segunda-feira, 16 de maio de 2011

Pia de água benta atribuída ao Brioso ou a imperfeição tornada obra de arte



Recebi na minha caixa de correio de e-mail a imagem de uma peça, que me encanta pela sua ingenuidade e candura. Confesso-vos que sinto um grande fraco por estas peças piedosas antigas, propensão essa que talvez a psicologia possa explicar mais satisfatoriamente do que eu, pois há muito que perdi a fé.

O e-mail foi-me enviado pela segunda seguidora misteriosa, que andava afastada do nosso convívio, mas que resolveu regressar em força mostrando peças da faiança coimbrã, que estamos apenas habituados a ver nos museus.


A peça em causa é uma pia de água benta, datada do segundo quartel do século XVIII, certamente feita em Coimbra e muito provavelmente saída da oficina de um dos Brioso, uma dinastia de ceramistas, como vimos no post de Fevereiro . Escrevo certamente e provavelmente, uma vez que as atribuições aos briosos e a outros ceramistas coimbrões não são de todo uma coisa matemática e científica, pois embora a existência desta família esteja bem documentada nos arquivos, as peças raramente são marcadas e é difícil estabelecer uma relação certa entre objectos e artistas. Em todo o caso há outras obras pertencentes ao Museu Nacional Machado de Castro, muito idênticas a esta, com os nºs de inventário, nºs 9828, 9827, que permitem por comparação datarmos esta obra e identificar o local de produção e a oficina.


Pia de água benta do Museu Nacional Machado de Astro, in. 9828

Segundo a obra a Cerâmica de Coimbra do século XVI-XX. Lisboa. Edições Inapa, 2007 a manufactura de pias de água benta em cerâmica vulgarizou-se em Portugal, primeiro na cidade de Lisboa, no final do século XVII e depois já no século XVIII, Coimbra torna-se o principal centro de produção destas peças. As pias de água benta foram feitas em grande quantidade, destinadas a pessoas sem muito dinheiro, que gostavam de nas suas casas ter a ilusão de possuírem uma espécie de pequena capela, para praticarem os seus exercícios devotos.


Reparem que a pia é uma réplica económica e em pequena escala de um altar de talha folheada a ouro.
Altar em talha dourada, que estas pias tentam reproduzir numa escala dimnuta

Julgo que as pessoas trariam a água benta das igrejas para as suas casas e deveriam faze-lo com muita frequência. Tenho uma peça destas em casa dos finais do XVIII, princípios do XIX, que está completamente encardida de tanta água benta e não me atrevo a lava-la muito, com receio que uma colagem já antiga se desfaça e fique com a pia feita em mil pedaços.

No período em que a pia da nossa seguidora foi fabricada, segunda metade do século XVIII, os temas mais comuns destas pias eram todos os aspectos relacionados com Cristo (Crucificação, Menino Jesus, símbolos da crucificação e alegorias eucarísticas), a Virgem Maria e Sto. António de Lisboa.
Pia do Museu Nacional Machado de Castro representando a Virgem Maria, inv 9827

Estas peças foram tão populares, que para satisfazer a enorme procura as oficinas de ceramistas executavam-nas em grande quantidade, usando os moldes até eles estarem gastos, obrigando os seus operários e aprendizes a fazerem uma pintura rápida e apressada das peças. O resultado é que todas estas peças apresentam um certo ar imperfeito. Há um desacerto da pintura. A tinta é umas vezes mais espessa, outras vezes mais líquida e mais clara. O moldado perdeu definição. Cada uma delas apresenta sempre um ou mais pormenores distintos da anterior. Na verdade, essas imperfeições tornam estas peças, que foram feitas em série, em obras únicas, conforme referiu muito bem Paulo Henriques no texto do catálogo Formas de Devoção. Lisboa: IPM, 1999.




Detalhe: as Chagas de cristo


O fabrico das pias de água benta continuou pelo século XIX fora, mas desta vez em todos centros cerâmicos, de Norte a Sul do País e prolongou-se até aos dias de hoje. Contudo, na minha opinião pessoal, as pias de água benta coimbrãs do século XVIII representam um momento da cerâmica portuguesa em que a ingenuidade quase alcança o estatuto de obra-prima.

10 comentários:

  1. Olá Luís

    Uma peça extraordinária e de Coimbra.Lindíssima. Parabéns à segunda seguidora misteriosa pela rara e bela colecção, de quando em vez gosta de surpreender, e como!

    Ainda hoje se trás água benta da igreja para a Páscoa. Curiosamente em casa da minha avó materna Piedade usava-se um cálice de vidro da Vista Alegre, hoje meu, faço questão nesse dia de o encher e pôr o raminho de oliveira para fazer a bênção.

    Tenho uma pia de água benta em vidro muito antiga, recordação de Fátima que pendurei na entrada junto a um Santo António.

