Em Portugal existe uma rede portuguesa de Museus, da qual fazem parte todos os museus públicos ou privados, que o Ministério da Cultura considerou terem níveis mínimos de qualidade, para merecerem essa designação.
No entanto, em cada aldeia, em cada vila, ou cidade de província existem muitos mais museus do que os dessa rede oficial, tratam-se das igrejas ou capelas, em cujo interior há inevitavelmente colecções estupendas de azulejaria, imaginária religiosa da melhor qualidade, talha, cantarias lavradas, móveis de sacristia em pau santo, cadeiras antigas, para não falar das alfaias, missais, registos e por aí fora.
Por essas razões e embora não seja crente, sempre que vejo uma igreja, entro nela, se estão fechadas vou pedir à velha beata ou à cuidadora a chave e descubro sempre coisas deslumbrantes. Foi o que me aconteceu o fim-de-semana passado, na igreja da Misericórdia de Sousel, no Alentejo, que está muito bem restaurada. Toda a nave principal da igreja está revestida a azulejos historiados, com cenas do Antigo Testamento. Se não fossem os painéis do altar-mor com algumas cenas da vida de Cristo, diríamos que estávamos num templo concebido para os cristãos novos se sentirem em casa. Mas, enfim, muito pouco se pode afirmar com segurança sobre os cristãos-novos, pois o cripto-judaísmo como o próprio nome indica, caracteriza-se pelo segredo, por uma existência dupla que levava os judeus convertidos à força, a não deixar testemunhos de qualquer espécie da religião praticada em segredo ou das suas íntimas convições.
Mas voltando aos azulejos, que são datados da primeira metade do século XVIII, portanto do chamado “ciclo dos grandes mestres”, o que me chamou a mais a atenção, foi o painel com Jonas e a Baleia. Achei-o tão curioso, tão estranho que fui procurar alguma informação sobre este personagem.
Jonas é um dos livros do Antigo Testamento e faz parte da chamada categoria dos Livros Proféticos.
Jonas foi encarregue por Deus de se dirigir à cidade de Niníve, para convidar os seus habitantes a arrependerem-se. Para os menos familiarizados com a história, esta cidade situava-se no Norte da Mesopotâmia, numa zona que está no actual Iraque e segundo a Bíblia os seus habitantes eram uma gente horrível, famosa pela sua crueldade. Jonas teve medo de se tornar uma vítima de gente tão má e resolveu fugir, apanhou um barco perto da actual cidade de Tel-Aviv em direcção à Tarsis (talvez Tartessos, em Espanha).
Tarsis |
O navio em que seguia foi apanhado numa terrível tempestade e os marinheiros resolveram jogar à sorte, para descobrir quem era o causador da desgraça. As más sortes designaram Jonas, que fui pura e simplesmente lançado ao mar, que de facto se acalmou. Jonas foi então engolido por um grande peixe durante 3 dias e três noites.
O navio |
A tradição transformou este grande peixe em Baleia, embora hoje se pense que poderia ter sido um, cachalote, que na época abundava no mediterrâneo. Os cachalotes transportam por vezes as suas crias doentes na boca e há um relato de um marinheiro inglês salvo por um destes cetáceos, durante a primeira guerra mundial, ao largo das ilhas Malvinas.
Cachalote ou Baleia, o que é certo é que Jonas se arrependeu da sua covardia e dirigiu-se a Niníve, para convidar os seus habitantes a penitenciarem-se dos seus pecados, ameaçando-os com a destruição da cidade, caso assim não o fizessem.
Para grande espanto de Jonas, os habitantes de Niníve arrependeram-se e Deus não destruiu a cidade. Jonas ficou espantado e irritado com a clemência divina e Deus repreendeu-o.
Este último pormenor, o perdão de Deus, concedido aos que se arrependem, mesmo sendo estrangeiros, destaca o livro de Jonas de todos os outros livros proféticos, que normalmente transportam uma certa mensagem de ódio às nações pagãs. A ideia principal do livro de Jonas é a que o Deus de Israel é afinal um Deus de todas as nações e demonstra quer a dificuldade do povo hebreu em aceitar que Deus possa perdoar aqueles que os perseguiram, quer a necessidade de Israel não voltar as costas às outras nações.
Que espectáculo de painel! Nada como esse azul para me colar ao ecran do pc. Tendo tempo hei de te enviar fotos de outros painéis daqui da zona oeste. Bjs, Luísa Luz
ResponderEliminarApesar desta história biblica ter sido uma das que primeiro conheci, tratou-se de um conhecimento algo incompleto e muito "pela rama".
ResponderEliminarNo entanto a tua análise e posterior conclusão completou-a de forma muito agradável. Realmente, lembro-me de não ter sentido grande animosidade para com Jonas, quando a sentia (e sinto) por quase todos os outros personagens, onde o castigo e a destruição por "dá cá aquela palha" estão sempre presentes.
Aliás, não é fácil encontrar um livro tão violento e cheio de vinganças, castigos, estupros, raptos, guerras, fomes, incestos, assassínios, traições e enganos como a Bíblia.
O que vale é que é um livro feito por e para homens, onde nada do que é divino ali tem lugar; senão,vejamos, a crer naquilo tudo deveríamos viver vidas aperreadas, espartanas, destituídas de todo e qualquer prazer, agradecer cada dia pelos castigos e penalizações que nos impõem, pagar para trabalhar (a Bíblia deve ser o Paraíso da elite liderada por Sócrates!), dar sempre a outra face, transformamrmo-nos em "ratos das muitas igrejas existentes", enfim ... é necessário gente muito tortuosa e mal formada para criar preceitos religiosos deste calibre.
