sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Mais algumas fotografias do Solar dos Montalvões: a fachada Sul


Volto hoje ao velho Solar de Outeiro Seco, não à ruína que existe hoje, mas a um edifício, que conheci na infância, ainda coberto com telhado, paredes em pé, mobilado, com o museu de curiosidades e a grande biblioteca. Essas escassas recordações que tenho da casa, confundem-se com as memórias do meu pai e com as imagens das antigas fotografias, de modo que há coisas, que já não consigo precisar, se são as minhas próprias lembranças, ou se estas estarão já há muito misturadas com imagens construídas a partir das sensações provocadas pelas fotografias. A Yourcenar dizia qualquer coisa como isto: a memória humana não é um arquivo onde os acontecimentos jazem ordenadamente. A nossa memória afasta ou aproxima os factos, em outros casos os enriquece ou empobrece, outras vezes fá-los desaparecer e outras ainda, fá-los reviver a toda a hora.
Estas considerações foram despertadas por umas quantas fotografias antigas, da fachada Sul do Solar de Outeiro Seco, que seleccionei de um dos álbuns do meu pai para vos mostrar hoje. Foram tiradas na década de 1950, ainda não tinha eu nascido e dão grande destaque à escadaria que dava acesso à cozinha. Estas escadas em pedra foram durante décadas o lugar preferido da família para fotografias de conjunto. Há imensas, eu próprio julgo que apareço ainda pequenino numa ou outra.


De facto, as escadarias são boas para retratos de grupos grandes. As pessoas são dispostas ao longo de 10 ou 15 degraus e toda a gente aparece nas fotografias, mesmo as mais baixinhas. Por essa razão e por ser um sito ensolarado este é o lado mais documentado da casa. Infelizmente, a escadaria do pátio interior e do alpendre do lado nascente raramente foram fotografadas. Também não há imagens do interior da casa, à excepção dos salões nobres do lado poente, filmados pelo meu pai em meados dos anos 60. Não há qualquer fotografia da sala de jantar, com o seu louceiro Renascença. Era tão grande, que quando a casa foi vendida ninguém o conseguiu tirar de lá. Deve ter-se despedaçado quando o soalho ruiu. Dos quartos com os tectos em maceira só tenho uma fotografia de há 5 ou 6 anos, onde se vê a cobertura de um dos quartos. A outra já caiu.

A escadaria de acesso à cozinha está indicada com uma seta


Palco de uma série numerosa de retratos familiares, esta escadaria toda em cantaria muito bem emparelhada e com um alpendre proporcionava o acesso à cozinha, o que me causa uma certa perplexidade. Para que quê fazer uma coisa tão boa e tão nobre no acesso a um sítio onde circulava a criadagem?

 
O belo trabalho de cantaria de uma escada de acesso..à cozinha...

Talvez este corpo sul da casa não fosse todo ele destinado a cozinha, como era quando o conheci nos anos, 50, 70 e 80 do século XX. Possivelmente, só a área lajeada seria a cozinha e o resto do espaço estaria compartimentado em tabiques e destinado a quartos e por conseguinte esta escadaria seria uma entrada nobre da casa. É difícil ter certezas numa casa construída ao longo de dois séculos, que foi sendo acrescentada à medida que a família aumentava o seu número ou a sua fortuna, sem haver um plano e muito menos um programa estético.


As fotografias de grupo mostram dois aspectos da vida da família. A caça e Natal.

Partida para a caça. Setembro de 1951

A caça é aquela actividade estranha e até repugnante, para nós que vivemos na cidade, onde condenamos moralmente a morte dos animais selvagens, embora comamos diariamente carne de porco, galinha e vaca. Aqui em Outeiro Seco, a caça era uma sobrevivência dos velhos hábitos senhoriais e existia até uma sala só para guardar as espingardas. Nem sei o que fizeram as essas espingardas todas.

