quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O velho forno de pão do Solar dos Montalvões


Não sei se ainda existirá, mas o forno de pão ficava logo à entrada, do lado esquerdo, quando se entrava no pátio grande do Solar. Ao lado do forno existia uma enorme bancada em pedra, que em miúdo julgava ser um banco, mas que hoje sei que servia como mesa de apoio, para quem estava a cozer o pão.

Voltei a lembrar-me da sua existência há uns tempos, quando andei a ver fotografias do Solar, datadas mais ou menos de 1990, em casa do meu pai e fiquei muito supreendido porque reparei num pormenor, que em miúdo nunca me tinha chamado à atenção. Existia uma cruz moldada no topo, o que, segundo me explicou o meu pai era uma característica típica dos fornos ali da zona.

Para nós, que compramos pão no supermercado, este alimento não tem qualquer valor transcendental. É qualquer coisa que se tira do congelador e se põe no micro-ondas. Contudo no passado, na vida desta aldeia e das outras todas em Portugal, os actos mais prosaicos como cozer o pão ou mesmo come-lo estavam revestidos de um lado sagrado. Li agora há bem pouco tempo no livro “Outeiro das lembranças”, uma série de ladainhas que as mulheres diziam, enquanto amassavam faziam o pão. Deus te acrescente, em louvor da Virgem Maria, um pai nosso e uma Avé Maria, era por exemplo uma várias rezas que se faziam e que mostra bem o lado sagrado do acto de fazer pão, principal fonte de alimento e sobrevivência de uma parte da humanidade, desde a descoberta da agricultura, nos tempos do Neolítico. Mesmo à mesa, o pão tinha uma conotação religiosa com a última ceia e a Eucaristia. Nunca se fazia uma refeição sem pão, nem nunca se colocava este de pernas para o ar, pois todos sentiam que ali estava qualquer coisa de sagrado que não se podia desrespeitar.

Fazia pois todo o sentido colocar também uma cruz no topo do forno. Hoje já estranhamos estas cruzes, pois vivemos alheios ao Plano Divino ou talvez Este se tenha desinteressado do nosso mundo.

Tentei procurar informações sobre estes fornos naquele livro em 3 volumes a Arquitectura Tradicional Portuguesa, mas não encontrei qualquer referência, que me ajudasse a saber a sua origem, como eram feitos ou como funcionavam. Encontrei foi a descrição de grandes casas semelhantes ao solar de Outeiro Seco, em que todas as dependências relacionadas com as actividades agrícolas (espigueiro, lagar, alfaias agrícolas, fornos de pão, habitação de caseiros) estavam encerradas num pátio. Os autores justificam essa opção de construtiva com a segurança. De facto, que melhor solução do que fechar gado, milho, lagar, galinhas entre 4 paredes num País que nem sempre foi seguro e numa região onde até há bem pouco tempo os lobos não eram animais em vias de extinção.


A seta aponta o grande pátio dedicado as actividades agrícolas na fachada Sul da casa

7 comentários:

  1. Luís
    A primeira vez que vejo um forno a lenha com a cúpula em bico, sempre as conheci em redondo
    Também a abertura do forno, as que adoro são as de origem visigótica em triângulo
    Que dizer da cruz, nunca tinha tal visto, agora das ladainhas, essas sim, ainda me lembro delas assim como do corropio das mulheres que nas mãos levavam a bacia de faiança com o crescente para a vizinha fazer a broa coberta com um pano de estoupa
    Catapultou-me para lembranças idas quando o meu pai nos anos 60 mandou fazer um poço no quintal e com o barro que de lá saiu fez para agrado meu e da minha irmã um fornito alto com telheiro, o meu avô ensinou-nos a fazer broinhas de azeite, de açúcar, mel e chouriça
    A minha família paterna é descendente de padeiros, ainda me lembro da padaria dos meus bisa e dos avós
    Saudades do cheiro a lenha e do cheirinho de pão quente, dos papo secos com maminhas, do pão de coroa que levava uma folha de couve para não se queimar e do bolo de noivos...
    Então e os assados?
    Esbeltos leitões entalados num pau de loureiro, cabrito na assadeira de barro, chanfana em tacho de barro preto, galinha corada, tigelada num tacho não vidrado, no terreiro do forno,assar batata doce, castanhas,freiras(pipocas) e frades, chamávamos aos grãos que não abriam
    Saudades pelo Natal da minha irmã, chova ou faça sol convida-me e lá vamos nós até a uma das suas courelas buscar ramagens para acender o forno, fica no ponto quando a cúpula fica alva
    Aqui nesta zona a tradição de cruzes ainda persiste apenas na massa do pão quando se deixa a levedar, faço-as com a mão ao alto
    As cores do brasido vivo são tochas em tons laranjas que nos aquecem , elevam, transcendem
    Há dias fui até Montejunto, no cume ruínas dum convento, pois lá descobri o sítio onde se fazia o pão, vi ainda restos da bancada com os alguidares em barro, um vidrado em verde,outro amarelo encravados na argamassa de cal, à socapa trouxe um niquito...sei que não devia, mas que fazer se sou atrevida!
    Tal já tinha visto na quinta do Almaraz sobranceira ao Tejo na margem sul
    Beijos
    Isabel

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  2. Eu sabia que a Isabel gostaria do forno. Também tenho uma simpatia especial por estes objectos que me recordam gerações e gerações de mulheres a cozerem pão para alimentarem toda uma eternidade de novas gerações.

