sua voz tivesse sobrevivido ao tempo e o esquecimento.
Por enquanto, ainda só localizei a correspondência, que o padre Liberal Sampaio endereçou à minha trisavó, as cartas escritas por ela, ainda não apareceram, mas ainda me encontro a tratar a primeira caixa de um conjunto de 23.
Praia de banhos: Póvoa de Varzim, por Marques de Oliveira, 1888. Colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea |
Decidi começar por escrever aqui no blog sobre um conjunto de quatro cartas, escritas por Liberal Sampaio, entre 1876 e 1877, que correspondem a duas temporadas, em que a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão esteve a banhos na Póvoa de Varzim. Em primeiro lugar é muito curioso observar as datas, as duas primeiras cartas são de Setembro de 1876, respectivamente dos dias 14 e 24 e outras duas de 1877, de 15 e 10 de Outubro. Nesta época, em que a fidalguia e a boa burguesia já faziam a praia, a época mais recomendada eram os meses de Setembro e Outubro. Para nós, nos dias de hoje, que debandamos em massa para o Algarve no mês de Agosto para assarmos ao calor, sentimos um arrepio com a ideia de frequentar uma praia com águas frias como a Póvoa, em Setembro ou Outubro. Mas neste último quartel do século XIX, ir a banhos tem uma função sobretudo terapêutica, que os médicos recomendavam, que se fizesse nos meses mais frescos do Verão. E com efeito, em Setembro e Outubro, a Povoa de Varzim, recebia já entre 20 mil a trinta mil pessoas, a maioria oriunda do Porto, do Minho e de Trás-os-Montes.
A carta de 14 de Setembro de 1876 |
Como o meu trisavô era um homem informado, que lia os jornais e estava certamente a par do que os médicos preconizavam para os banhistas, na primeira carta dá uma série de conselhos a Maria do Espírito Santo, para melhor aproveitar os banhos. Recomendações essas que são para nós contemporâneos, um retrato vivo do quotidiano dos vilegiadores nesta década de 1870. Aconselha-a a tomar apenas um banho por dia e a seguir descansar e dormir. Devia almoçar uns bons bifes frescos, com um bom caldo de galinha ou vaca e a competente pinga do melhor, em seguida, distrair-se para a praia, procurando estar à sombra, e bem calçada de modos a que os pés não lhe arrefeçam. Depois sugere que se recolha e divirta-se em casa até ao Jantar, que deve ser de comidas substanciais e variadas e pouca ou nenhuma fruta. Acabado o jantar durma, depois merende alguma coisa, vá para o paredão ou outro lugar qualquer onde se divirta, na volta ceie um caldinho de galinha ou carne, e antes de se deitar passei um pouco em casa ou fora”
A carta de 14 de Setembro de 1876 |
Estes horários parecem-nos um pouco estranhos, mas nesta época, pelo menos nos meios mais provincianos, as horas das refeições e os nomes que lhes davam são diferentes dos de hoje. O meu pai ainda se recordava desses horários na casa de Outeiro Seco, onde a Maria do Espírito Santo foi criada e que descreveu da seguinte forma: às 7.30, o mata-bicho; às 10.00 o almoço; às 12.00 o jantar; às 17 a merenda e a ceia às 22/23 horas. Por essa razão, a minha trisavô iria dormir depois do jantar (meio dia), merendar (17.00) e depois sairia para se passear no paredão entre as 17.30 e as 19.30 e às 10 da noite estaria a em casa a comer a ceia.
Embora o meu trisavô fosse padre, não era de todo um beato e escrevia-lhe passei, divirta-se, distraia-se com a praia, com os leilões, com o teatro, com tudo aquilo que julgar honesto e conducente ao aumento da sua saúde. Nesta década de 70 do Século XIX, sobretudo depois de 1875, com o a linha e de caminho de ferro a chegar à vila, a Póvoa de Varzim era uma terra cheia de animação e divertimentos, frequentada pela boa sociedade nortenha. Mas bem entendido, a Maria do Espírito Santo estava acompanhada por uma Senhora, pois uma jovem fidalga nesta época não andava por esse mundo fora sozinha.
A carta de 14 de Setembro de 1876 |
Também é curioso observar nestas cartas, a intimidade que já existia entre o meu trisavô padre e a Maria do Espírito Santo. Não sei se já seriam amantes nesta época, pois o primeiro filho, destes meus antepassados só viria a nascer a 19 de Maio de 1878, mas sem dúvida já estavam muito próximos. Talvez na segunda temporada de banhos da Maria do Espírito Santo em Outubro de 1877 já estivesse grávida. Em todo o caso, o José Rodrigues Liberal Sampaio trata-a sempre muito respeitosamente por V. Exa. ou minha Senhora. Aliás, até á morte da sua amada em 1902 nunca a tratará por tu nas cartas.
Igualmente, pelas notícias, que Liberal Sampaio dá de Outeiro Seco, percebemos que é intimo da família Montalvão e presença habitual da casa. Descreve ainda como correu bem a festa da Sra. da Azinheira, a padroeira de Outeiro Seco, das pessoas das relações de ambos que colaboram na organização da desta. “De Vila Verde, só veio a Henriquetinha , que está com a Maria Teresa e para adornar a Igreja trabalham muito a Maria Inácia, a Maria Augusta, a Cândida e principalmente a Bárbara”. Embora estes meus trisavôs não fossem beatos, não deixavam de ser devotos e a festa da Senhora da Azinheira, que congregava toda a comunidade, era um assunto relevante numa carta. Aliás, quando mais tarde o filho de ambos nascer, a Nossa Senhora da Azinheira será a madrinha da criança.
Estas cartas não contem revelações espampanantes, mas pela mão dos próprios personagens, proporcionam-nos um retrato detalhado do quotidiano de quem viveu há quase 150 anos. Numa época em que não havia telefone, a carta era o principal meio de comunicação e as pessoas reservavam uma parte importante do seu tempo para actualizarem a correspondência, respondendo a cartas de familiares amigos, narrando o seu quotidiano, dando notícias ou ainda para tratarem de negócios. São documentos que permitem uma ideia mais justa e isenta de preconceitos, dos nossos antepassados e de um tempo que já passou.
Alguma bibliografia consultada:
Contributos para uma história do ir à praia em Portugal / Pedro Alexandre Guerreiro Martins. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2011. https://run.unl.pt/handle/10362/7093
A epistolografia é dos meus géneros prediletos. Porque é a partir desta leitura que se pode observar o dia-a-dia de pessoas, sejam elas comuns ou não.
ResponderEliminarAgrada-me ler as coisas banais diárias, o que preocupava na verdade as pessoas no seu quotidiano. Conhece-se melhor a pessoa, ou pelo menos, parte substancial dela.
Ainda bem que tens esta hipótese de recriar a vida desta pessoas desaparecidas há mais de um século. Penso que é uma visita ao passado, só possível através deste tipo de documentos.
Manel
Manel
EliminarEstas cartas são ricas lançam tantas pistas, tantas perguntas, que é difícil escolher uma via para escrever sobre elas. Nelas referem-se pessoas apenas pelo nome próprio, que não sei quem são, mas tenho suspeitas, hábitos do passado, acontecimentos pessoais ou sociais.
Mas como bem referes, a sua leitura é um prazer, sobretudo aos do meu trisavô que tinha uma escrita fluída e uma boa caligrafia.
E estas cartas revelam a personalidade e a vidas destas personagens que os registos oficiais ou os paroquiais não conseguem.
O problema é assimilar, registr e investigar a informação todas destas cartas.
um abraço