quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma vela que se apaga

Descobri esta fotografia da minha mãe em casa da minha irmã, datada de 1950. Teria ela 27 anos. Era bonita. Tinha um tipo muito claro, que ela e os irmãos herdaram da mãe. Ninguém sabe onde foram buscar este ar já do Norte da Europa. Por outro lado, há uma certa tradição não confirmada de que a família descende de judeus. Depois de 1492, os Judeus formaram comunidades muito grandes nas terras de fronteira portuguesa, fugidos às perseguições de Isabel a Católica. Alguns deles mantiveram o judaísmo em segredo até muito tarde. Em meados do Século XX, alguns descendentes destes hebreus, tentaram retomar em Bragança o culto judaico organizado, mas não tiveram grande êxito.

Em todo o caso é quase impossível descobrir antepassados judeus, mesmo que os houvesse. As fontes para as genealogias familiares são os registos paroquiais de baptismo, casamento e morte e esses livros eram mantidos pela Igreja Católica e como tal nenhum Cristão-novo iria assumir a sua verdadeira fé nos actos registados pelos padres nesses livros. Mais, estas comunidades de cripto-judeus, do Distrito de Bragança, de onde a minha mãe é natural, viviam num tal medo, que no momento da morte de um dos seus, chamavam um profissional, o abafadeiro, que matava o moribundo, antes que o padre chegasse para dar a extrema-unção. Com efeito, temiam que o moribundo, nos últimos momentos de delírio, entoasse alguma ladainha judaica, que denunciasse toda a comunidade. Quem dá conta desta prática antiga é Miguel Torga nos novos Contos da montanha, se a memória não me atraiçoa.

Uma amiga, a minha mãe ao centro e do lado direito, a sua irmã, Francisca. Tirada em Vinhais

Talvez o ar claro da família da minha mãe seja um apanágio das terras frias de Vinhais e Bragança, onde se sente que o Mediterrâneo está muito longe e onde clima frio do Norte aclara a pele e o cabelo.

Quando a minha mãe chegou a Lisboa, pouco depois desta fotografia, empregou-se como educadora de infância num colégio no Estoril. As pessoas viam-na tão clara e tal elegante, que a julgavam francesa, o que na altura era um elogio muito grande, pois tudo o que se relacionava com a França era tido em grande conta.

Talvez desenterrar estas pequenas memórias e fotografias seja uma forma de aligeirar a imagem presente da minha mãe a apagar-se, com uma luz cada vez mais fraca.

A minha mãe em frente ao edifício da Câmara Municipal de Vinhais

9 comentários:

  1. Olá Luís
    Muito bonita e elegante a sua Mãe, com uma serenidade no olhar que enternece. Afinal ambos temos origens transmontanas, terra de boa gente, rude mas íntegra (com excepções, infelizmente). A minha Mãe era de uma pequena aldeia raiana, do distrito de Bragança, com o incrível nome de Vilarinho dos Galegos. Reza a tradição que também aí existia uma comunidade judaica. Um primo diz que o nosso trisavô era cristão novo, mas não há modo de o confirmar.
    Vem este arrazoado todo a propósito dos Judeus e para dizer que, quando estava a ensinar o meu filho (nos gloriosos tempos do 9ºano) a estudar e entender Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno, aquando da passagem do rio Limes e o barqueiro pedia uma moeda, havia uma curiosa nota de rodapé em que se fazia referência ao costume de em algumas aldeias transmontanas se colocar uma moeda na boca de defunto e se afirmava que era para pagar a passagem para a outra vida.Não é que as aldeias eram precisamente Vilarinho dos Galegos e Lagoaça, esta já no concelho de Moncorvo.Não sei se há alguma interligação com o que explicou no seu post, mas é curioso.
    if

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  2. Olá Luís

    Sinto a sua dor, que ainda não é a minha, mas será um dia destes!

    Ao abrir o blog esta foto da sua querida mãe transportou-me até à minha na idade dos seus 20 anos,foto do BI que a funcionária do registo civil ao destruir aqui há anos, teve a lembrança de lhe a oferecer, por a achar demasiado bela.

    De facto existiu tal como disse uma comunidade judaica em Tras os Montes, ou mesmo várias no limite raiano. Tenho uma vizinha dessa zona, loira e olhos verdes, foi de propósito ao arquivo da Torre do Tombo para fazer a árvore genealógica da família e chegou a essa conclusão.
    Quanto à minha mãe é mais recente a sua origem, dos franceses, pelas invasores há 200 anos, alguns desertores esconderam-se nas aldeias, as mulheres ao que se conta adoraram-nos e os protegeram dando-lhes apelidos portugueses para escaparem. Por isso existem poucos apelidos franceses, Arnault, Jourdan, Ruef,etc

    O Luís também tem um porte esbelto e é claro, ninguém diz que é mediterrânico...nem eu que o conheço! No entanto tem raízes de homens de barba rija escura e até eclesiástica. Extraordinário. Poucos se podem gabar de tanta linhagem na sua descendência.

