Há uns 4 ou 5 anos, comprei esta meia cómoda de castanho, em estilo D. João V. Chamar-lhe meia cómoda é um exagero, pois apesar das duas gavetas e de reproduzir esse tipo de móvel é uma peça de pequenas dimensões, que nem chega aos 50 cm de altura. Na realidade é uma mesa de costura, em que só a gaveta inferior é verdadeira. A de cima é falsa e o tampo é que se abre.
Não é uma peça antiga. Terá 30 ou 40 anos, mas reproduz com mestria as linhas dos móveis joaninos, com as superfícies curvas, os concheados no saial e os pés com garras segurando esferas.
Os concheados típicos |
Os pés em forma de garra segurando uma esfera |
Gosto dela não só porque evoca com fidelidade o estilo D. João V, um dos períodos de ouro do mobiliário português, mas também porque é uma peça que vem na antiquíssima tradição portuguesa do estrado.
Uma reconstituição da sala do estrado do Museu dos Biscainhos |
Com efeito, na Península Ibérica, durante muitas centenas de anos, as mulheres sentaram-se no chão. Em palácio ou casa nobre existia uma sala apenas destinada às mulheres, que era composta por um estrado, revestido por um bom tapete oriental. No centro sentava-se a senhora da casa e ao seu lado as mulheres mais nobres e nas pontas as criadas ou senhoras de menor importância. Usavam muitas almofadas de ricos tecidos para se sentarem sobre um rico tapete persa ou indiano e costuravam, jogavam, escreviam e comiam em móveis de pequenas dimensões e de baixa altura, tal e qual como este. Este costume que era obviamente de tradição islâmica perdurou até muito tarde nas casas nobres portuguesas.
Móvel de costura para uso no estrado do Museu de Lamego, que mostra como este hábito do estrado sobreviveu até muito tarde. Data dos finais do Século XVIII ou príncipios do Século XIX |
Nos anos 70 do século XIX, Raul Brandão nas suas Memórias recorda a avó e as tias sentadas no estrado da sala da frente onde se dedicavam à leitura.
Casamento Místico de Santa Catarina no Museu Nacional de Arte Antiga. Reparem nas mulheres sentadas no chão |
Conhecemos este hábito das mulheres portuguesas e espanholas de se sentarem no chão no chão através da pintura, que representa cenas religiosas com personagens femininas, que na realidade são réplicas da vida doméstica da época, como este Casamento Místico de santa Catarina, de Josefa de Óbidos, que representa várias mulheres em volta de um bebé, sentadas no estrado e onde não falta um cesto de costura. Os viajantes estrangeiros deixaram também textos escritos detalhados sobre este costume que muito os espantava, como o padre Franciscano, François de Tours, em 1699, ou Laura Junot, no início do século XIX, que descreve Carlota Joaquina e as damas da corte sentadas no chão.
Como testemunhas deste hábito, sobreviveram até aos nossos dias, uma série de pequenos móveis, sempre a uma escala reduzida, como pequenos contadores vindos da Índia, bufetes e claro, mesas de costura.
Mesa de estrado ou bufete petencente ao Museu dos Biscainhos |
Para quem quiser saber mais sobre este velho costume feminino, recomendo os seguintes livros nos quais baseei este texto:
-Museu de Lamego: mobiliário. - Lisboa: IPM, 1999
-Museu dos Biscainhos. Roteiro. Lisboa. IPM, 2005
-O tapete oriental em Portugal: tapete e pintura. Séculos XV-XVIII. Lisboa. IMC, 2007
Olá Luís,
ResponderEliminarMais um retalho da nossa história social que tão bem aqui nos conta, a propósito do seu móvel, muito elegante nas suas pequenas dimensões.
As mesas e caixas de costura são em geral irresistíveis e o mobiliáro para estrado, mesas, tamboretes, almofadões sobre belas tapeçarias mostra como esses espaços femininos, na tradição árabe, acabavam por ser as zonas mais confortáveis dos solares e palácios. Também deviam funcionar como as nossas nurseries - os aposentos das grandes casas inglesas reservados às crianças e suas nannies - como se pode depreender da tela da Josefa de Óbidos. Não sabia é que este hábito se tinha mantido até tão tarde, finais do século XIX.
Já me deu uma ideia para um dia destes mostrar uma caixa de costura que acho interessante, embora já do século XX.
Gostei muito das fotografias do seu recanto com o móvel, têm muita luz e aquele espaço assim fotografado com os azulejos e o estuque na parede parece um palácio... É o seu palácio!
Parabéns pela instalação do Google Translator. É sempre uma mais-valia.
Abraços
Olá Luís
ResponderEliminarMuito bonita e elegante a sua meia cómoda! A decoração mostra bem a exuberãncia dos volumes entalhados, tão característicos do período joanino, bem como as conchas, as aletas e as pernas arqueadas, terminando em pés de bola e garra.
As dimensões reduzidas poderão indiciar uma prova de artista "a obra-prima", executada por um artesão, neste caso um marceneiro, a fim de obter a sua carta de exame e ascender à categoria de mestre.
Parabéns pelo seu post tão exemplarmente desenvolvido.
Cumprimentos
if.
Este pé dito de "garra-e-bola" refere-se sobretudo a um elemento decorativo que se crê de origem oriental e utilizado na Europa, julgo, nos inícios de setencentos na Holanda e depois em Inglaterra, definindo o estilo Chippendale do século XVIII e até invadindo em parte o "Queen Anne", se bem que este último já apresenta uma nítida simplificação deste elemento com o "pé em almofada".