    Bjos

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  3. A sacralização do pão e os gestos e rituais a ela ligados trazem-me à memória momentos de infância em q as crianças, pelo menos na minha terra, eram ensinadas a nunca deitar pão fora e se inadvertidamente deixassem cair um bocadinho que fosse no chão o deviam imediatamente apanhar e beijar. Assim se incutia o respeito por este alimento base da alimentação dos povos. Lembro-me também da ladaínha q se usava em minha casa quando se fazia a cruz sobre a massa: "Deus te acrescente para amparo da casa e governo da gente".
    Quanto ao belo forno do velho solar, só espero q ainda permaneça de pé e q seja de alguma forma recuperado, in loco ou transferido para um espaço comunitário q irá certamente embelezar.
    Um abraço
    Maria A.

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  4. E não é para menos esta sacralização do pão. Tempos houve em que a terra não era pertença das pessoas, antes a trabalhavam, ou para terceiros ou pagando pelo uso dela.
    Pensar que a terra que hoje se vê em pousio, mal tratada, abandonada, desconsiderada pelas novas regras das normas comunitárias, era tida como ouro e valia lutar por ela!
    Lavrar e estrumar a terra, semeá-la e depois ... ficar sujeito aos desmandos do tempo ... assim se tornavam as pessoas reféns do tempo.
    Passados que eram estas vicissitudes ficava o trabalho da colheita, pagar com maquia ao dono da terra.
    No moleiro, as pessoas preferiam pagar-lhe com parte do cereal. Ou então moiam elas mesmas o grão; há duas décadas atrás ainda me recordo de ver lá em casa duas pequenas mós que trabalhavam uma sobre a outra, empurradas manualmente através de um cilindro de madeira que se encaixava numa delas.
    Era um moinho caseiro que, apesar de ser difícil de manobrar, deveria ser muito utilizado, a julgar pelos sinais de uso que tinha.
    E esta farinha, porque ficava com partículas de pedra na sua composição, tinha um sabor e um cheiro diferentes.
    O melhor milho era quase branco, ao contrário do amarelo que por aí vejo a vender, o qual faz uma broa áspera e desagradável, fruto, julgo, de más misturas!
    Depois era o fazer da massa do pão, a arte do amassar, o crescente (fabricado com produtos naturais) que passava de uma pessoa para a outra, sempre aumentado de mais massa, a mistura de farinhas que variava de mulher para mulher (algumas guardavam ciosamente o segredo, mas a broa mais "lambareira" tinha mais trigo ou centeio).
    Com alguma curiosidade e até estranheza, fruto mais do misticismo que adivinhava do que aquele que via, recordo as cruzes com que se marcava a massa que se deixava a levedar e as ladaínhas que se teciam no acto (a minha avó, que não era nada dada à religião, e tenho todos os indícios que nem mesmo católica era, não perdia nunca a bendição do pão!).
    Finalmente, apesar de uma grande parte das casas possuirem forno, mercê do dispêndio de lenha que se gastava para o acender e manter, só se acendia um em cada semana e aí acorriam todas as vizinhas.
    Como gostava que chegasse à vez da minha avó para ter companhia de uma quantidade de mulheres todas em grande alarido, conversas perdidas, cusquices que se trocavam, novidades que se partilhavam, uma excitação para uma criança como eu, habituada a viver algo solitária!
    E, claro, lá para o final da cozedura, para aproveitar o último calor, alguém sempre tinha uma lambarice para cozer, e eu ficava ali de olho arregalado a ver se me calhava algum bocado (e muitas vezes tinha sorte!).
    Os fornos lá para os meus lados (que, aliás, partilho com a Maria Isabel), estavam dentro de uma estrutura paralelepipédica (entre a cúpula do forno e esta estrutura o espaço estava preenchido quer com cacos, quer com areia ou outro qualquer material isolante, para não permitir que o forno esfriasse muito rápido), a qual não deixava ver a forma troco-cónica do mesmo, no entanto, esta adivinhava-se olhando para o interior através da boca do forno.
    Recentemente mandei construir um forno segundo a antiga tradição e ele possui uma forma algo tronco-cónica como este, de Outeiro Seco, mas a boca tem uma forma que acaba, na parte superior, em triângulo (a Maria Isabel refere esta forma como visigótica que eu, na falta de informação, aceito, mas, de forma algo institiva, tinha a ideia que seria algo de cunho mais árabe).
    Muitas vezes estes fornos encontravam-se no interior das cozinhas, dando para grandes chaminés de aldeia (como na minha casa) ou em pequenas dependências exteriores, e junto à boca havia por vezes quem lhes desenhasse cruzes, quiçá para afastar o mau olhado, alvitro eu!
    Com o pão não se brincava e o respeito que se lhe dedicava era algo completamente em desuso nos dias que correm!
    Eu, na altura, tonto, preferia-lhe os papo-secos "de plástico", que, de vez em quando, me traziam da sede de frequesia!
    Manel

