terça-feira, 30 de março de 2010

Pequenos anjos


Recordo-me que em miúdo, antes de atingir os seis anos, passei uma temporada em casa dos meus avós paternos, o Silvino e a Maria do Espírito Santo. Embora não tivessem sido uns pais carinhosos para os seus filhos, fizeram-me gostar daquela temporada, da qual guardo algumas das recordações mais antigas que tenho. A minha avó Mimi acordava-me sempre de manhã, para eu ver o “solinho” e servia-me papa maizena ao pequeno-almoço, coisa que eu ainda hoje adoro.

Devo ter passado por lá algum tempo, pois frequentei o Jardim-escola João de Deus naquela cidade. E claro, tenho ideia que era o meu avô Silvino quem andava comigo pela cidade de um lado para o outro de mão dada. Num dia, vimos uma procissão desfilar na cidade, creio eu que pela rua de Sto. António e reconheci no meio do cortejo um coleguinha meu do jardim-escola vestido de anjinho. Achei tudo aquilo tão bonito, que fiquei cheio de pena de não ter também umas asinhas e uma fatiota toda branca de anjo.

As crianças gostam de vestir fatos de anjinho e nesse aspecto o ritual católico é muito eficaz, porque atrai com o seu cerimonial crianças que nem sequer receberam uma educação religiosa. Há cerca de uns 15 anos, a minha sobrinha Isabel, que na altura não era baptizada, não sabia sequer distinguir o Santo António do Cristo, quis desfilar na procissão de Vinhais vestida de anjo. A minha mãe e a minha tia Maria Adelaide, com a sua paciência toda, restauraram um fatinho de anjo antigo, que tinha pertencido à minha mãe, uma coisa em seda verde dourado, com um corte segundo a moda dos primeiros anos da década de 30 e umas asinhas em penas, e lá foi a Isabel toda orgulhosa e feliz pela vila fora, acompanhando a procissão, vestida com o seu fatinho fora de moda e de outros tempos, sem reparar sequer nos olhares de estranheza das outras meninas, que essas sim, tinham umas roupas de anjo contemporâneas.

Os pequenos anjos

Há uma fotografia terrível da minha mãe vestida com esse fato de anjo, tirada em meados dos anos 30, por ocasião do falecimento de uma menina, que desconheço quem foi. Tenho uma vaga ideia da minha mãe me contar, que a obrigarem a ela e a outras meninas da mesma idade da morta a figurarem nesta espécie de encenação fúnebre junto do caixão, para tirarem a fotografia. A minha mãe é a última criança do lado direito, (é igual à minha filha Carminho), com uma tiara e está com um ar assustado e infeliz. A menina mais alta de olhos muito claros é a minha Tia Chica, a sua irmã mais velha, que está também com ar díficil de descrever

Esta fotografia, por mais macabra que pareça, fascina-me. Recorda-me o melhor filme que para mim, Felini alguma vez realizou, os Julieta dos Espíritos. Neste filme Julieta é atormentada muitas vezes por um sonho, em que se vê na infância, numa representação teatral do colégio de freiras, em que faz de mártir cristã, toda vestida de branco e que está preste a ser grelhada viva numas chamas de papelão. Este sonho atormenta-a várias vezes ao longo do filme. Na cena final, Julieta já mulher adulta sonha novamente com a macabra representação religiosa, mas descobre uma pequena porta escondida no quarto, entra, descobre a menina amarrada na grelha, prestes a ser queimada e corta-lhe as cordas dos pulsos e dos pés e liberta-a a menina foge em liberdade.

Pudesse eu fazer o mesmo nesta fotografia, entrar nela e deixar fugir a minha mãe e a minha tia e dar-lhe mais umas horas de uma infância, que já perderam irremediavelmente.

9 comentários:

  1. Olá Luis
    Adorei o perfil comparativo que traçou de mim e o Barroco.
    Nada entendo de enigmas, mas ele há coisas do diabo. Não é que hoje por duas vezes a rever o comentário, o perdi. Teimosa vou no terceiro e como era extenso.

    Oportuno o tema escolhido em vésperas de Páscoa.

    Sem saber a idade da sua mãe acredito que não deve andar longe da minha e nesse contexto também eu vivi os mesmos rituais e tradições lidas e relidas em missais caducos fora de tempo.

    Bom, foi lembrar-me e perder-me a recordar.
    Também eu "anjinha" fui pagadora de promessas. Vestida com roupas de aluguer feitas em cetim branco e incómodas asas ornadas com penas de pato. Um belo dia fartei-me de fazer de "anjinho", aí resolveram vestir-me de "Sagrado coração de Jesus", vestida de vermelho reluzente com tiara em latão em jeito de aura de Santo, na palma da mão um pequeno e delicado coraçãozinho que cedo descobri ter um buraquinho junto à bordadura em cordão. Derreti-me num prazer maquiavélico em deixar o rasto de pózinho sobre as flores prostradas no chão no desfile da procissão.

    Apesar do retrato apresentado revelar uma cena macabra, o texto eleva-nos para vivências sentidas naqueles tempos.

    Também eu em 70 então no colégio de Ansião e na descoberta dos minerais alguém alvitrou irmos fazer espeleologia numa gruta ali perto.
    Alegres, sorridentes quando chegámos não passámos da entrada, inexperientes nem lanterna tínhamos levado. No regresso de mãos vazias mas contentes na folia atrasámos-nos e o último transporte para 2 dos colegas já tinha passado.Só lhes restava ir a pé, apanharam uma boleia e o imprevisto aconteceu, um deles faleceu.
    No dia seguinte todo o colégio foi em romaria de cabeça baixa com ramos de flores brancas percorrer o seu último trajecto, coisa de 5 km2 e assim nos despedimos tristes do Diamantino.

