Abusando da paciência dos que não gostam de Cristos, volto outra vez à carga com os crucificados, que fazem as minhas delícias. Tenho este registo muito bonito, representando ao centro um Cristo muito ingénuo e no lado esquerdo, uma Santa Catarina de Alexandria, facilmente identificável pelos seus atributos habituais, a palma de mártir, a roda dentada na qual foi supliciada e a espada que a degolou. Do lado direito da cruz, há um escudo com elementos iconográficos relativos à referida Santa, a roda dentada, a palma de mártir, a espada e a lança. Julgo tratar-se do escudo da irmandade ou confraria que este belo registo capeava. A composição está envolta numa moldura onde de cada lado dos cantos superiores despontam duas açucenas (Lilium Candidum L), flores que representam a pureza e a virgindade de Maria.
A moldura e estas flores dão a esta composição um certo de natureza morta de Josefa de Óbidos, que tinha uma predilecção especial pelas açucenas. Reparem por exemplo no encantador cordeirinho pascal do Museu de Évora, cujas açucenas destaco em pormenor. Aliás, esta é uma das razões que me leva a crer que esta gravurazinha é logo do início do século XVIII ou mesmo do até mesmo do Séc, XVII.
Relativamente a Santa Catarina de Alexandria, a sua história é muito curiosa. Terá nascido em 287, como o nome Hécata (posteriormente corrompido), no Egipto, em Alexandria, um dos grandes centros intelectuais no mundo antigo, no seio de uma família nobre e na juventude tornou-se uma rapariga culta, que lia nada menos nada mais do que Platão!
À sua volta giram toda uma série de lendas fantásticas, que se tornarão mais tarde temas clássicos da pintura europeia do renascimento e da Idade Moderna. Numa dessas histórias, Catarina afirmou que só se casaria com alguém que a superasse em beleza, virtude e sabedoria. A sua Mãe, Saninela, uma cristã em segredo enviou-a para perto dum Eremita, Ananias, onde a jovem teve uma visão, segundo a qual se encontrou com a Virgem e o Menino e se casou misticamente com Cristo, convertendo-se à nova religião. Esta cena deu origem a um tema popular da pintura europeia, o Casamento Místico de Sta. Catarina. Veja-se o exemplar do Museu Nacional de Soares dos Reis da autoria de Josefa de Óbidos
A jovem Catarina viveu em pleno século III, numa altura em que as autoridades romanas perseguiam ferozmente os cristãos e não tardou nada que o Imperador Maximino a encarcerasse, mandando um batalhão de sábios para tentar convencer a rapariga a renegar o Cristianismo. O que acontecia é que Catarina era tão convincente e sábia, que convertia a sua fé todos que tentavam fazer com que abjurasse da sua fé. O Imperador perdeu a paciência e mandou-a supliciar numa roda com lâminas. Não se sabe o que aconteceu, mas a roda desfez-se em estilhaços e a nossa Catarina ficou ilesa. No entanto, as torturas continuaram até que Catarina rezou a Deus para pôr fim aos seus suplícios e foi então decapitada, tendo os anjos levado o seu corpo para o monte de Jebel Katarina da Península do Sinai. (ver pintura de autor anónimo do Museu Nacional de Arte Antiga)
Mas, o que é mais curioso disto tudo é que os modernos historiadores crêem que esta personagem lendária cristã, mais não é do que a reminiscência da existência da célebre Hipácia, a filosofa neo-platónica, que foi lapidada por fanáticos cristãos.
Caro LuisY
ResponderEliminarDei especial destaque ao Registo apresentado.
Muito pelos contrastes do tom cinza ou séptia
( o seu vocabulário e o do Manel deixam-me completamente embasbacada, é uma delícia devorar a vossa escrita... e também a palma nas mãos da Santa Catarina.
No imediato transportou-me até Espanha na semana santa com as suas deslumbrantes procissões de andores dourados, grandiosos a ombros que cambaleiam em jeito de dança por entre fileiras de irmandades vestidas de branco ornadas com palmas nas mãos.
Acredito que terá muitos dons...
Me confesso!
Conseguiu despertar em mim um dom especial.
Através da sua leitura assídua e dos comentários do Manel, tenho aclarado o meu gosto escondido pelo místico e espiritual.De repente comecei a sentir um gosto peculiar, intenso, que quer mais e mais.
Afinidades?
As faianças,azulejos pombalinos,móveis e outras velharias, memórias da família ,da infância, viagens, passeios de bicicleta, serras e castanheiros.
Tem sido tal o fascínio que me inscrevi para acesso à faculdade.
Inicialmente escolheria o curso de História. Lendo o livrinho de apoio e o que mencionei atrás, despertou-me inscrever no curso de História, Cultura e Artes.
Julgo que será mais genuíno, tem mais consonância comigo e com o que comungo nesta vida.Agora será que passo no exame?...Só sei que tenho de ter força de vontade e estudar!
