sexta-feira, 9 de julho de 2010

O gabinete de curiosidades ou o Museu do Solar de Outeiro Seco

Ainda pouco mencionei aqui um dos aspectos mais curiosos do Solar dos Montalvões em Outeiro Seco, que era a existência de uma sala, a que a família designava por museu. Situava-se no lado poente da casa (Nº 43 da Planta), na fachada nobre e comunicava com o coro da capela particular da casa. A sua fundação deve-se ao meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, um homem muito erudito, sobre quem já escrevi, mas mais sobre os aspectos da sua vida pessoal, nomeadamente os amores com a minha trisavô, que apesar dos cerca de 130 anos, que já passaram desde esse tempo, continuam incompreendidos.


Não era bem um museu na acepção que lhe damos hoje, de uma instituição proprietária de um conjunto de colecções coerente, pelas quais zela pela conservação e pela sua apresentação ao público de uma forma didáctica. Na verdade, o que existia naquela sala era aquilo que no passado se designava por um gabinete de curiosidades. Estes Gabinetes começaram a ser formados por monarcas, papas e príncipes europeus no Renascimento e eram colecções de coisas curiosas como o próprio nome indica, das quais podiam constar uma concha rara proveniente dos mares do sul, moedas romanas, uma série de gemas valiosas, jóias antigas ou modernas e um capitel romano ao lado dum manuscrito antigo e de um fóssil. Essas colecções não pretendiam demonstrar a evolução das espécies através dos fósseis, nem mostrar como funcionava a economia em Roma. Queriam-se aqueles objectos para ser acariciados pelos seus proprietários e admirados pelos seus convidados. Claro, uma boa parte dos museus contemporâneos europeus teve origem nesses gabinetes de curiosidades, mas isso foi já muito mais tarde.


O que sabemos deste gabinete de curiosidades que estava no Solar de Outeiro Seco chegou-nos através das nossas próprias memórias (eu ainda me lembro dele e o meu pai melhor ainda), do filme que o meu pai fez no meados dos anos 60 e ainda a partir de um inventário sumário que a minha avó Maria do Espírito Santo (a Mimi) fez entre 1965 e 1974. A própria Grande Enciclopédia portuguesa e brasileira, Vol XXVI, Artigo SAMPAIO, Padre José Rodrigues Liberal de, refere pomposamente e de forma exagerada, que o meu trisavô transformou a sua casa numa biblioteca-museu das mais valiosas do País

Naturalmente que a colecção lá existente não foi toda adquirida pelo Padre Liberal Sampaio. Seriam peças há muito pertencentes à família, mas que estavam esquecidas nos sótãos, encafuadas em armários, desprezadas num canto ou a uso na cozinha e que ele, com a sua sensibilidade histórica se apercebeu do valor cultural e mandou colocar em lugar de destaque, num dos salões nobres da casa. Por exemplo, nesse inventário, refere-se uma grande tigela em faiança, marcada com a letra “R”, que a minha avô toma por loiça do Rato e que hoje sabemos que seria uma Miragaia genuína e que certamente terá sido mandada retirar da cozinha pelo meu trisavô.
Também no museu foram reunidas peças de arte sacra que antes seriam consideradas monos e que aqui ganharam destaque, como por exemplo este belo Cristo em marfim, mostrado na fotografia de cima, que me parece de feitura indo-portuguesa, e que descobri a sua imagem no filme.
Também deve ter sido esse o caso de um pequeno retábulo, certamente com origem oriental, representado o Menino, quatro santos (os Evangelhistas?), a Pomba e dois anjos em marfim e uma moldura doirada. Há pouco tempo na exposição Encompassing the Globe: Portugal and the world in the 16 th and 17 th century, que esteve em Wahington e em Lisboa mostraram-se várias peças semelhantes a este retábulo, provenientes da índia, do Ceilão e também da China. Uma delas, que apresento aqui pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga e tem o número de inventário 625 Esc.

No mesmo Museu aparece referenciado um Cristo Gótico que desperta a imaginação, mas não faço a menor ideia quem ficou com ele
Havia espalhadas por toda a sala do Museu muitas peças típicas das casas de militares e funcionários, que andaram pelas colónias da África e da Ásia, tais como peles de crocodilos e felinos selvagens, lanças e azagaias, que não correspondem em nada ao perfil do Padre Liberal Sampaio. Deveriam ser coisas trazidas por antepassados meus das antigas colónias, pois a família esteve tradicionalmente ligada às armas, nomeadamente à cavalaria.

