terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Biblioteca do Solar de Outeiro Seco


Last night I dreamt I went to Manderley again, são as primeiras palavras do admirável romance de Daphne du Maurier, Rebecca e que me ocorrem sempre que me lembro de Outeiro Seco. Tal como a personagem principal daquele livro, muitas vezes regressamos em sonhos a casas que já não são nossas, que estão em ruínas ou já não existem e conseguimos por alguns minutos reviver aqueles espaços quando ainda estavam vivos.

Hoje, regresso novamente a Outeiro Seco para recordar a biblioteca do solar, ou livraria como se dizia no passado. Nos anos 80, a biblioteca foi vendida integralmente a um alfarrabista, provavelmente por um preço irrisório e hoje, o que conhecemos delas, é através do catálogo que o meu pai zelosamente conservou. Para além disso, ficou esta fotografia onde se vê o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão (19.5-1878 a 24-05-1965), sentado à sua mesa de trabalho, onde fazia a escrituração da casa agrícola e dois filmes feitos pelo meu pai, o primeiro de 1964, pois apareço eu, que nasci em 1963 e o meu bisavô, falecido em 1965, e o segundo filme datado dos finais da década de 60. Consegui extrair algumas imagens desse filme, que aqui disponibilizo de seguida.


A biblioteca encontrava-se no corpo nobre do solar (sala nº 41), tinha uma bela vista sobre a rua principal e o pinhal. Estava revestida a estantes, que não eram nada de especial, nem sequer tinham vitrinas, mas o efeito das velhas encadernações a carneira dos livros conferia à sala uma solenidade espantosa. No centro existia, a secretaria que se vê na foto, e no filme vê-se ainda uma livreira e uma meridienne, que convidava ao repouso e à leitura (em Português conhecemos estas cadeiras pelo termo francês chaise longue, muito embora em França sejam designadas por meridiennes). Havia também uma grafonola e uns binóculos.



A minha bisavó sentada na Meridienne. Foto extraída do filme de finais de 60


Era uma biblioteca grande, tinha cerca de 1913 títulos, o que era muito para a época. A maioria dos volumes datavam dos séculos XIX, XVIII e XVII, mas também havia obras quinhentistas e algumas coisas do século XX. Em meados do século XX, os meus avós paternos, a Maria do Espírito Santo e o Silvino da Cunha, fizeram o seu catálogo, pois eram as pessoas da família com maior pendor para as actividades intelectuais. O catálogo está ordenado primeiro por grandes classes, a saber, teologia, direito, história, geografia, livros didácticos, dicionários, enciclopédias e literatura, e depois o segundo critério de ordenação, já é pouco claro. Presumo que pretenderam ordenar alfabeticamente por título, mas a escolha dos artigos que contavam ou não para a alfabetação foi mal feita. De qualquer forma, parece-me que os livros estariam arrumados nas estantes por tamanho, como aliás era comum na época e o catálogo por assuntos remetia para a estante x e a prateleira y. Claro, os meus avós poderiam ter feitos fichas, o que era muito mais prático, mas eram não eram bibliotecários como eu e se tivessem feitos fichas, hoje elas estariam espalhadas por mil sítios diferentes e não conheceríamos o catálogo da biblioteca .

A maioria das obras era de religião, seguindo-se-lhe a em termos de importância a História, a Literatura e o Direito. Como era habitual, no passado, mesmo nestes grandes assuntos laicos, a religião dominava, pois o que encontramos nos assuntos jurídicos é sobretudo direito canónico, na história é a história eclesiástica e na literatura, os grandes clássicos latinos, que eram os exemplos que os clérigos seguiam na arte de bem escrever.