O Natal de 1952
O Natal era quando todos se reuniam no velho casarão. Para todas as famílias esta quadra é sempre uma coisa especial, mas talvez passa-la numa casa solarenga fosse uma coisa excepcional, tão excepcional que uns vinte e cinco anos mais tarde, já os meus bisavôs mortos e casa votada ao abandono, a minha avó Mimi escreveu um conto, em que fantasiando, conta que depois de uma espécie de milagre, a família voltou reunir-se à volta da mesa de Natal, em Outeiro Seco. O conto chama-se A casa deserta e foi publicado no livro o Panorama da verdade, mas objectivamente este milagre nunca ocorreu e depois da morte do meu bisavô em 1965, nunca mais as toalhas de linho bordadas saíram das arcas, nem a família voltou a fazer a consoada no Solar. As casas morrem como as pessoas.

17 comentários:

  1. Bonitas fotos Luís. Um abraço, Berto

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  2. Caro Humberto

    Obrigado. Só tenho pena que os outros membros da família não participem neste blog, enviando fotografias antigas da casa, que certamente terão lá no fundo dos seus armários ou gavetas. Por mais insignificantes que pareceçam, essas imagens, seriam um contributo importante para a memória do Solar e para sabermos mais do que do que foi a arquitectura solarenga no Norte. Mas, enfim, nem todos partilhamos dos mesmos gostos.

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  3. Olá Luís
    Parabéns. As memórias são tudo o que fica e que nos faz sentir que pertencemos a um todo, com raízes intrincadas, ramos que se distanciam, mas que formam um conjunto que nos é grato recordar. Também gosto de genealogia e já pesquisei sobre as origens da família. Cheguei a 1740 e a uns tios recuados, nascidos em Montevideu e Rio de Janeiro. Da família materna, cristã nova, as origens estão na raia transmontana, daquela bem recôndita e ignorada.
    if

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  4. Como já te disse anteriormente, a minha teoria consiste em considerar este núcleo (a cozinha com a edificação em forma de torre que a ela está adjacente pelo poente, e que faz a ligação com a capela) como o primordial da casa e deve anteceder o resto da construção em várias dezenas de anos, senão mesmo mais, e digo-o baseado nas diferentes cotas do pavimento da cozinha para o resto do solar e as diferenças construtivas de paredes (são mais grossas nesta porção da casa), para lá desta entrada que, não sendo senhorial, tem imponência, elegância e pedras muito bem aparelhadas, elementos que não se coadunam com a entrada de uma cozinha.
    Esta entrada (e eu conheço-a bem) é dotada de proporções que se distanciam das que se vêem em alguns edifícios nobres e mansões palacianas, apresenta um equilíbrio e harmonia de dimensões à escala humana, caraterística da nossa arquitetura chã, como só o sabiam fazer os antigos mestres de obras que herdavam a profissão dos que o antecediam, e que faziam com que a profissão estivesse assente em séculos de aprendizagem e experiência.
    Tenho um respeito muito particular por estes mestres, que, não sendo arquitetos de renome, tinham atrás de si gerações de experiência do "saber fazer".
    Não produziam edificações mirabolantes ou vanguardistas (e nada tenho contra quem o faz, antes pelo contrário, admiro-os igualmente), nem conheciam a teoria ou os cânones da antiguidade vitruviana, mas o que faziam era, por norma, bem feito, pois estava assente numa tradição que dava resultados práticos.
    Por ter trabalhado com ele, ainda conheci um homem destes, que, infelizmente, já faleceu, e, pior, sem deixar descendência à altura, capaz de herdar o seu mester ... não era nada de excecional, sabia ler e escrever (não muito bem, e lamento-o, pois poderia ter aproveitado todo um mundo de informações que os media hoje permitem), mas possuía por trás o saber acumulado de muitas gerações.
    Os herdeiros não souberam guardar este tesouro e malbarataram-no ... uma pena!