    Esta é incrivelmente bela, o contraste das cores azul e borra de vinho com o esmalte branco confere à peça uma beleza incomum,no caso mais bonita do que fosse toda em azul como a do Museu. Estranho, mas assim o senti hoje ao mira-la.

    Beijos
    Isabel

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  2. Luís, gostei muito desta pia de água benta e mais uma vez tenho que agradecer a si e à sua segunda seguidora misteriosa por a poder apreciar.
    É realmente uma pequena obra de arte, arte popular no seu melhor, com formas e pinturas tão ingénuas que podiam ter saído de mãos infantis. E daí…quem sabe?
    A maneira como contextualizou a peça, não só as restantes fotos do pequeno altar e de exemplares de museu, mas todo o texto, trouxeram informação riquíssima, muito interessante para a história destas faianças.
    Os elementos decorativos parecem vir ainda do séc. XVII - contas e caracóis barrocos a emoldurar a figura central.
    Faz-me lembrar um prato de contas que tenho cá em casa, com os dois tons, azul e manganés, sobre um fundo da mesma cor desta pia e um aspecto geral muito tosco. Fico agora a acreditar que o meu prato pode ser também de fabrico coimbrão e não lisboeta como geralmente se pensa acerca dos pratos de contas de final do séc. XVII ou início do XVIII.
    Também por isto, muito obrigada aos dois.
    Abraços

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  3. Qualquer das peças é um verdadeiro espanto, e se me pedissem para escolher uma, creio que faria como fazem as crianças, "gosto muito da mamã e do papá também".
    De notar a pintura de uma chaga no bojo, a plagiar a ferida de lança que o corpo de Cristo recebeu na cruz, o que lhe confere um elemento surpreedente na decoração.
    Ainda não tinha reparado neste elemento nas outras peças deste tipo.
    Já tínhamos visto alguns exemplares numa exposição de há anos atrás, da responsabilidade do Machado de Castro, em Coimbra. Mas esta introduz mais algumas achegas àquelas.
    Vamos lá a ver se o Google não se resolve a fazer uma das graças sem graça que fez na semana passada e não faz desaparecer o comentário!
    Um agradecimento à tua comentadora/seguidora que disponibilizou a peça.
    Manel

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  4. Maria Isabel

    Já calculava que gostaria, pois eu sei o quanto a Maria Isabel aprecia a faiança do Brioso e de facto esta pia é um exemplar muito representativo.

    Abraços

    Luís

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  5. Maria Andrdade

    Nestas oficinas trabalham frequentemente crianças, que executavam os trabalhos mais simples. E até há bem pouco tempo viamos rapazinhos de 12 e 13 anos a trabalhar nos café e restaurantes. Imaginamos como seria a coisa no século XVIII.

    A Maria Andrade achou que o ar arcaico lhe adveio da decoração das contas e caracois barrocos. É curioso, que eu achei que o ar arcaico lhe vem mais do estilo de talha dourada, que a peça pretendeu imitar, que é dos finais do XVII.

    Em todo o caso acredito que estas peças foram produzidas de forma muito semelhante, usando os mesmo moldes, durantes dezenas de anos a fio e é natural que acusem estilos anteriores.

    Abraços e obrigado pelo seu comentário pertinente

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  6. Manel

    Foi bem observado o teu comentário. Confesso que fiquei preso à imagem do Cristo ingénuo e à cercadura em forma de altar de talha dourada, que não reparei no símbolo das chagas de Cristo no Bojo.

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  7. Olá Luís !São lindas as pias de água-benta que mostra . Fizeram-me lembrar uma que havia na casa de minha avó materna e de meus pais ,mas que um dia desapareceu ... Não sei que lhe sucedeu ! Sei que quando no sábado de Aleluia se fazia a bênção da água se costumava levar uma "garrafinha " para casa e se punha um pouco dessa água na referida pia .Quando eu estava com algum "problema de criança "! , ia lá molhar o dedo e benzer-me para não apanhar um ralhete...
    "Muntas Vesitas ",traduzindo..muitos cumprimentos !!!!
    Quina

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  8. Olá Luís
    Lindíssima a pia de água benta! A sua simplicidade e candura impressionam. A sua ingenuidade encanta.Alguns dos elementos decorativos (colunas, arco de volta perfeita e a figura do querubim)lembram os altares de talha dourada e o estilo nacional lusitano.
    É natural que os ceramistas tenham espelhado, nas suas peças, algo do que observavam nos altares das igrejas e delas tenham colhido inspiração.
    Cumprimentos
    if.

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  9. Cara Idanhense

    Obrigado pelo comentário, que me ajudou a perceber um pouco melhor a utilização destes objectos, que a nós, já criados num meio descaracterizado nos escapa.

    Abraço

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  10. Cara If

    tem toda a razão, a pia lembra um altar em talha no estilo nacional lusitano

    ABraços

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