Ainda que rapidamente, folhear o catálogo desta livraria é uma coisa impressionante, Encontramos primeiras edições dos sermões do Padre António Vieira, da Monarquia Lusitana, obras de Tito Lívio, de Suetónio, Horácio e sei lá de que mais autores. Existia também uma edição do século XVIII, de 1794, da Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, o primeiro manual de culinária em língua portuguesa. No segundo filme que o meu pai fez, mostra-se um atlas magnífico, quinhentista, impresso em Antuérpia, cheio de cartas geográficas coloridas, que era absolutamente magnífico. Enfim, era de facto uma biblioteca muito rica.


O atlas, foto extraída de filme dos finais dos 60


Segundo o meu pai, baseado na tradição familiar e no que diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, o grosso da biblioteca teria sido formada pelo meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio, um homem extremamente culto. E esta suposição faz sentido, já que este senhor viveu o período imediatamente a seguir à república, em que as grandes livrarias dos conventos foram vendidas ao desbarato e os bibliófilos compraram a preço de ocasião coisas espantosas. Contudo, não acredito, que tenha sido só ele a constituir a biblioteca. Houve outro antepassado nosso, irmão da minha trisavó, o Miguel José Álvares Ferreira Montalvão (01-3-1838 a 8-9-1890), bacharel em Direito, que era um leitor voraz. Este senhor que advogou em Chaves e chegou a ser administrador do mesmo Conselho morreu louco, sem deixar de descendentes. As circunstâncias da sua morte impressionaram os seus conterrâneos e os jornais locais noticiaram a morte do bacharel louco, que vivia encerrado num quarto cheio de livros. Em suma, é provável, que parte da biblioteca tenha sido formada por ele.

Em todo o caso, hoje já é difícil averiguar quem foram realmente as pessoas que constituíram a biblioteca. Se os meus avós tivessem registado as marcas de posse, que os antigos proprietários foram deixando nos livros, talvez fosse possível conhecer e estabelecer com alguma precisão os vários períodos em que se formou a biblioteca e talvez os responsáveis, porque as velhas bibliotecas são como os campos arqueológicos, formadas por camadas correspondentes a diferentes épocas.

Já que a biblioteca desapareceu, deixo aqui à comunidade dos internautas, que gostam de velharias e outras coisas esquecidas no tempo, o respectivo catálogo. Atenção que o ficheiro é pesado, quase 7 MB
http://viewer.zoho.com/docs/hbHnba

5 comentários:

  1. Há tanto para comentar que difícil é saber por onde começar.Quando percorro o nosso país sempre me instigou o abandono de solares. Má sorte a ruína foi a sina para a maioria deles. Muito por falta de continuidade da fonte de rendimentos e as heranças. Assim, na melhor das hipóteses a venda é o melhor para a divisão da partilha. Melhor sorte tem tido outros solares e palacetes que com os mesmos problemas se aventuraram em pedir subsídios ao Feder e outros organismos para a sua preservação e manutenção. Transformaram-nos em espaços lúdicos de turismo de habitação.Voltaram a ser novamente uma fonte de rendimento e para nós que adoramos revisitar este passado, é o elixir da descoberta que nos transporta a contos de Reis e príncipes em pleno séc. XIX.
    Depreendo o triste fim do solar dos seus antepassados.Pior, é ter sido na década de 8o a venda dos livros. Não quero acreditar que o seu pai, herdeiro, não tivesse escolhido um ou mais livros para ficar de recordação dessa época áurea e no futuro deixar esse legado aos filhos, estarei enganada? Até a colecção do Champalimaud quando foi vendida, os filhos e netos ficaram com peças. Quando se vende por atacado, podem-se sempre retirar as melhores peças. Era o que eu faria concerteza. Gostei de saber que parte dos livros tenham sido provenientes de mosteiros no tempo que o Marquês de Pombal decretou a sua extinção.Confesso que a leitura do post me catapultou até 1971 quando estive no colégio religioso no Monte Estoril, As Salesianas. Era hábito termos tarefas domésticas para sermos boas donas de casa. Uma dessa tarefas era limpar todas as manhãs a biblioteca. Mais moderna, com prateleiras até ao tecto. Infelizmente para mim só espanejava o pó pelas lombada dos livros, não me despertavam interesse.Roubava-lhes bombons. Num dia de Retiro deram-nos autorização para lá nos dirigirmos e escolher um livro. Eu escolhi um sobre a "Puberdade na Mulher", talvés porque não soubesse o que o título quisesse dizer. Na ronda quando apreciavam os títulos escolhidos, eis que fui chamada à sala da Irmã Directora, interrogada com perguntas que não sabia responder. Muito aflita fiquei.Afinal naquela altura ainda era uma menina, nada sabia.Motivo para nunca mais ler nada.
    Desculpe os meus devaneios.
    Compreendo que para si, como bibliotecário, este tema seja tão importante. São os genes, não era o bisavô um eterno apaixonado por livros. Continua a deleitar-me com os seus posts românticos de um passado glamoroso. Quando os leio além de me sentir mais rica, fico por certo também mais feliz. Bem haja

