quarta-feira, 9 de abril de 2025

Coador de chá em prata da Gabert & Conreau, Paris



Depois de alguns meses de namoro, a semana passada resolvi oferecer a mim próprio, este bonito coador de chá em prata. Não foi exactamente uma pechincha, mas mereci este mimo.

Por intuição, achei logo que fosse uma coisa do início do século XX ou dos finais do XIX, num estilo revivalista ao gosto de Luís XVI (1774-1791).

Procurei então saber mais, mas quando se tenta identificar talheres de prata ou afins, esbarra-se sempre com os mesmos problemas. As marcas de garantia e dos ourives são minúsculas, invisíveis a olho nu. Como não tenho lupas de boa qualidade, uso um zoom do telemóvel no máximo e fotografo as ditas marcas e mesmo assim, é preciso tirar uma dúzia de fotografias até conseguir imagens percetíveis.

Primeiro consegui reconhecer o punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973. Portanto, o coador é francês e é de prata boa qualidade, de primeiro título, pois a cabeça de Minerva está inscrita num octógono.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973.


Quando à marca de ourives, é uma coisinha mínima, que nem um milímetro deve ter. É em losango, formato normalmente reservado à prata, já que as marcas de metal prateado são em quadrado ou retângulo. Depois de muitas fotografias ampliadíssimas, pareceu-me que apresentava umas letras e uns símbolos. Vasculhei todo o site https://www.silvercollection.it, à procura de uma marca igual, mas nada. Os ourives franceses do século XIX e XX contam-se às centenas e a minha imagem era de má qualidade e nem percebia se devia tentar ler o losango na diagonal, se na vertical ou se estava de cabeça para o ar.

A marca do ourives

Resolvi alterar a estratégia de pesquisa e carreguei então a imagem no Google, associando palavras-chaves em inglês Tea Strainer silver e encontrei um coador de chá de prata com semelhanças com este, à venda no 43 Chesapeake Court Antiques. A marca estava identificada com sendo a do ourives parisiense Gabert & Conreau, usada entre 1901-1906 e era parecida com a da minha peça, mas fiquei sem a certeza. 
Coador à venda em https://43chesapeakecourt.com/en-eu/products/antique-french-sterling-silver-tea-strainer-over-the-cup-style-louis-xv-style


Fiz mais umas buscas no Google pelo nome deste ourives e noutra página o artnet, que reproduzia uma obra deste Gabert & Conreau com a respectiva marca, percebi que estes, tal como eu tinham fotografado a marca ao contrário, inverti então duas imagens e tive a certeza que se tratava das iniciais G&C e um gabião.


Uma imagem melhor da minha marca: Um G&C e um gabião


A marca do site https://www.artnet.com/artists/gabert-conreau-co/lot-of-4-match-safes-w-embossed-figures-Hs4gMKCHz3K7l9h9EM5Swg2


Enfim, uma verdadeira trapalhice, que resulta das dimensões miniaturais destes sinais. Mas o que interessa é que este coador de chá foi realizado pela Gabert & Conreau, uma marca registada, em 1901, e usada até 1906, cuja produção se caracterizou pela delicadeza do desenho e uma grande fineza na execução. Produziram obras em estilo Art Nouveau, com arrojadas linhas inovadoras, mas, claro o grosso da produção eram peças inspiradas nos estilos dos séculos passados, para satisfazer o gosto da boa burguesia da época.


As pratas são objectos que nos fascinam pelo seu luxo e beleza, mas cujo estudo por mais simples que seja, implica descodificar sinalefas minúsculas e misteriosas, mas essa tarefa acaba por ser um desafio muito interessante, para quem como eu está habituado às minudências da biblioteconomia.





Algumas ligações consultadas:




sexta-feira, 4 de abril de 2025

1916: mãe, eu não quero ir para a guerra: uma carta do sempre jovem Francisco Manuel de Morais




Já tenho aqui escrito sobre o meu tio-avô materno, o Francisco Manuel de Morais, que morreu jovem e que um dia, quando eu estava a sair da adolescência, mostraram-me o seu retrato, dizendo-me que era parecido com ele, de modo que fiquei com uma daquelas ideias estranhas e irracionais, que as velhas fotografias familiares por vezes despertam, de que este rapaz tinha sido eu, cerca de 50 anos antes do meu ser nascer.

Numa velha caixa de madeira, encontrei muitas cartas escritas por ele, numa delas, datada de 1915, confidenciado à irmã a sua paixão pela jovem Estela e o seu desejo de casar com ela. Resolvi então separar todas as cartas escritas por ele, no intuito de saber mais sobre este amor, pois na tradição familiar, dizia-te que teria havido um filho de uma ligação que ele manteve com uma Senhora na cidade do Porto.

Dias felizes em 1915: o Francisco Manuel com os compinchas


Fui lendo assim todas as suas cartas, a maioria dirigidas à mãe, onde vai dado conta dos seus resultados escolares no curso de medicina e onde invariavelmente pede mais dinheiro, para pagar propinas, para a compra de livros, para o aluguer do quarto, para pagar à lavadeira e para a alimentação. Enfim, o Francisco Manuel vivia numa época onde fazer um curso superior era um luxo, extremamente oneroso para as famílias. Por vezes nessas cartas. Surge aqui e acolá o espectro da guerra, que desde 1914 assolava a Europa.

