Já aqui falei da minha paixão por registos de santos, sejam eles em forma de simples estampas, ou assim, como este, emoldurados em cartão e decorados com pedaços de tecido, galões e florinhas de papel. Estes objectos de devoção doméstica foram executados por Senhoras, que se encontravam em conventos, recolhimentos e outras casas religiosas ou então, que por lá tinham sido educadas. Foram feitos num tempo em que se acreditava que as mulheres não podiam estar ociosas. Uma senhora séria deveria ter sempre as mãos ocupadas, com um crochet, uma renda, um bordado ou aplicar missangas e passamanes à volta do registo de um santinho da sua devoção.
S. João Nepomuceno |
No finais do século XIX, período em que presumivelmente este registo terá sido executado, as manhãs e as tardes das mulheres de condição deveriam ser passadas quase integralmente nestes lavores domésticos, enchendo os baús de pele, com enxovais compostos por colchas, lençóis bordados e naperons, naperons e muito mais naperons. Julgo que um historiador mais sensível às questões humanas e menos preso a formalismos académicos poderia traçar a história da vida feminina no século XIX a partir das toalhas de linho bordadas, das saquinhas de guardanapo com ponto de cruz. Cada uma dessas obras de arte dos lavores domésticos traduz pensamentos, aspirações e um modo de vida fechado nas quatro paredes de uma casa, com muitas orações, terços e leituras de vidas piedosas. Eram também os únicos meios por onde as mulheres poderiam manifestar alguma individualidade e criatividade. Por exemplo, na família da minha mãe, elas distinguiam o ponto uma das outras. A Francisca tinha um ponto mais apertado, a Teresa era mais perfeita, mas a Maria Adelaide era mais criativa.É um mundo feminino que hoje já nos escapa.
Costureiras trabalhando/ Marques de Oliveira. Museu Nacional de Soares dos Reis |
Há uns tempos vi um belíssimo filme francês, les Brodeuses, realizado por Eléonore Faucher, que mostra como duas mulheres desenvolvem uma amizade executando um bordado complicado e luxuoso para uma das grandes casas de alta costura de Paris, julgo eu que para o Christian Lacroix. Uma é a mestra e a outra a aprendiz, uma adolescente que está grávida e pretende abortar. Ao mesmo tempo que vemos um maravilhoso bordado nascer como uma teia, as duas vão se tornando silenciosamente amigas e no final, tal com as Parcas de quem escrevemos há pouco, a mais nova decide não retirar a vida ao seu bebé, tendo para isso o apoio da mestra, enlutada pela morte recente de um filho adulto.
É um filme de silêncio, como só os franceses o sabem fazer, mas penso que este mundo feminino do século XIX, passado em volta de toalhas de renda, petit point e malhas, também seria um mundo interiorizado e silencioso.
Das tuas postagens mais bem conseguidas, pois quer o texto quer as imagens estão perfeitamente adequadas e completam-se.
ResponderEliminarParece mesmo que lendo e vendo as imagens este mundo perdido se recria frente aos nossos olhos.
Muito bom!
Manel
Luís, já aqui tinha deixado um comentário, mas perdi-o e só agora tive disponibilidade para deixar outro.
ResponderEliminarTal como o Manel, adorei este seu texto, efectivamente este é um mundo irremediavelmente perdido, na minha opinião, felizmente para as mulheres, mas não deixa de me despertar alguma nostalgia.
Para além de achar adorável mais este seu registo antigo, bem decorado e bem emoldurado, o texto, muito bem escrito, revela uma sensibilidade e um conhecimento invulgares do q era a vida das mulheres confinadas ao limite de um gineceu, quer doméstico, quer conventual.
As actividades das rendas e bordados fazem parte das minhas memórias de infância e de adolescência. A minha mãe, e em menor escala a minha avó materna, empenharam-se pessoalmente na confecção do meu enxoval e eu claro também tive q aprender essas "prendas". :)
Curiosamente, recebi ontem mesmo uma oferta de dois registos q foram feitos por freiras , tias-bisavós do meu marido, que, segundo reza a história da família, viveram em clausura no Convento das Carmelitas em Aveiro. Infelizmente estes registos já não estão na sua forma original porq foram encontrados já muito degradados, nuns arrumos da casa dos avós e então uma prima nossa restaurou-os como pôde, estes e outros, mas mesmo assim, são peças q muito aprecio. Só um é q tem um “santinho”, um Sagrado Coração de Maria, com legenda em francês; o outro tem ao centro um Menino Jesus de cera no meio de algodão e muitas flores de papel à volta.
Pode ser q um dia os mostre no meu blogue.