    Mas voltando à cozinha, acho que esta entrada, inicialmente, deveria ter sido a principal, posto que a sua entrada norte é bem mais comezinha, e creio que só posteriormente lhe foi adicionado o pátio de honra e toda a beleza de construção solarenga a ele associada.
    Manel

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  5. Cara If

    Obrigado pelo seu comentário. Também tenho uma grande curiosidade em explorar a genealogia do lado materno, que se fixou igualmente nessa raia transmontana mais recôndita e ignorada, como bem diz. Há desse lado da família uma tradição familiar que diz descendermos de cristãos-novos, mas não sei se será justificada. Só cruzando registos paroquiais com os autos da Inquisição, o que deve ser um trabalho louco.

    Abraços

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  6. Manel

    No geral concordo com tudo o que aqui expões, aliás, este post é resultado de muitas nas nossas conversas sobre a casa.

    A única parte que não bate certo, é que o corpo da cozinha do lado poente aproveita a parede da capela. Portanto, o núcleo onde está a torre ou o sobrado, terá sido construído para ligar o corpo da cozinha à capela e provavelmente terá sido o último bloco a ser erguido. Mas como poderemos saber?

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  7. Ou vice-versa. Também pode ter acontecido terem aproveitado a parede do torreão para servir de apoio à capela (a largura da capela é mais estreita que a deste espaço), cuja altura pode ter ficado determinada pela do torreão; ou então, também poderá ter acontecido que não existisse o torreão inicialmente (tendo esta porção o mesmo pé direito que a cozinha), e este fosse alteado para ficar com a mesma altura da capela, aproveitando-se para construção de dois pisos (e, consequentemente, mais duas divisões, uma por cada nível), os quais, aquando da minha visita, ainda existiam, apesar de não visitáveis. Qualquer das hipóteses pode ter acontecido.
    Aliás, a varandinha que dava apoio ao último piso daquele torreão era mesmo uma graça, apesar de saber que este último nível tinha ardido há muito tempo, e, como consequência, ficado inutilizado. Aliás, esta varandinha daria um quarto fantástico, donde se poderia avistar todo o pátio interior, e até mais além, perfeito para um senhor que quisesse controlar todos trabalhos agrícolas que se podiam fazer neste pátio agrícola.
    E deveriam ser vários, pois, que eu desse conta, havia o forno, lagares, quartos de serviçais, talvez até local onde se pudesse guardar gado (talvez tu até saibas mais sobre a totalidade das tarefas que se poderiam levar a cabo neste espaço, mediante ajuda da memória do teu pai).
    Manel

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  8. Leio sempre com muito interesse o que escreve sobre o Solar dos Montalvões. Pela carga afectiva que lhe põe e, também, pela informação pormenorizada do que foi sendo a Casa dos seus antepassados.
    As ruinas, as casas "apodrecidas", remetem-me sempre para Ruy Belo: "Oh As Casas As Casas As Casas".
    Cumprimentos.
    emília reis

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  9. Penso que já me estou a repetir, mas de cada vez que o Luís aqui fala do solar da sua família em Outeiro Seco fico a lamentar o abandono e a ruína em que se tornou um edifício tão sólido e imponente; no entanto, vendo as fotografias e plantas que aqui publica, também alimento a vaga esperança de que um dia alguém o venha a erguer das cinzas... quem sabe, quando sairmos da crise... (quando será isso?)
    Beijos

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  10. Cara Emília

    As casas antigas assistiram a tantas histórias e viram passar tantas gerações que parece que tem alma, como se cada que cada umas das pessoas que por lá viveram, lhes tivessem transmitido algum tipo de sentimento. Embora objectivamente as casas sejam meras edificações de pedra, cal e madeira é quase impossível não sentir a carga emocional que se desprende de um velha habitação familiar.

    abraços

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  11. Maria andrade

    Não tenho grandes esperanças no restauro desta casa. Muita coisa já se perdeu irremediavelmente. Mas pelo menos, reconstruo neste blog a memória do solar, ainda que com muitas falhas e sem um grande objectivade científica.

