Conhecedor dos meus gostos por estas temáticas religiosas, o Manel ofereceu-me há uns tempos este registo encantador, que representa a Nossa Senhora da Piedade da Merceana. A julgar pela decoração, que emoldura o registo, de gosto neo-clássico, a obra foi impressa nos finais do século XVIII. O impressor tinha oficina na Rua Nova do Almada, nº 77, em Lisboa (ainda hoje um local tradicional de livreiros em Lisboa, basta pensarmos, na Ferin, na antiga Livraria Luso-Espanhola, espaço agora ocupado pela Almedina).
Este registo estranho, representa a Nossa Senhora da Piedade no alto duma árvore e em baixo, um boi e um pastor ou lavrador em atitude de oração. Representa uma lenda formada talvez no século XII, em que um boi, chamado Marciano, todas as vezes que ia a pastar, abandonava a manada. O lavrador ou pastor um dia seguiu-o e descobriu que ele se recolhia junto a um carvalho, em adoração a Nossa Senhora da Piedade. O culto cresceu, o próprio boi deu o nome à aldeia - a Merceana - onde se construiu uma ermida, que passou a atrair círios de romeiros vindos até de Lisboa, pelas festas do Espírito Santo. A Ermida deu lugar a uma sumptuosa igreja por ordem da Rainha D. Leonor, em 1520. No século XVII, a igreja voltou a sofrer obras, nomeadamente uma balaustrada magnífica, com madeira exótica do Brasil, para proteger os crentes duma estranha cerimónia, que nesse tempo decorria, a bênção dos bois dentro da igreja. O templo continuou a ser objecto de mais beneficiações pelo século XVIII fora, mas o que me interessa mais nesta história toda do boi, da Senhora da Piedade no alto dum carvalho é o paganismo latente e escancarado, que o Catolicismo romano, lá teve que integrar e aceitar.
Segundo Moisés do Espírito Santo, no seu livro revolucionário, fascinante e talvez delirante, Origens orientais da religião popular portuguesa. Lisboa: Assírio e Alvim, 1988, esta história corresponde mais ou menos a um padrão, que se aplica a muitos cultos populares marianos portugueses.
Em, primeiro lugar estas Senhoras aparecem sempre fora das povoações em terrenos ermos, descampados, grutas, rochas e em troncos de árvores, tais como carvalhos, sobreiros, azinheiras e zambujeiros. Nunca em árvores cultivadas de frutos comestíveis. O conceito de sagrado é o de separado dos locais do homem e do quotidiano. Estas Senhoras corresponderão a antigas divindades locais, veneradas ao ar livre e que não querem ter nada a ver com a igreja matriz, onde se pratica um cristianismo mais oficial. Mais, quando alguém as tenta levar para a matriz, as senhoras fogem misteriosamente e refugiam-se na gruta, ou no tronco oco de onde apareceram e só ficam satisfeitas, quando se lhes levantam um templo, ali, no local mágico onde são adoradas há milénios.
Por outro lado, segundo interpretação do mesmo autor, as senhoras da Piedade são a mesma coisa que as Senhoras do Pranto e correspondem a um culto e ritual antiquíssimos, da religião ancestral dos povos da orla do Mediterrâneo. Nessa Religião, havia um Deus masculino, Thamuze, relacionado com a água e os rios, que morria todos os anos, em Junho e cuja morte era assinalada por grandes manifestações de tristeza. Do programa desse ritual faziam parte os prantos proferidos pelas mulheres. Thamuze tinha um mãe, a deusa Ishtar, que todos os anos chorava o seu filho morto (ou marido) nos braços. Da realização desta cerimónia dependeria o êxito da colheita do ano seguinte. Deste culto, derivam os célebres círios, que são deslocações de aldeias a certos santuários, para a obtenção de favores agrícolas. O cristianismo teria adaptado um culto antiquíssimo e rebaptizado os protagonistas.
Por outro lado a cerimónia de bênção dos touros dentro da igreja é provavelmente uma reminiscência de um desses rituais antiquissimos de sacrifícios de bois, que encontramos menção em todo o mundo antigo da orla do mediterrâneo.
Enfim, não sei se esta minha interpretação corresponderá a uma verdade histórica, mas a imagem mostra-nos uma religião tão ancestral, que é fácil deixarmo-nos levar pelo entusiasmo e encaixar-lhes hierogamias, deuses antigos e cerimónias pagãs estranhas.
Olá Luis
ResponderEliminarConfesso que me começo a encantar com os seus fantásticos testemunhos sobre as mais variadas temáticas de cariz religioso e profano.