Obrigada por nos ter proporcionado este maravilhoso post, com belas imagens a q não faltou o quadro das costureirinhas.
Um abraço
Olá Luís
ResponderEliminarUm post com um enredo magnífico.
Realmente as mulheres viveram uma vida em recato, presas que estavam aos pais e tutores que nelas mandavam até ao dia do casamento, porque nesse dia passava o mandante a ser o marido.Ainda apanhei alguma tradição do bordado num tempo sem pressas e sem nada saber da vida. Fiz uma toalha a ponto cruz em conjunto com a minha irmã sentadas em cima da cama nas férias na Nazaré. Fiz os bordados do meu enxoval, da minha filha quando nasceu e aqui e ali faço umas coisitas. Porém hoje é diferente, não sendo perfeita, nem de ponto apertado, sou mais criativa, contemporânea, e se tenho o pensamento no que não devo, ou devia e não posso, erro pela certa atrás de erro e mais erros, irra...tantos enganos!
Sim, porque trabalhar com as mãos, a cabeça e os olhos ao mesmo tempo só é fácil para quem se abstenha de tudo...
Se num tempo passado, nem sabiam bem as premissas do amor, que poderiam pensar, além de sentir algo que as desconfortava?
Por isso os bordados tão delicados...
Os meus sempre tem algum defeito, mesmo sendo quase imperceptível!
Bom Carnaval
Beijos
Isabel
Caro Luís
ResponderEliminarO seu registo é lindo,mas, mais uma vez, foi com o seu texto que me encantei.
Gostei das referências ao pontos mais apertados, ou mais largos,que me remeteram para as vivências da minha infância..Era mesmo assim!
Um trabalho de renda, uma vez começado por alguém, não deveria ser acabado por outra pessoa. As diferenças seriam notórias.
Aqui em Braga, há uma grande tradição dos registos de santos. Em tempos via-os bem bonitos. Agora não!
Vou estar atenta, pois, aqui em Braga, nas festividades da Semana Santa, há várias exposições sobre temas religiosos. Os registos, normalmente estão presentes e se assim for fotografarei alguns para
oportunamente mostrar.
Um bom fim de semana
Maria Paula
Gostei muitíssimo de ler este seu texto e, também, de ver as imagens com que, tão bem, o "ilustrou".
ResponderEliminarObrigada.
emília reis
Cara Emília Reis
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário e espero contar mais vezes com o seu contributo neste blog
Abraço
Luís
Caros Maria Isabel, Maria Andrade, Maria Paula e Manel
ResponderEliminarDesculpem-me responder-vos em bloco. Cada um de vós têm obviamente a sua personalidade, mas como os vossos comentários foram dirigidos na mesma direcção, é mais fácil responder em conjunto.
A evocação que aqui faço a partir de um registo de um mundo feminino do passado, que passava uma boa parte do seu tempo e da sua vida nos bordados, rendas e crochets foi baseado no que ouvi da minha mãe e das irmãs e do que elas se recordavam da sua própria mãe e da avó, esta ultima criada num recolhimento de religiosas. Sempre ouvi fascinado aquelas histórias contadas sobre toalhas de linho bordadas e colchas bordadas no passado, talvez por achar aquela arte extremamente complexa e difícil de executar ou talvez, porque gostando de história, estes pequenos detalhes sempre despertaram a minha imaginação para o que foi um tempo vivido há muito.
A Maria Andrade tem razão quando diz, que quando as mulheres tinham sempre as mãos ocupadas, foram períodos de autêntica servidão feminina. Talvez por isso a minha irmã sempre se tenha escusado sempre a fazer bordadinhos e aprender ponto cruz e embora até tivesse algum jeito para essas artes. Uma vez fez um bordado a ponto de Castelo Branco que até era bonito. Mas tudo aquilo lhe devia cheirar a prisão doméstica e preferia ocupar os seus tempos livres a ler furiosamente romance atrás de romance, pois os livros significavam uma intensa liberdade de viver experiências de outras pessoas ou de viajar até sítios proibidos. Claro, as filhas delas ou a minha filha nem sonham sequer em enfiar uma linha numa agulha.
Muitas idas à Feira-da-Ladra e a visão continuada daquelas bancas, com naperons, colchas, toalhas e lençóis bordados, que tantas horas ocuparam ao tempo das suas autoras, a serem vendidos ao desbarato, fizeram-me reflectir sobre esta artes femininas em vias de desaparecer.