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  2. Esta tua bisavó tinha um ar tão distinto, bonito e elegante que dificilmente se esquece a sua figura.
    Tentei abrir o ficheiro para os títulos da biblioteca, mas não consegui nem à 1ª nem à 2ª, mas, às três é de vez ... finalmente lá consegui.
    Experimento alguma dificuldade em conseguir carregá-lo no meu pc, mas lá chegou finalmente e fiquei cheio de vontade de consultar um sem número de volumes.
    Claro que a porção religiosa deixaria para quem tivesse mais afinidades, que não eu, mas a secção da geografia, geometria (que também os encontrei), biografias e os dedicados à história em geral não me passariam ao lado.
    E encontrei alguns títulos muito curiosos que me fizeram cheio de vontade de os consultar!
    Iria vasculhá-los, sobretudo nestes dias de Inverno, em que o meu sonho de dia perfeito seria o de estar frente à lareira a consultar livros, pesquisar temas do meu foro e escrevinhar!
    Sei que o posso fazer (pesquisar) com o meu pc, e até posso ter lareira, e até possuo o meu canto muito confortável, mas o encanto do papel, do aroma inconfundível que possui um grande número de livros acumulados num só local, o espiar das gravuras, as sombras sobre as lombadas alinhadas, dos castanhos, orgânicos, que preenchem fila após fila, pontuados aqui e ali pelos dourados, do encanto mágico que emana das obras poeirentas que ali estão à nossa espera, das anotações que alguém mais fez antes de nós, isso não possuo, e faz-me falta!
    Não o poderei fazer na tua biblioteca, já sei, mas fica o sonho!
    Manel

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  3. Muito obrigado pelos vossos comentários!!!!

    O que aconteceu com Outeiro Seco é um reflexo de um problema que afectou todo o país, o desordenamento do território, isto é a população concentrou-se no litoral do País, na faixa Porto-Lisboa e o interior, a agricultura e as velhas casas ficaram abandonados às silvas.

    Os anos 80 eram tempos diferentes e na época nem sequer existia uma boa rede de bibliotecas municipais, a quem a família tivesse podido fazer uma doação. Também não sei se o município de Chaves seria capaz de acarinhar tal doação. A Câmara é a actual proprietária do solar e nada deixa-o estar numa ruína.

    Pela minha parte, só me resta tentar usar as memórias e os escritos do meu pai e tentar divulga-os aqui, no espaço virtual.

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  4. João Paulo Levezinho15 de janeiro de 2010 às 00:39

    Olá Luis...mais uma vez as tuas histórias familiares me fascinam...gosto imenso de as ler...é bom saber que ainda existem pessoas como tú que possuem laços com o passado para compreender este (difícil) presente.

    Grande abraço!!!
    João

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  5. João Paulo
    Obrigado pelo teu comentário. Gosto sempre de te ver neste blog.

    Abraço

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