Este em especial,exaltou-me porque me fez lembrar a minha avó paterna, também ela Piedade.Minha madrinha de baptismo, como era hábito na época tinha o condão de dar o seu nome à sua afilhada. Porém,a minha mãe não gostando do seu nome decidiu em boa hora dar-me o nome de Maria Isabel, e assim ficou a minha graça.
Há quem diga que os nomes das pessoas tem uma consonância com a personalidade que cada um irá perfilar na sua vida.
A talhe de exemplo, sempre ouvi dizer que os "Luises" são excelentes pessoas. De facto todos os que conheci, assim o atestaram.
Quanto à minha avó Piedade teve uma vida muito infeliz.Mulher com mais de 1,80 de cabelos negros até aos pés,deslumbrante de tez branca e olhos grandes,a mais bonita de todas as suas irmãs, tinha umas mãos de oiro para bordar à máquina.Deixou-se encantar por um magistrado da comarca, mas no tempo não era visto como um homem de bem, os pais escolheram-lhe um pedreiro, homem grosseiro e rude para marido. Fugiu dele na noite de casamento. Vida insípida sem amor, resignada, abafava as suas mágoas na adega.
Tenho péssimas recordações. Mas era a minha avó e madrinha e eu podia também me chamar de Piedade.
No dia de Páscoa abri a minha casa à visita pascal. Enfeitei a entrada com flores brancas e o oratório com alecrim. Usei o cálice da Vista Alegre de 1824 para pôr a água benta com o raminho de oliveira. Era desta avó, que viveu mesmo na casa defronte à minha.Gostei tanto de o ter feito, assim sem pensar!
Obrigada por me fazer recordar tais emoções.
O Moisés do Espírito Santo é algo hiperbólico e é para ser lido com cuidado, como aliás bem o sabes!
ResponderEliminarFaz extrapolações que me colocam os cabelos, que, aliás, não tenho, em pé!
No entanto as suas teorias são encantadoras e enfeitiçam! Apetece ser levado por elas sem quaisquer pejos!
No entanto, alertado, lá vou fazendo finca-pé, e leio o que ele escreve com alguma reserva, mas acreditando em várias das suas teorias que as tomo como plausíveis, à falta de possuir outras melhores, sobretudo sobre os cultos ancestrais situados em locais ermos - recordo o culto existente na Capela de N. Sra. da Estrela, próximo de Redinha (que aliás, Moisés do Espírito Santo refere), sítio ermo no topo de uma serrania, com culto girando à volta de uma imagem da divindade, em pedra, e de uma nascente de água (mais uma vez a água!) existente em lapa bem mergulhada na penedia calcária, à qual foi adicionado em época, que penso ser medieval (pelo menos a edificação original, com base, quiçá, num anterior culto de origem pagã?), um edifício com muros em cantaria, se bem que a edificação hoje existente é mais recente (creio que do século XVII) e cheia de acrescentos, horríveis, devo salientar, sobretudo um medonho painel de azulejos que, cheia de desvelos, a edilidade, creio, ali colocou! (devem ter considerado que a paisagem, de cortar a respiração de masjestosa, e o edifício, que na sua simplicidade austera é belo, mereciam ser mutilados e desfeados! Beleza em demasia cansa e fere!!! E se bem o pensaram melhor o fizeram!!! E como as autarquias são senhoras e donas do que devia de ser de todos nós, e às populações lhes falta cultura, o resultado é o que está lá bem patente! verifiquem por vós mesmos:
http://www.concelhodepombal.com/historiaredinha.htm#capnsestrela).
Faz-se romaria a esta capela na Primavera, tal como convém a todo o bom culto pagão!
Não muito longe deste local, mas agora no vale, há outro onde o culto se dedica a uma outra N. Sra., desta vez do Pranto, com culto celebrado a 15 de Agosto, já mais conciliado com o cristianismo.
Neste local erigiram uma pequena capela, algo rústica e igualmente singela, e onde pontua, como manda a tradição nos dias que correm, um sino electrónico que, para meu desgosto, oiço por vezes bater as horas!
Vou tendo cada vez mais receio em visitar estes locais, medo de ver desaparecer toda esta simplicidade refrescante e ver surgir mais outro painel de azulejo hediondo, uma torre sineira para alojar a inevitável aparelhagem electrónica, ou talvez os azulejos de casa de banho a invadir qualquer revestimento parietal! Nada disto está longe de acontecer, e se não o fizeram já talvez seja pela simples razão de estarem à espera do próximo peditório para o sugerirem à população à laia de "melhoramentos"!!!
Alongo-me, já sei
Manel