    Vestida assim como as donzelas do retrato só mesmo na minha comunhão solene. Ai o fato foi alugado em Pombal. De grinalda parecia uma pequena noiva. Também eu tenho uma foto desse dia com a minha única irmã ao meu lado de "trombas" e eu com ela porque queria o retrato só para mim.

    Soltei-me mais uma vez.
    Agora estou em ânsias para ir até às minhas raízes . No imediato sonho ir até à serra de Alvaiázere onde gosto de apanhar molhos de alecrim por entre odores de tomilhos e oregãos para enfeitar o meu oratório.Desfrutar idílico cenário que por segundos me faz lembrar daqueles que gosto e já fazem parte dos meus dias.E são tantos. De lá endereço beijos que esvoaçam na crista do vento em direcção ao mar e aí tomam várias direcções.

    Sei que perdi tempos na minha infância...tal como a sua mãe e tia...e tantas outras. Porém, tenho ganho uma a uma com a sua leitura que provoca em mim dobras de lembranças que me enchem e preenchem o dia.
    Mérito seu!
    Dispersei-me...sei...que fazer se me encanto com recordações!
    Boa Páscoa para si e Manel assim como para todos os habituais comentadores deste excepcional Bolg
    Isabel

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  2. Ai Luís, o filme, aliás belíssimo, chama-se "Julieta dos Espíritos", onde pontua uma das minhas actrizes favoritas, a Giulietta Masina, companheira de vida de Fellini (várias ocupam esta preferência, mas esta destaca-se talvez pela expressão revelada pelos olhos e pelos modos de uma doçura algo inesperada, em contraposição com uma voluntariosa e temperamental Anna Magnani, que também pertence ao meu panteão).
    A tua filha parece "tirada a papel químico" da tua mãe ... não é em vão que se partilham genes! E neste caso a partilha é quase assombrosa!
    Os "fatos de anjo" constítuiam uma das fontes de rendimento da minha avó, que os fabricava em cetim branco, juntava-lhes uma estrutura em arame revestido de tecido ao qual eram pregadas penas sabe-se lá de que galinácio, completados com um véu em tule branco!
    E, segundo consta, teve muito sucesso pois tornou-se conhecida em todas as romarias da região, muitos quilómetros em redor, apesar da sua religião ser meio desconhecida ... nunca me lembro de a ter visto dentro de uma igreja!
    Mas que tirava partido de todas as festas religiosas lá isso tirava! Recordo que ela me frisava, sempre que eu me mostrava céptico, que havia festas onde conseguia fazer cerca de 500$00, o que para os anos 50/60 era mesmo uma quantia avultada. Claro que a par dos de anjinho, também alugava fatos de S. Tiago, S. João e de outras "divindades" das quais não me recordo hoje. Ainda me lembro de ver no fundo de baús existentes na casa da aldeia restos destes fatos que a minha mãe, que professava outra religão de carácter mais austero, fez desaparecer.
    Manel

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  3. E, todo este alagaviado fez-me esquecer de desejar uma boa Páscoa a ti, à Maria Isabel e, por extensão, a todos os acompanhantes deste blog
    Manel

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  4. Muito obrigado pelos vossos comentários sensíveis. Boa Páscoa a todos

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  5. Olá Luís, olá todos
    Também eu, na minha infância fui vestida de anjinho e devo confessar que não gostei nada da experiência :) Desde que os meus pais decidiram que eu participaria naquela procissão (por altura da comunhão solene do meu irmão)senti-me desconfortável, mas era demasiado criança para argumentar o que quer que fosse.Chegado o dia lá fui, vestido longo, asas,grinalda, e mãos postas como convinha...Nunca me identifiquei com aquele quadro.O pior foi quando chegaram as fotografias passadas umas semanas e me vi.Meu Deus!!!A minha grinalda tinha deslizado,pelo meu cabelo liso, estava à banda, tipo boina e eu estava um anjo perfeitamente trapalhão :)Hoje rio-me, mas na altura não achei piada.
    Acho impressionante a foto das crianças à beira do caixão da menina morta. Mas parece que foi um hábito comum nessa época.Li em tempos um artigo, sobre a construção de cenários para esse tipo de fotografias, onde muitas vezes punham os mortos simulando uma actividade do seu dia-a-dia.Felizmente vão longe esses tempos.
    Vai longa a conversa.Uma boa Páscoa para o Luís, Manel,Isabel e todos que possam vir a ler este comentário.
    Maria Gabela

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  6. Cara Maria Gabela

    Obrigado por partilhar a sua recordação de menina vestida de anjinho.

    Antigamente, a morte não era escamoteada do quotidiano como nos dias de hoje. As pessoas celebravam a morte, os sinos tocavam a defuntos, toda a gente sabia quem tinha morrido na vila ou aldeia e todos participavam nas manifestações fúnebres, mesmo as crianças, o que para nós é verdadeira violência. Também as taxas de mortalidade eram altas e todos tinham que se habituar a vêr partir prematuramente filhos ou irmãos.

    Abraço e venha sempre

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  7. Caro Manuel Poppe

    Muito obrigado pelo seu comentário. Vindo de si é um elogio.

    Aliás, já tive o prazer de o conhecer pessoalmente, no tempo em que esteve em Roma.

    Abraços

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  8. Optima materia!

    Boa fotografia! embora estranha...

    Tambem gosto de antiguidades e genealogia..

    Um dia destes faço um blog para expor as minhas peças.

    Cumprimentos

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  9. Caro Teixeira

    Obrigado pelo seu comentário e espero contar consigo mais vezes neste blog

    Abraços

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