Mas, uma das cartas, que acredito com toda a segurança datar de 1916, certamente depois de Março desse ano, quando Portugal entrou na Primeira Grande Guerra, no período em que se preparava o contingente português, foi um verdadeiro murro no estômago, como se diz hoje em dia.





O meu jovem tio foi recrutado e encontrava-se numa verdadeira aflição. Escreveu à mãe contando que fez um requerimento para passar para o 18º regimento, na cidade do Porto, que foi aceite e que tentou depois tentou passar à companhia de saúde, mas para tal era necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro”. Pede então à mãe, para que os pais movam a sua rede de influências, contactando com as pessoas importantes e das boas famílias da vila de Vinhais, o Dr. Almendra e o Dr. Campilho, para conseguir a sua transferência para o 10º regimento, que estava sediado em Bragança, cidade vizinha daquela vila, onde seria mais fácil, mexer os cordelinhos, para passar ao serviço de saúde do exército, ou mesmo ficar isento. O seu objectivo era escapar à guerra, ou se tiver de ir, pelo que vá seguro, num serviço médico. Se não o conseguisse fugiria para a Espanha. A família tinha uma casa numa aldeia raiana, a Cisterna, que ainda conheci e que basta passar um ribeiro, para se alcançar as aldeias galegas da Veiga, Seixo e Barxa. Na Galiza havia também escolas onde ele poderia terminar o seu curso. Como ele próprio escreveu para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der.




Este sentimento de revolta contra a guerra do meu tio Francisco Manuel não foi um caso único no País. Segundo o Tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, num artigo intitulado O ano da organização do CEP para França: a mobilização militar (1), a convocação de licenciados não foi bem aceite e deu origem a diversos casos de indisciplina e tensões, não apenas pelo inconveniente de ser mobilizado, mas também pelas situações de injustiça em resultado das dispensas de alguns rapazes de famílias influentes, mais sentida nas comunidades mais pequenas e que houve várias revoltas anti-guerrista nas fileiras, em Mafra, Estremoz, Lisboa, Covilhã e outra ainda, a mais grave, em Tomar.

A leitura dos manuais escolares de história, ilustrados com mapas coloridos dos avanços e recuos das frentes de batalha, dá-nos uma ideia romântica das guerras, mas esta carta desfaz tudo isso, ao lermos o testemunho vivo de um jovem que não quer ir para açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda. E passados quase 120 anos destes acontecimentos, como o compreendo, pois por mais que leia sobre o assunto, continuo a ser de opinião que a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial em 1914-1918 foi um erro trágico e inútil.

Esta carta impressionou-me muito, até porque este rapaz veio a morrer num estúpido acidente, no Outono deste ano de 1916, mais precisamente a 4 de Outubro de 1916, numa caçada organizada pelos amigos para se despedirem dele antes de partir para guerra. Terá usado a espingarda para baixar um ramo de uma figueira de forma a colher os frutos melhores e a arma disparou-se sozinha, pondo fim à sua vida. Confesso-vos que depois da leitura da carta, cheguei a perguntar-me se terá sido mesmo um acidente, mas claro, nunca poderei vir a saber o que se passou realmente naquele dia

Transcrevo aqui a carta na íntegra pois é um documento muito interessante para quem se interessa pela história da participação de Portugal na Grande Guerra de 1914-18.


Porto 6

Minha querida mãe

Veio-me hoje a sua carta com a certidão. Por ela vejo que passa mal por minha causa, ou por outra, por causa dos acontecimentos graves que se dão e a que Portugal é arrastado.

Como sabe pedi passagem para o 18 e a esse pedido, dirigido ao comandante do regimento, foi logo deferido. Aqui quis passar à companhia de saúde, mas para tal é-me necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro. Em face disto, eis o que vou fazer e para o que peço que cooperem aí: vou de novo pedir passagem para o 10 e lá obter que o Dr. Sarmento atendendo à minha qualidade de estudante de medicina, me chame ao serviço de saúde. Requeiro hoje mesmo a passagem para o 10 e espero que arranjem ai o pedido de alguém para o Dr. Sarmento fazer um acto que aliás é de justiça. Depois, no caso de haver mobilização geral têm que estar alerta para me avisar por telegrama e eu apresentar-me logo no quartel. Tenham a minha farda lavada e pronta. Tanto que, alcançando o meu fim, não chegarei ir para a guerra, e, se for, irei seguro. Digo-lhe mais ainda para lhe desvanecer essas ideias fúnebres: se vir que não consigo senão como soldado na linha de fogo, eu ainda sei o caminho daqui para a Veiga, para o Seixo ou para a Barja…

Para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de “quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der. E tenho aqui colegas, muito até, que pensam fazer como eu. Aí na Galiza também há escolas médicas e lá também se completam cursos. E creio que tenho tudo dito a tal respeito. È a minha convicção inabalável. Diga-me agora o seu modo de pensar. O Sr. Dr. Campilho escreveria a alguém acerca do meu exame? Devo entrar brevemente pois que já principiaram hoje. Em suma, até o dia 15 devo estar despachado e depois, se as aulas abrirem só em Novembro, como consta, talvez vá até aí restaurar-me um pouco pois que me sinto extremamente fraco e cansado. Recomenda-me a todos e a mãe aceite muitas saudades do seu filho muito amigo

Francisco Morais


PS: recebi a caixa com as maças e as pavias. Muito obrigado. Retribuo o abraço da Augusta


(1) Revista militar, nº temático - Maio de 2016