    Bjos

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  12. Uma pergunta Luís já pensou em adquirir alguma vez o solar dos seus antepassados ?

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  13. Caro Anónimo ou Anónima

    Sou funcionário público, com reduções no ordenado, sem subsídio de férias e de natal e sem qualquer espécie de capital.

    Naturalmente, se tivesse dinheiro, restaurar o solar seria um projecto apaixonante, embora fosse um trabalho para o resto da minha vida e talvez para a dos meus filhos se eles se eventualmente eles estivessem para aí virados. Mas, certamente, em todas as salas que reconstruisse sentiria ali a história de cada um dos antigos moradores.

    abraços e obrigado

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  14. Caro LuísY,
    Sou um seguidor do seu blog e volta e meia gosto de rever/reler os posts acerca do solar... Estas construções da nobreza rural sempre me encantaram e evocaram em mim sentimentos nostálgicos de um passado que não conheci. Pena que muitas das vezes os herdeiros destas construções se contentem com o abandono, quando nem se esforçam por rentabilizar um tesouro destes! (não estou com isto a criticar a opção da sua família, na medida em que não conheço sequer os contornos...)
    O interior tem tantos e tão belos exemplares simplesmente a aguardar a ruína!!! Às vezes penso que é um ciclo que não tem retorno, mas espero verdadeiramente que este solar recupere o esplendor, muito embora determinados elementos estejam perdidos para sempre, de preferência nas mãos de alguém da família!
    O Luís ainda mantém alguma casa em Trás-os-Montes?
    Um abraço

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    1. Caro J Santos
      O destino do Solar de Outeiro Seco é muito comum a muitas casas nobres pelo interior do País. O abandono destas casas tem a ver com a desertificação do interior, a fuga das populações para a faixa litoral do País e a falência da agricultura portuguesa.

      O solar hoje é propriedade da Câmara Municipal de Chaves, que se está nas tintas para o seu estado de degradação.

      Tenho usado o blog como meio para lutar contra o esquecimento a que está votada está casa.

      A minha família ainda possui uma casa em Vinhais, mas embora seja muito bonita, feita nos anos 30 ao estilo Raul Lino, não tem os pergaminhos desta casa de outeiro Seco. Todos os anos ainda vamos a Vinhais, mas também um dia a casa será vendida, porque pertence a demasiada gente. Um abraço

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    2. Caro Luís,

      Em 1º lugar espero que o futuro da casa de Vinhais não passe pelo mesmo destino deste solar. Quem sabe se não existe um interessado em unificar a propriedade.
      Quanto ao solar de Outeiro Seco, tal como outras casas do género, eram em tempos sustentadas pelos rendimentos agrícolas, que decresceram, sim, mas as famílias também alteraram profissões e abandonaram a gestão dos terrenos. A meu ver, estes espaços só sobrevivem se acompanhados da rentabilização dos mesmos, e em caso de muitos herdeiros o melhor será constituir uma sociedade ou unificar a propriedade através da aquisição aos demais, até porque, como se diz na aldeia do meu avô "meias só para as pernas!".
      De qualquer forma, a fuga ao interior e a aversão ao rural também não ajudou na preservação deste tipo de património...
      De qualquer forma, muitos parabéns pelo seu trabalho de "recordação"!
      Um abraço

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    3. Caro J. Santos

      A venda do solar já foi feita há cerca de 30 anos pela minha avô e seus irmãos. Talvez nas clausulas da venda devessem ter acautelado a futura utilização do solar para museu, escola ou biblioteca. Mas julgo que toda a gente se queria desfazer rapidamente daquele elefante branco e também não me fica bem colocar quem já morreu no banco dos réus.

      Quanto ao presente, falta empreendedorismo e capital aos descendentes que se interessam pela casa de Vinhais e depois estamos todos aqui na capital a 550 km de distância. Enfim, gostaria de ter uma solução para o caso, mas efectivamente não a tenho. Mas quando a casa for vendida, certamente ficarei com a uma terrível mágoa.

      Um abraço

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