Julgo que a principal contribuição do Padre Liberal Sampaio para este Gabinete de curiosidades foi a parte arqueológica, que era um dos seus grandes interesses intelectuais. Foi sócio da Academia das Ciências e da Sociedade de Arqueólogos. Escreveu muitos artigos sobre a temática para títulos da imprensa regional, como o Intransigente, Defensor de Chaves, Folha de Chaves e Era Nova. As vias romanas, os padrões miliários, a epigrafia romana e toponímia eram assuntos recorrentes da sua autoria, que se podem ler nesses periódicos. A presença romana em Chaves foi muito forte, a cidade foi fundada nessa época, a planta do centro deve ser dos melhores exemplos em Portugal do urbanismo romano com a Cardo e a Decumana a interceptarem-se e era pois natural que homem com grande curiosidade intelectual como o meu avô se tenha tentado a escrever e a investigar sobre esses abundantes achados arqueológicos, que apareciam cada vez que se escavava o subsolo. Mesmo na propriedade do Solar há vestígios arqueológicos, sepulturas paleo-cristãs e uns lagares que se acredita serem romanos. Provavelmente em resultado desses seus interesses é provável que muitas pessoas lhe viessem dar objectos que encontrassem nas suas terras, tais como machados de pedra polida (que podemos ver dispostos ao longo do fogão de sala), pontas de seta ou outros fragmentos e também moedas antigas. Aliás o meu bisavô fez uma colecção numismática muito boa, com moedas visigóticas inclusive, muitas espécies romanas e medievais, que se mantêm indivisa e pertence a um dos descendentes.
Em suma, este gabinete de curiosidades, em conjunto com a biblioteca demonstram bem o tipo de cultura do meu trisavô, o Liberal Sampaio, que era aquilo que no século XIX se designava por polígrafo, isto é um homem que era versado e escrevia sobre muitos assuntos, que iam desde direito à teologia, passando pela política, história, arqueologia, epigrafia e numismática.
Depois da morte dos meus bisavôs, os objectos do Museu foram partilhados entre os descendentes. A Casa foi vendida e onde era o museu ficou uma sala vazia, esventrada e vandalizada.
Fica o inventário manuscrito pela bela e angulosa letra da minha vô Mimi

Para ver o Inventário, cliquem neste link http://viewer.zoho.com/docs/tPn1h , demora um pouco a abrir, mas vale a pena. Se não o conseguirem abrir, aconselho-vos a fazerem save e poderão guarda-lo provisóriamente ou definitivamente.


A fotografia do Cristo em marfim é do nosso amigo Humberto Ferreira, que também localizou o seu proprietário, que gentilmente nos autorizou a sua reprodução, mas preferiu permanecer anónimo.

9 comentários:

  1. Estes gabinetes de curiosidades, tão em voga na Europa, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, e que esporadicamente atingiram o XX, mas hoje completamente caídos em desgraça, está na origem de um dos livros mais emblemáticos e interessantes de Bruce Chatwin: "In Patagonia".
    Não que estes gabinetes não existissem antes, pois já são mencionados nas cortes dos Áustrias do século XVI, por exemplo, mas pertenciam na altura às classes predominantes. Só posteriormente esta moda se propagou à fidalguia rural, como foi o caso.
    E este teu artigo está muito bem encontrado. Creio que te faltou falar de algo ainda mais intrigante que, julgo, te ouvi mencionar que existia no "Museu" de Outeiro Seco: uma pedra de benzoar; a esta intrigante secrecção do estômago de alguns ruminantes os príncipes da Renascença davam o poder de resistir aos envenenamentos e à cura de muitas outras maleitas!
    A "nossa" Catarina de Áustria (não gosto muito da figura desta senhora, mas não se pode enjeitá-la por isso!), irmã de Carlos V, adquiriu várias destas "pedras" que depois distribuiu pela sua família espanhola e austríaca. Claro que chegaram até hoje expostas em museus, encastoadas ou montadas como jóias preciosas, o que se explica pelo poder sobrenatural que lhe era atribuído!
    Mas gostei imenso deste teu escrito!
    Manel

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  2. Desculpa não ter referido o Cristo, que, não obstante, me parece uma peça excepcional, creio que em marfim, talvez do século XVIII ou mesmo anterior, que sei eu; apesar de reconhecer a qualidade da peça, confesso a minha ignorância sobre esta tipologia.
    Era frequente este tipo de peças serem originárias do oriente, fabricadas para agradar a uma clientela ocidental, no entanto, as fotografias não me deixam perceber se é este o caso.
    A medo, confesso que não gosto tanto nem da peanha nem da cruz, que não me parecem igualar a qualidade da própria imagem. Talvez todo o conjunto seja coevo, mas não me parece um conjunto harmonioso.
    Quiçá observando melhor a peça ao vivo tivesse uma opinião diferente.
    No entanto, sobre o parapeito da lareira está uma peça de escultura que me parece muito interessante, talvez africana, mas que me faz recordar os ídolos cicládicos pré-clássicos, incomparáveis na sua beleza rude e simbólica, só que estes soíam ser de menor dimensão!
    Manel