E o que é pior de toda esta história é que não criaram isto tudo para eles mesmos (se assim fosse até talvez os compreendesse), mas para o impôr sobre toda a comunidade humana, a qual até poderia estar a viver de forma tranquila e equilibrada - realmente há gente tão desiquilibrada e mal formada que não suporta ver o alheio a viver a sua vida de forma calma, mas o pior é quando eles detêm o poder de se imporem aos outros!
Manel
Cara Luísa Luz
ResponderEliminarObrigado pelo teu comentário e fico muito satisfeito por me continuares a seguir. O azul dos azulejos portugueses é como o mar, não conseguimos esquece-lo nem deixar de o fixar. O meu endereço de e-mail está no lado direito, na rubrica “acerca de Mim”
Beijos
Caro Manel
ResponderEliminarPara os não crentes, a Bíblia é antes de tudo um livro de História e talvez um dos primeiros e mais completos do mundo. É uma compilação de vários textos, de várias épocas, em vários géneros literários, feito pelos judeus, um povo para o qual a memória foi e é uma questão essencial para a sua sobrevivência enquanto comunidade.
E depois a Bíblia é para ser sempre lida alegoricamente. As interpretações literais como fazem algumas seitas protestantes mais extremistas descambam sempre em violência e excessos.
Finalmente há uma terceira leitura da Bíblia, a literária. A Bíblia é uma obra-prima da literatura mundial, tal como o são a Ilíada, o Romeo e Julieta, as Mil e uma noites e por aí fora.
Em todo o caso as tuas palavras, só me recordaram um escrito do Humberto Ecco, o Diário Mínimo, que consiste na transcrição das cartas de um editor, que está encarregue de seleccionar novos textos para publicar e vai comentando os mais famosos livros do mundo, como se estes fossem os textos de candidatos a escritores. Quando chega a Bíblia, o editor entusiasma-se porque o texto tem tudo para ser um best seller, batalhas épicas, amor, acção, crimes violentos em quantidade e sexo quanto baste. Aliás, o mesmo editor acha que o Hollywood muito brevemente pegará no texto e o adaptará para fazer uma grande produção. Contudo, o editor acaba por achar melhor não publicar o texto, por causa do problema dos direitos de autor, pois parecem ser tantos, que se o publicassem certamente arranjariam um enorme imbróglio jurídico, que se arrastaria anos pelos tribunais.
Quanto a ser uma obra-prima de literatura, coloco as minhas reticências (já li grandes partes dela e não lhe vejo essa condição), e, de qualquer forma, a Bíblia enquanto reconhecida pela respectiva religião, não corresponde exactamente ao que foi escrito, pois foi sujeita a mil e uma reinterpretações, abolição de uma quantidade enorme de textos, considerados heresias por essas mesmas religiões; quanto aos escritos deverem ser lidos como parábolas ou hipérboles ou ainda alegorias, pode dar azo ao crescimento dos extremismos ... a história quer antiga quer recente mostrou-nos que raramente a leitura, e consequente interpretação destes textos, conduziu a percursos ou comportamentos altruístas, muito menos civilizados!
ResponderEliminarManel
Luis, concordo inteiramente consigo quando diz q em Portugal não é preciso entrar nos grandes museus nacionais para termos acesso a um valiosíssimo património. Tanto eu como o meu marido temos o hábito de entrar em qualquer igreja q se encontre aberta e não é certamente para rezar...
ResponderEliminarEste painel é magnífico, mas foi muito enriquecido por todos os pormenores q o Luís fotografou e pela maneira como explicou a história q ele conta. Agradeço-lhe por isso.
Eu não teria percebido nada da cena porq não conhecia este episódio do Velho Testamento.
Quanto à Bíblia, não sei se será um livro de História, ou antes um livro de histórias e até tenho uma opinião próxima da do Manel, mas como é pouco fundamentada fico-me por aqui...
Olá Luís.
ResponderEliminarMais um post deslumbrante. Gosto do jeito das suas estórias sejam cristãs ou pagãs, tem algo de maravilhoso. Sempre a aprender consigo. Confesso que desconhecia quer o motivo pintado no painel de azulejos quer a estória que carrega.
Também tenho esse hábito de entrar em tudo que é igreja ou capela. Azar no Funchal e em Grândola entrei em duas capelas transformadas em mortuárias..arrepiei!
Em Alcácer do Sal bem me debati com o padre para me vender umas chaves, tal o molhe delas presas num grande prego na sacristia, deu-me jornais...
Tanto espólio meio abandonado, até dá dó só de ver...
Fiquei com saudades de Sousel...
Beijos
Isabel
Cara Maria Isa
ResponderEliminarA sua falta já era por aqui sentida. Tem toda a razão em entrar em tudo o que é igreja. Eu tenho visto coisas maravilhosas, de Norte a Sul do País. Mais tenho a teoria que Portugal possui as igrejas com interiores mais luxuosos de toda a Europa, ou vá lá, dos países europeus que conheço. Entrar numa igreja em Inglaterra é um desapontamento, as francesas foram pilhadas na revolução, as holandesas nem se falam, as checas são soturnas, e mesmo as italianas…
Beijos
Cara Maria Andrade
ResponderEliminarEste meu gosto por arte sacra, levou-me a tentar perceber as cenas e as representações que eu via nas igrejas. Como já tive uma fraca educação religiosa na infância (odiava a catequese e aquela treta toda), tentei já na idade adulta tentar decifrar os símbolos e a iconografia cristã para entender melhor o que aquelas imagens em madeira nos dizem, ou que histórias contam aqueles azulejos. Por vezes a iconografia entusiasma-me tanto com os objectos artísticos em si.
Quanto à Bíblia, tenho um fascínio por ela enquanto documento único e testemunho de um passado milenar