Conheço a obra de Josefa d'Óbidos. No entanto pouco a valorizava, muito por falta de conhecimento.Ao rever o quadro místico do casamento de Santa Catarina, interiorizei que tenho muito para aprender e descobrir sobre arte.Só apreciava os tons e a sobriedade do traço da artista à época.
Do título do post gosto sobretudo do nome da mártir Catarina de Alexandria.
Fazendo jus à minha avó materna Maria da Luz que adorava as rosas de Alexandria ,flor com muitos espinhos, pétalas pálidas, suaves e de aroma inigualável ainda hoje, ao invés das açucenas cândidas, mas de aroma mui forte.
Nunca me imaginei a comentar um post sobre esta temática.
Interessante, são as mudanças que sentimos tão freneticamente e a vontade em lhe dar asas...
Desculpe tanta frontalidade...sou mesmo assim!
Sempre o reaproveitamento do passado para assegurar o futuro, assim fez o catolicismo e todos os regimes que quiseram ter sucesso na sua implantação junto das populações ocupadas.
ResponderEliminarDe todos é conhecida a utilidade deste sistema.
Os deuses egípcios reaproveitados pelos gregos, os gregos pelos romanos, os romanos pelos cristãos (ainda que no cristianismo os deuses sejam substituídos pela coorte de santos) e sempre num continuum que é muito sensato, pois não provoca grandes fracturas na tradição da vida das populações, antes a melhora e enriquece, ainda que à custa de algumas, indispensáveis à mudança, convulsões socio/políticas.
Este processo, ainda que pareça harmonioso, está no entanto eivado de hecatombes na vida das populações em causa (as mudanças estão sempre associadas a procesos activos de substituição de predominância de classes); a fractura mais acentuada, no que toda à Ibéria, reside na passagem da civilização árabe para a cristã, não esquecendo, neste processo, os judeus, que culminou, como é do conhecimento generalizado, nas diásporas (refiro-me concretamente às que tiveram lugar ao longo da reconquista dos reinos ibéricos).
Bem entendido, há reaproveitamentos quer da tradição judaica e, mais predominante, da árabe, no entanto o deslocamento de populações que a isso obrigou a implantação do sistema político dominado por cristãos, foi apreciável para o tempo, e não me refiro só ao esvaziamento, experimentada pelos reinos cristãos, de uma elite que detinha o poder económico e intelectual, mas ao do das tradições populares, de que guardamos hoje, felizmente ainda, muitos vislumbres.
Toda a religião pode ser encarada como uma arma de controlo de populações, através da instituição/imposição de ideias, normas de conduta social e política e, em última instância, artística.
O gosto pela arte dita "sacra" é assim o concluir de todo este processo, porquanto é comum a todos, qualquer que seja o credo que comunguemos.
Esta Santa Catarina, e é afinal a ela que me queria referir, foi uma das primeiras figuras de que recordo reconhecer perfeitamente os atributos, sobretudo a roda dentada, a qual é muitas vezes representada com requintes de malvadez (a imaginação artística é tanto mais rica quanto se trate de dramatizar e excitar a religiosidade da imaginação dos crentes! Afinal trata-se de um processo de controlo!).
Funcionou perfeitamente comigo, pois sempre foi uma das minhas favoritas ... vá-se lá saber porquê (aqui prefiro nem conjecturar!).
anel
A Isabel faz lindamente em ir para a Faculdade. Eu tirei o curso de História com um prazer, que poucas vezes voltei a experimentar.
ResponderEliminarA Josefa de Óbidos é uma pintora com um charme irresistível, sobretudo as suas naturezas mortas, com frutos, flores, barros e doces. Há muitos anos trabalhei na organização duma exposição de arte para levar a Paris uma selecção de obras da Josefa de Óbidos e a esse propósito visitámos o Museu Nacional de Arqueologia e a conservadora, que nos acolheu, especialista em cerâmica, tinha marcado com “post it “todas as páginas dos catálogos sobre a pintora onde apareciam representados barros ou faianças e era um espectáculo fascinante. Digo-lhe isto, porque sei que a Isabel adora cerâmicas.
Abraço
Luís M
Manel
ResponderEliminarPraticamente até aos finais do Século XVIII toda a arte europeia está dominada pelo cristianismo e há que estudar esta religião para perceber a pintura, a escultura ou a arquitectura desses períodos. Também é fascinante o fenómeno de como o cristianismo foi erguendo-se sobre as religiões pagãs ancestrais ou sobre a filosofia clássica, aproveitando ou reutilizando os seus conteúdos, umas vezes de forma pacífica, outras vezes de forma violenta.
O caso de Sta Catarina é muito exemplar. Afinal uma das santas mais populares do Cristianismo é um eco longínquo da existência da Hipácia, o último clarão que a filosofia helénica produziu, antes de se ter tornado definitivamente uma disciplina sem grande brilho ao serviço da justificação dos dogmas cristãos