ResponderEliminarClaro que, pela influência, este pé também caracterizou o mobiliário americano do período.
Este elemento deriva da garra de dragão (na Europa, por razões talvez culturais, em vez do dragão preferiu-se a figura mitológica do grifo) que seguraria a pérola da sabedoria (também poderia ser um cristal ou pedra preciosa), apesar de aparecerem outras leituras.
No mobiliário inglês a garra de dragão também se pode transmutar em garra de leão, enquanto que no americano, por exemplo, este elemento dá origem à garra de águia.
Em Portugal este elemento surgiu mais associado à garra de dragão ou águia, e, tal como nos outros casos, sempre terminando uma perna em "cabriolet", e deve ter invadido o nosso mobiliário como influência derivada de Inglaterra, pois em França este pé é pouco popular, aparecendo raramente; o estilo Luís XV, contemporâneo, tem um gosto muito especial pelo "pied-de-biche" ou "pied-de-sabots", o qual entrou na nossa história do móvel como elemento do mobiliário D. José. É algo interessante verificar este parentesco com a arte inglesa deste período, porquanto se sabe da francofilia que invadiu a corte de D. João V, que fazia questão de ser informado ao pormenor pelos seus embaixadores de todos os passos do rei-sol francês e da sua corte.
Esta tua pequena cómoda é muito bonita sobretudo pela riqueza de execução da talha, a qual, apesar de executada recentemente, foi feita com mestria (não é fácil conseguir encontrar mestres que o executem com este requinte). O dimensionamento é muito adequado à tua casa, o que é uma mais-valia.
Havia em casa dos meus pais uma mesinha em teca, de pequenas dimensões, como estas que apresentas, fabricada na Índia, ostentando patas de garra-e-bola, se bem que o tampo estava ornamentado com baixos-relevos de origem francamente oriental ... no entanto, os pés sugeriam os europeus. Este estilo, dada a sua popularidade, estendeu-se pelo mundo
Manel
Manel
ResponderEliminarObrigado pelo teu comentário, que esclareceu muito bem a questão dos pés do mobiliário joanino e a sua origem. Aliás, os pés são um elemento fundamental para identificar os estilos do século XVIII.
Cara If
ResponderEliminarA sua observação é oportuna. Por vezes é difícil identificar uma peça de exame de uma peça destinada ao estrado. Talvez as peças de exame acabassem compradas por clientes que as quisessem nas suas salas de estrado.
Abraços
Maria Andrade
ResponderEliminarO que tem graça nestas peças é contar uma história ou adivinhar-lhe uma história possível ou plausível.
E depois há esta tradição muçulmana que conhecemos tão pouco na nossa cultura e que poderá explicar muitos aspectos do interior das casas senhoriais.
Abraços e aguardamos o post sobre a caixa de costura
Maria andrade
ResponderEliminarSem dúvida que nesta sala do estrado teriam espaço as crianças de peito nos seus berços, ou os bebés gatinhando sem perigo de se magoarem.
No Verão os tapetes orientais eram guardados e colocavam-se esteiras em sua substituição.
Sr Luís
ResponderEliminarSem dúvida alguma o seu blogue é de muita utilidade cultural, cada vez mais me identifico com os seus "posts".
Tenho uma cómoda com os pés em garra, creio que será muito antiga, pois pertenceu a uns Senhores de Coimbra, e foi dada a uma tia do meu Pai. Recentemente veio parar a minha casa. Limpei-a e tratei-a contra o caruncho, passei-lhe um bocadinho de cera, e agora faz parte do mobiliário do meu quarto. Fiquei muito contente ao saber que certamente pertence a um estilo barroco e será do sec. 18. Obrigada por mais esta "alegria"
São Alves
Cara São
ResponderEliminarPor amor de Deus, trate-me por Luís.
Com efeitos os pés em garra com uma bola são típicos do estilo D. João V.
Contudo, tal como esta meia cómoda que aqui mostro, houve muitas réplicas deste estilo, desde o século XIX até aos nossos dias. Algumas dessas cópias são de muito boa qualidade e já ganharam o estatuto de antiguidades.
um abraço e obrigado
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarOlá
ResponderEliminarSim, não tenho a "ilusão", de ter uma cómoda original, mas o facto de ter já muitos anos, ser influência de um estilo, e principalmente ter as "energias" da minha familia, e ser minha, dá-me uma certa felicidade, saber qualquer coisinha que seja da sua história. Obrigada pela ajuda!
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Muito bom os comentários , trabalho a 9 anos com mobiliários e objetos antigos e estava pesquisando sobre os estilos Som joão e Dom José , pois tenho uma mesa com 4 cadeiras e um Buffet com os pés em forma de garra segurando uma bola e o estilo é o Dom joão V .
ResponderEliminarObrigado a Todos
Tito Moraes R.J
Caro Tito Moraes
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário e fico muito satisfeito que o texto e os comentários deste post tenham de alguma forma sido úteis. O estilo D. João V é muito bonito e tanto se encontra em Portugal como no Brasil. Aliás uma boa parte dos móveis deste estilo são feitos com madeira vinda do Brasil, o célebre pau santo, ou Jacarandá, como é conhecido no Brasil e nas ilhas dos Açores.
Um abraço