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  3. Olá Luís
    Muito bem conseguido este post
    Muito ao nosso jeito, "inventar" Museus!
    Quanto ao Cristo que o Humberto gentilmente nos presenteou é de facto algo ingénuo quanto à cruz,já não o direi em relação às incrustações em prata? deliciosas,o corpo bonito,deliciosamente talhado em marfim
    Tenho aprendido consigo a apreciar mais copiosamente "Cristos pregados na cruz"
    Adoro, sobretudo aqueles que tem a cruz assente em peanha
    De facto deve orgulhar-se dos seus antepassados
    Da riqueza da sua linhagem, da sua sabedoria, da globalidade que já descortinavam à época por aquelas bandas tão longínqua da capital
    Linda a sua família, já sabíamos!
    Até tinham o seu próprio Museu
    Achei fabuloso. Que requinte.
    Que autenticidade!
    Denota gente muito à frente!
    Aproveite o seu querido pai que o vai ajudando a revelar e desvendar tanta riqueza que merece ser vista e apreciada pela família e os demais como eu que me lambuzo de satisfação com tanta etiqueta sostificada...confesso que sou apreciadora!
    Está nos genes...então a sua minúscula casa não é ela também um lindo Museu?
    Filho de peixe sabe nadar...
    Vou ausentar-me outra vez...
    Voltarei
    Bjs

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  4. Muito obrigado pelos vossos comentários

    A leitura da Patagónia de Bruce Chatwin está na minha lista de prioridades.

    De facto estes pequenos gabinetes de curiosidades eram fascinantes, mas, paciência, este dispersou-se levado pelo vento e ficaram apenas fragmentos das suas memória.

    Por e-Mail, o Humberto chamou-me a atenção para algumas semelhanças que ele encontrou entre este Cristo e o que está actualmente no Museu de Ate Sacra de Chaves, proveniente da capela de Sta. Rita, o Senhor dos Aflitos. De facto, o resplendor é semelhante e talvez o crucifixo tenha ar de família, mas o Cristo do Museu é mais magro, mais comprido. Talvez o Manel, tenha razão, e a cruz deste tenha sido mandada fazer em momento muito posterior.

    Infelizmente, que eu não saiba não houve nenhuma pedra de bezoar. Existia eram muitas pedras de raia, designação dadas aos machados polidos do Neolítico.

    Sentiremos falta dos comentários da Isabel

    Abraços a todos

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  5. Voltei para dizer que adoraria que o Luís nos presenteasse com um post sobre pedras de bezoar e pedras de raia
    Não sei se sabe, sou vidrada por pedras...
    Que dizer dos machados do Neolítico, julgo ter alguns exemplares que encontrei em plena serra da Ameixieira lá na minha terra, apesar de não catalogados
    Amaria por demais um post sobre esta temática, explodia de júbilo
    As pedras mexem comigo de forma extasiante, perco-me completamente com tamanha fascinação
    Aqui vou eu embora...
    Bjs
    Também vou sentir saudades
    Isabel

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  6. Cara Isabel

    Prometo escrever sobre as pedras de bezoar, Creio que tenho por aqui o catálogo de uma exposição onde aparece um desses talismãs, mas olhe que não sou um especialista no assunto.

    Beijos,

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  7. Caro Luís
    Acabei de chegar...
    Como lhe dizer...
    OBRIGADA!
    BEM HAJA!
    Adoro o seu lado gentil e atento, uma delícia de personalidade fascinante, delicada, sensível
    Que emoção!
    Acredite, sinto-me muito mais feliz nesta minha vida desde que acompanho os seus posts...Uma constante mui importante no meu dia a dia
    Muito pela constante aprendizagem, no jeito comunicativo, no modo, na acção e no frenesim!
    Revisito consigo Museus, casas senhoriais,artes diversificadas como azulejaria,divindades cristãs e pagãs, faianças e inegavelmente Pedras!
    Homem dos sete ofícios na arte de bem escrever e encantar, jamais o esquecerei
    Sinto uma emoção enorme em ir ler o post sobre pedras de bezoar...
    Confesso que sou ignorante, julgo nunca ter ouvido falar nelas...quem diria?
    Assim é, mas a minha sinceridade é do tamanho do mundo e não me importo mesmo nada de confessar tal confidência
    Agradecida fico!
    Beijos
    Isabel

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  8. Boa noite, desde já agradeço o post! No entanto, não consigo aceder ao link.

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  9. Cara Francisca L.

    Peço-lhe desculpa pelo atraso da minha resposta, mas tenho andado cheio de trabalho.

    Há 9 anos, quando escrevi este post coloquei a relação dos bens da casa numa dessas plataformas gratuitas da net, mas o universo digital é sempre efémero e a dita plataforma evaporou-se no espaço virtual. Por outro lado, a tecnologia do blog não me permite colocar anexos.

    Em todo o caso, se me escrever para montalvao.luis@gmail.com posso lhe enviar uma cópia.

    Um abraço

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