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  5. Ola Luis!
    Ai as memorias que este forno me devolveu! Até parece que consigo sentir o cheirinho do forno quente e do pão a sair la de dentro...ai que coisa maravilhosa!!!E o sabor? Paozinho caseiro com manteiguinha a derreter la dentro....UUUIIII que delicia! Insubstituível!A minha mãe tem uma boa diferença de idade de mim, pelo que assisti ao que a maior parte dos leitores assistem com os avós!Quando eu nasci a minha mãe ja estava prestes a completar as 43 primaveras! Juntando isso ao facto dos meus pais serem alentejanos e a tradição cultural estar bem vincada nos habitos alimentares lá de casa, o pão feito pelas mãos da minha mãe era delicioso! E tambem me lembro do respeito pelo amassar e o tender do pão e lembro-me da minha mãe fazer uma cruz na massa e dizer uma ladaínha para que crescesse bem. Lembro-me que no inverno o alguidar de barro vidrado era arrumadinho junto da lareira, que era uma tradicional lareira alentejana, no chão e de chaminé alta e grande, de modo a que os enchidos fossem fumados depois da matança do porco (mas essa já é outra história a reviver noutra altura). O alguidar era muito bem tapado com um pano branco e um cobertor e a massa aumentava consederavelmente de tamanho antes de ser tendida! Tão bonito todo o processo antigo! O forno esse, sem cruz, redondinho e de porta em arco, era de uma vizinha e meia duzia de familias faziam lá o pão, só mesmo por gosto porque à cerca de 30 anos atraz já havia pelo menos um padeiro que distribuía o pão na minha aldeia (pertinho de Santarém). Que delicia de memorias!!!

    Bem, actualmente não me posso queixar, vivo numa cidade que tem tradição gastronómica de Sopa da Pedra e Pão caseiro, já não é exactamente o que era mas assemelha-se bastante e recomenda-se a todos os que não conhecem. Há bons restaurantes aqui na cidade de Almeirim e em todos eles se serve uma boa Sopa da Pedra que até à pouco tempo até pedra tinha para fazer juz ao nome e quase todos eles servem o paozinho caseiro ... e por acréscimo a famosa "Caralhota" (sim é mesmo esse o nome)que nada mais é que uma bela bifana com um bom molho colocado no pão à medida que este vai sendo assado na brasa junto com a carne. Uma delicia, com algumas, poucas variantes de restaurante para restaurante.
    E em relação ao nome do pão - caralhota - é esse o nome pelo qual são conhecidas as bolas de pão caseiro e assim ficaram conhecidas as bifanas no dito pão. A origem do nome? não faço ideia...e nem sei se quero tentar descobrir...hehehe.
    As palavras vão-se alongando e assunto até já passou pelos restaurantes, pelo que vou-me despedir desta vez, com a recomendação de um bom passeio até Almeirim para uma boa refeição...esta altura do ano até é bem agradável pois ainda se encontram muitos vendedores nas estradas com fruta da região, o Melão, o Pessego, as uvas pois estamos em época de vindimas e talvez umas meloas e melancias, mas para estas duas já começa a ser um pouco tarde....
    Eina onde esta conversa já vai...as palavras voam!!!

    Beijinhos Luis

    Marília Marques

    P.S. Ainda me lembrei de outra coisa, um dia destes faço um post no "armazemdepaixoes" de um restaurante bastante antigo que foi renovado e decorado com azulejo tradicional português (ainda que réplicas)e que eu acho muito bonito!

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  6. Caros amigos.

    Hoje respondo-vos a todos. Parece que todos convergimos na ideia do carácter sagraqo que o pão tinha e numa nostalgia assumida pelo sabor de um bom pão feito num forno antigo.

    Também me recordo de comer pão centeio preto, feito à antiga, que tinha um vago sabor a areia ou pedra. Depois de ler o comentário do Manel adgora percebo porque. Eram as partículas provocadas pelo desgaste das mós que lhe davam aquele sabor. Nunca mais voltei a comer um centeio como aquele, apesar de agora ter aparecido um pão preto da Serra da Estrela, nos supermercados, mas o sabor e a textura não tem comparação.

    Relativamente às palavras da Marília, deixaram-me com água com apetite. Também é verdade, que basta sair de Lisboa, para se comer melhor e mais barato.

    Bejos e abraços a todos

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  7. Venho redimir-me dum erro craso, escrevi na pressa, como é hábito...lol e saiu asneira, a abertura em triângulo dos fornos na zona de SICÓ,que conheço mais em pormenor não são de origem visigótica como por lapso escrevi, mas sim celta, assim sempre o ouvi por lá dizer, mas árabe? também é provável, agora?
    Quem sabe ?
    As minhas desculpas ...
    beijos
    Isabel

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