    Sei que a saúde da sua querida mãe degrada-se a cada dia. Uma doença degenerativa terrível. Sei como custa vê-la sofrer e definhar a olhos vistos, pior possivelmente deixar de o conhecer...não tenho a certeza...desculpe.

    Adorei, adoro a forma como amavelmente fala dela, da sua vida, demonstra tanto carinho.
    O Luís é um homem encantador,cheio de sensibilidade, humano.
    Bem haja por partilhar com anónimos e amigos retalhos dos seus afectos.Fez-me sentir bem.

    Com esta me fico, bom fim de semana
    Beijos
    Isabel

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  3. Caro Luís,
    Este post dedicado à sua mãe tem um tom em simultâneo de homenagem e de despedida que me entristece, não só por si, mas por todos nós que temos os pais na fase da decadência, antecâmara de uma perda q já é e vai continuar a ser dolorosa.
    É natural q a queira recordar assim, no apogeu da sua beleza, cheia de vida, como a conheceu na sua infância e juventude.
    É verdade que proliferam por Trás-os-Montes estes tipos de pele e olhos claros, de cabelos muito loiros que normalmente se atribuem à origem céltica da população.
    Por aqui pela minha zona, também se encontram muitos olhos claros, na minha família eles abundam, mas as peles são mais tisnadas pelo sol, há mais horas de sol e a praia sempre esteve perto, a mim começaram-me a levar logo com um ano de idade...
    Quanto às raizes judaicas de muitos transmontanos e em geral de parte das populações raianas e á sua necessiddade de dissimular o culto, achei muito curiosa essa referência à figura sinistra do abafador ou abafadeiro. Eu já tinha lido sobre essa prática, talvez em contos do Torga, não me lembro, mas pensava q a função dessa figura era encurtar o sofrimento do moribundo e não como explicou, evitar q ele involuntariamente denunciasse a filiação da família ao judaismo.
    Mas tem muita lógica essa explicação.
    Abraços

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  4. Cara If

    O costume de colocar uma moeda na boca do morto é um costume ancestral, usado já pelos antigos romanos e que perdurou nas nossas aldeias mais remotas. Acreditava-se que a moeda serviria para pagar ao barqueiro que fazia a passagem para o reino dos mortos.

    Desde os primórdios da humanidade que se associa a morte a uma passagem por um rio, numa barca, que nos leva de um lado ao outro.

    Tabém já no tempo de Gil Vicente se entoava a música infantil, da linda falua, que vinha de Belém, em que se pede ao barqueiro autorizar para passar...

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  5. Cara Maria Andrade

    Quem dá testemunho dessa prática do abafadeiro é o Torga. Não sei em que documentos se baseou. Talvez nas tradições das aldeias que conheceu.

    Tudo o que se relaciona com esses judeus escondidos nas serranias transmontanas é misterioso, o que só aumenta o nosso fascínio por essa gente.

    Abraços

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  6. Maria Isabel

    Temos tantos avôs, tantos bisavôs, tantos trisavôs, tantos quartos avôs, tantos quintos avôs e por aí fora, que é natural que no meio dessa gente toda, haja pelo menos um fidalgo, um judeu e um mouro.

    Bjos e obrigado pelas suas simpáticas palavras

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  7. Conheci a tua mãe já a senhora não se encontrava bem, mas ainda era uma mulher que guardava restos de uma beleza passada invulgar, para além de uma tradição de bem receber, como creio ser apanágio da população portuguesa do interior, em geral, e transmontana em particular.
    A tua mãe e a sua irmã, já falecida, eram de uma capacidade de dávida espantosa, ou pelo menos assim me pareceu, o que remete para sólidas tradições de família.
    Mas quem olha para a tua mãe vê uma boa parte de ti, que herdaste muitos dos seus traços, e para a tua filha, que cada vez mais se parece com a avó.
    Os traços fisionómicos da tua mãe não se perdem, nem perderão, mas perduram nas gerações recentes, é esta a maravilha que podemos agradecer à herança genética!
    As coisas não se perdem, antes se transformam.
    A tua homenagem é muito bonita e sensível.
    Manel

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  8. Caro Luís
    O título do seu post é triste, mas lindo. Uma vela que se apaga!
    É mesmo assim, o fim de algumas pessoas,não morrem, desaparecem. Mas concentremo-nos na beleza e elegância da sua mãe!
    O colar de pérolas, com três voltas, os brincos a condizer, dão-lhe, na realidade um ar muito chic, muito francês. É pena que na vida tudo passe, tudo acabe...mas como tão bem diz o Manel,os pais partem, mas a sua herança genética,perpetua-se nas gerações, que se lhes seguem.
    Um abraço e uma boa semana.
    Maria Paula

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  9. Manel e Maria Paula

    Obrigado pelos vossos comentários a este post, onde mais uma vez vou buscar memórias, que são sempre uma forma de culto aos antepassados. Talvez gostar de história seja esta teimosia em manter viva a memória das gerações que passaram ou estão prestes a morrer

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