Abraços e gostei imenso dos vossos comentários
Caro Luís, boa tarde,
ResponderEliminarParabéns por este magnífico post, ele resume de forma exemplar uma realidade à muito desaparecida. Não querendo fazer juízos de valores ou outros, voláteis conforme a época, não posso deixar de pensar nas soluções presentemente encontradas para os tempos livres da actualidade. Ao ver estas peças não podemos deixar de nos sentir felizes por alguém ter passado muitas horas do seu tempo de agulha na mão, mesmo que isso nem sempre fosse sinónimo de felicidade para a executante... Uma vez mais parabéns, CC.
Caro C
ResponderEliminarJulgo que o meu amigo será o "C" que aqui costuma vir de que quem eu gosto imenso de ler os comentários.
Tentei não fazer juízos de valor, mas apenas evocar uma época e sobretudo uma arte extremamente elaborada, que presentemente haverá cada vez menos gente a saber fazer.
As rendas, os registos e os crochets são o testemunho material de uma mentalidade e de hábitos desaparecidos.
Abraços
Não posso deixar de lhe dizer que, hoje, por um mero acaso (eu estava no sítio certo à hora certa, como se costuma dizer), conheci a sua misteriosa seguidora, a Senhora que lhe tem disponibilizado as belíssimas peças de faiança ratinho para publicação no seu blogue.
ResponderEliminarTambém fiquei a saber, muito em segredo, que a sua misteriosa seguidora nos reserva (sobretudo àqueles que se interessam pelo estudo da faiança, nomeadamente a "ratinho") uma agradável surpresa.
E, porque falámos de outros assuntos, até, sem preconceitos de, bordados, rendas, botões, paixão que também partilho e assunto que é tema deste seu post, atrevo-me a dizer que, o interesse por estes trabalhos, ditos menores, não está morto e que vai continuar a fazer parte do imaginário feminino, espero eu, por muitos anos.
emília reis
Cara Emília
ResponderEliminarNeste momento temos duas seguidoras misteriosas e ambas possuem muito boas colecções de faianças, que decidiram partilhar connosco, o que tem estimulado entre este pequeno grupo, que aqui se formou interessantes discussão sobre faiança.
Esta semana tenho andado bastante ocupado, mas em breve mostrarei mais peças que as nossas amáveis seguidoras nos enviaram.
Fico contente por haver pessoas que ainda de dediquem aos chamados lavores femininos. Penso que são "pequenas" artes extremamente complexas e delicadas, cuja construção ponto a ponto nunca me há deixar de espantar. Sempre me lembro de olhar para os dedos das mulheres mais velhas da minha família e pensar como é que elas fazem aquilo?
Também é bem verdade que estas artes não são inevitavelmente um apanágio feminino. Um amigo meu, que é especialista em restauro e um homem muito habilidoso, aprendeu técnicas de bordado através de pesquisas na Internet, para poder restaurar antigas toalhas de mesa e o que é facto é que ele conseguiu resultados convincentes.
Abraços e volte sempre
Olá Luís
ResponderEliminarPenso que o posso tratar assim, pois a afinidade criada entre os seguidores do seu blog já permite uma certa proximidade.
Também me interesso pelos idos Lavores Femininos (aliás fui aluna dessa disciplina da Maria de Lourdes Modesto antes de esta enveredar pela gastronomia) e aprendi a fazer bainhas abertas e outros bordados.
Gosto de criar utilizando os mais diversos materiais desde rendas, fitas, papéis, etc.
Não me alongo mais.
Cumprimentos e bom fim de semana.
if
Olá, Luís
ResponderEliminarDescobri por acaso este seu blog.
Vejo que é um apaixonado por arte, pelo antigo, pelo mundo das velharias.
Criou aqui um espaço realmente muito interessante. Os meus sinceros parabéns!
Sem querer abusar muito da sua disponibilidade gostava muito de lhe enviar umas fotos de umas loiças que tenho na minha casa e que recebi de herança. Não sei nada sobre as mesmas, mas as inscrições levantam-me a dúvida se estarei diante de relíquias. Pode ser que o Luís, sendo um estudioso na matéria, me consiga dar algumas luzes.
Será que me pode dizer o seu e-mail para o envio?
Obrigada desde já pela sua disponibilidade.
Cumprimentos
Cara Luarte
ResponderEliminarO meu endereço de e-mail está no no lado direito, onde diz "acerca de mim"" e se eu souber terei muito gosto em identificar as peças que conhecer
Obrigado e volte sempre ao meu blog
Cara If
ResponderEliminarJá tinha ouvido dizer que a Maria de Lurdes Modesto começou como professora de Lavores no Liceu Francês.
Acho muito interessante a criatividade que essas artes dita femininas permitem..
braços
Luís